11 Agosto 2023
"Há algo relevante, que atravessa todo o filme. A dada altura, o personagem insinua ser apenas um cientista voltado para suas pesquisas e não o responsável pelo horror do outro lado do mundo. É um grande tema e a mesma desculpa esfarrapada de altos funcionários de quaisquer governos, que repetem serem “técnicos” e não políticos e, portanto, nada terem a ver com as consequências de seus atos. Um aberto cinismo da Razão pura", escreve Gilberto Maringoni, jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), em resenha crítica sobre o filme "Oppenheimer", de Christopher Nolan, publicada por A Terra é Redonda, 09-08-2023.
Eis o artigo.
Oppenheimmer é um grande filme. E talvez o seja pelo fato de Christopher Nolan – britânico tratando de um feito estadunidense – não ter feito da película uma patriotada espetacular como Dunquerque, ou buscado realizar uma fita de ação a exemplo dos Batmans e Supermans que dirigiu. Em competente trama fragmentada, ele não perde a mão e mostra um quebra-cabeças narrativo – como John dos Passos em 1919 – no qual a trama vai sendo montada com a cumplicidade do espectador.
Apesar de ser “o filme da bomba”, há poucas cenas de espetacularização catastrófica vazia. Ao contrário, a ação é quase teatral, na montagem de um rocambolesco enredo que mistura idas e vindas entre vida pública e privada do personagem central, tramas quase caricatas do Exército estadunidense e de delatores do governo, que buscavam vigiar os passos de dezenas de cientistas antifascistas, nem todos alinhados à Casa Branca.
Christopher Nolan conta com a atuação assombrosa de Cillian Murphy, que encarna um Oppenheimmer sombrio, frágil fisicamente, dotado de forte capacidade de articulação e liderança e sobretudo ambíguo. É personagem historicamente incômodo: teve proximidades com o Partido Comunista dos EUA e enviou dinheiro para os republicanos espanhóis antes da guerra, mas dirigiu um dos mais ambiciosos projetos científicos da primeira metade do século XX, a fissão atômica, e a construção da bomba do genocídio infinito. Passada a glória imediata, é enredado pelo macarthismo e pela loucura anticomunista dos anos 1950, sob a acusação de ter passado os segredos da bomba à União Soviética.
Oppenheimmer, no auge da guerra fria, vive um calvário político violento. No fim, o cientista-espião descoberto foi o físico alemão Klaus Fuchs, condenado a 14 anos de prisão na Inglaterra (o que é apenas insinuado na trama), nos anos 1950. Aliás, o que falta ao filme é algo como um miniglossário a cada tomada em que aparecem alguns dos maiores gênios da física de todos os tempos, como Edward Teller, Werner Heisenberg, Niels Bohr e Albert Einstein. A exceção do último, os demais entram e saem das cenas como figurantes quase anônimos.
Christopher Nolan não força a barra e encara um personagem difícil tanto à esquerda, quanto à ultradireita estadunidense. Oppenheimmer sai bastante arranhado após mais de três horas de projeção, seja por suas vaidades pessoais, seja pela total falta de escrúpulos face ao projeto genocida que dirigia.
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J. Robert Oppenheimer (Foto: Wikimedia Commons)
Julius Robert Openheimmer (1904-1967) vinha de uma família judia de posses e fez carreira acadêmica brilhante. Formado em Física por Harvard, seguiu estudos na Europa, primeiro na Universidade de Cambridge e mais tarde no Instituto de Física Teórica da Universidade de Göttingen. De volta aos EUA, tornou-se professor em Berkeley. Além da bomba, formulou diversas contribuições teóricas à Ciência. Integrou-se ao projeto Manhattan em 1942. A iniciativa, baseada em Los Álamos, no Novo México, chegou a contar com um efetivo de 120 mil pessoas, espalhadas em centros nos estados de Washington e Tennessee, além do Novo México. Apenas um punhado de técnicos sabia o que se buscava ali.
Após a explosão da primeira bomba, em Hiroshima, a 6 de agosto de 1945, o filme mostra um Oppenheimmer eufórico. Jay Monk, um de seus biógrafos conta: “Diante de aplausos extáticos, Oppenheimer disse à multidão que era muito cedo para avaliar os resultados do bombardeio, mas que ‘os japoneses não gostaram’”. Uma declaração para lá de cínica, reproduzida por Christopher Nolan em cena chocante. O ráide dos B-29 não foi visto ali como um atentado terrorista ou algo que mudou para sempre as possibilidades destrutivas dos centros do poder global.
Tudo seria o coramento de uma carreira individual vertiginosa e vitoriosa. Passado o segundo bombardeio, em Nagasaki três dias depois, relatos mostram um cientista tomado por um comportamento bem mais contido. Suas relações com a esquerda até hoje permanecem cobertas por dúvidas, apesar das investigações nunca terem sido conclusivas.
Em 1994, o general Pavel Sudoplatov, chefe das missões especiais de espionagem da NKVD revelou em Special tasks, fascinante livro de memórias, que não fora Fuchs o responsável pela abertura de informações secretas aos soviéticos, mas o próprio Oppenheimmer. O relato revoltou a família e admiradores do coordenador do projeto Manhattan. Diante de ameaças e críticas pesadas, Sudoplatov apresentou documentos evidenciando a comunicação entre a cúpula do programa atômico e a espionagem soviética.
Por fim, há algo relevante, que atravessa todo o filme. A dada altura, o personagem insinua ser apenas um cientista voltado para suas pesquisas e não o responsável pelo horror do outro lado do mundo. É um grande tema e a mesma desculpa esfarrapada de altos funcionários de quaisquer governos, que repetem serem “técnicos” e não políticos e, portanto, nada terem a ver com as consequências de seus atos. Um aberto cinismo da Razão pura. Ouvimos e vemos coisas semelhantes quase todos os dias na mídia, aqui mesmo no Brasil.
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Poster do filme de 2023 dirigido por Christopher Nolan, Oppenheimer. (Foto: Wikimedia Commons)
Referência
OppenheimerLeia mais
- Oppenheimer. Artigo de Guilherme Colombara Rossatto
- “Oppenheimer” é um pesadelo americano extremamente sombrio. Não podemos desviar o olhar. Comentário de Ryan Di Corpo
- A tragédia de J. Robert Oppenheimer e a atualidade do perigo inerente ao armamento nuclear
- Barbie não consegue lidar com a verdade. Artigo de Slavoj Žižek
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Oppenheimmer. Artigo de Gilberto Maringoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU