12 Setembro 2023
“O ponto mais importante nesse momento de devastação por enchentes, poucos meses depois de uma longa estiagem, do ponto de vista do sistema de gestão das águas, é dizer que o Rio Grande do Sul chegou a esse ponto por não ter aproveitado melhor o seu sistema de gestão das águas, criado em 94 e que até hoje não foi plenamente implantado”. A afirmação é do agrônomo e ecologista Arno Kayser, fundador e ex-presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (Comitesinos). Muitas coisas teriam evoluído e problemas teriam sido evitados (relacionados tanto à falta como aos excessos de água), observa Kayser, se o sistema tivesse evoluído com a criação da agência de águas e a implantação de todas as ações previstas nos planos de bacias.
Se essas ações tivessem sido implementadas como deveriam, enfatiza o ecologista, estaríamos melhor preparados para lidar com as consequências de todos esses fenômenos meteorológicos. Em entrevista ao Sul21, Arno Kayser fala sobre o significado e a importância do sistema de gestão de águas e aponta algumas das conexões existentes entre a sua implantação e a capacidade de enfrentar fenômenos climáticos extremos, como os que estamos vivenciando crescentemente nos últimos anos. “Teríamos muitas soluções implantadas ou, no mínimo, apontadas em construções políticas coletivas com todos os atores sociais, políticos e econômicos nele representados. Estamos pagando um preço alto por escolher, como Estado, outras prioridades”.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 11-09-2023.
Em que consiste exatamente o sistema de gestão de águas e porque ele é importante para um maior equilíbrio ambiental no Estado?
O Sistema Estadual de Gestão das Águas prevê a gestão por bacias hidrográficas. Cada uma das 25 bacias do RS prevê a implantação de um comitê com representantes eleitos ou indicados: 40% são eleitos pela sociedade da bacia, 40% são eleitos pelos representantes dos agentes econômicos que usam a água dessa bacia e 20% são indicados pelo governo.
No modelo gaúcho estes plenários tem uma secretária executiva associada e contam com o apoio de uma agência de bacia para fazer a parte técnica. O plenário indica, a partir de estudos técnicos, as obras e ações para manter ou recuperar a qualidade das águas e a quantidade delas para todos os usos na bacia. Isso é consolidado num plano de bacia que tem como referência objetivos de qualidade chamados enquadramento das águas, também definidos pelo comitê. Tanto os objetivos de qualidade como o plano de bacia são acordados politicamente procurando harmonizar os conflitos entre a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico.
Os recursos para as obras vêm de fontes públicas e privadas. A principal fonte seria a cobrança pelo uso das águas. São instrumentos que lidam com todos os temas ligados à água e balizam uma gestão racional dela e uma política de gestão democrática desse bem natural essencial à vida.
Quando a legislação florestal brasileira começou a ser construída, nos anos 1930, as hoje APPs (Áreas de Preservação Permanente) eram as "florestas protetoras". Nas décadas seguintes, perderam cada vez mais espaço às pressões do agronegócio e da urbanização. Nada é por acaso. https://t.co/ELGwTNsFu8
— Aldem Bourscheit (@AldemBC) September 12, 2023
Quais foram os principais obstáculos para a implantação do sistema de gestão das águas do RS criado em 1994?
O principal problema é que até hoje não foram implantadas nem a agência de água e nem a cobrança pelo uso. O sistema opera de forma capenga muito mais por iniciativa da base local de cada comitê, mas com grande ausência do Estado. Os planos de bacia ficam sem um agente executivo e a falta de cobrança inviabilizaria a execução de ações dos planos por falta de recursos. Além disso, a cobrança de água leva a um uso mais racional dela pelos agentes econômicos diminuindo a pressão sobre o meio natural de onde eles provêm.
Com isso se deixam de fazer obras e ações com uma visão de bacia, que é a unidade territorial natural da água. O uso do solo urbano e rural interfere na disponibilidade hídrica de uma região. A gestão das águas indica parâmetros de ocupação e uso que ajudam no ordenamento da ocupação do território, prevenindo os impactos negativos de um mau uso do solo na qualidade e quantidade de água para uso da população e da vida selvagem.
Quais são as conexões entre os eventos climáticos extremos que estamos vivendo no RS e o modo como estamos manejando os recursos hídricos no Estado?
Os eventos extremos representam um novo desafio para a gestão das águas. Especialmente a tomada de medidas para prevenir as secas como também as enchentes. Mas também para gerenciar a distribuição de água para a população e para os agentes econômicos e ainda dar parâmetros para o sistema de proteção ambiental controlar a poluição.
Sem um sistema de gestão das águas ficamos sem fóruns regionais de tomada de decisão para decidir onde é melhor investir e o que fazer para proteger a população e o meio ambiente dos danos que eles podem causar. Como a água não segue os limites políticos municipais essas decisões têm que ser tomadas em escala regional com visão de bacia onde se pode entender melhor a dinâmica dos impactos de eventos extremos e onde intervir para proteger melhor toda a população de uma região.
Sem visão de bacia se entra numa disputa entre setores e governos municipais em que alguns podem se beneficiar, mas outros terem os impactos aumentados. Um dique de proteção de enchente de um lado de um rio que divide municípios pode salvar uma cidade mas afogar a do outro lado. Uma barragem no lugar errado pode garantir água para um setor econômico na seca e deixar outro desabastecido. Sem planejamento com visão de bacia os impactos de eventos extremos podem atingir de modo desigual diferentes setores da sociedade. O que já ocorre hoje pois, em geral, eles impactam mais os setores mais pobres da sociedade que vivem em áreas de maior risco.
Apesar do agravamento da crise climática e da ocorrência cada vez mais regular desses eventos extremos, com pesados custos humanos e econômicos, parece que a percepção dos nossos tomadores de decisão (seja na classe política ou empresarial) regrediu em relação ao que tínhamos há algumas décadas. Como avalia esse aparente paradoxo?
Eu diria que a variável econômica segue sendo a que comanda a tomada de decisões pelo poder político e empresarial. E o poder econômico, depois de anos sendo muito pressionado pela sociedade civil para tomar medidas de proteção a natureza, hoje se apresenta como verde e está num processo ativo de afrouxar as legislações de proteção às águas e à natureza que, na visão deles, prejudicam seus interesses.
Em um mundo em que o poder econômico se concentra cada vez mais essa visão consegue se impor, tanto por mecanismos de força como de sedução do imaginário coletivo, sobre os interesses da vida da maioria da população, que, pressionada pela crise econômica, não consegue se organizar tanto como há alguns anos para buscar seus direitos. O que tem aberto espaço de poder para forças políticas mais conservadoras que defendem interesses dos setores mais ricos.
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Tragédias climáticas: RS paga preço por não ter implantado sistema de gestão das águas. Entrevista com Arno Kayser, fundador do Comitesinos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU