Para onde irão as onças da Caatinga quando a última serra for ocupada por parques eólicos?

Onça-parda monitorada no Boqueirão da Onça, na Bahia. (Foto: Reprodução | Programa Amigos da Onça)

05 Agosto 2023

Com a expansão desenfreada dos parques eólicos e fotovoltaicos na Caatinga, sobra cada vez menos espaço para os grandes felinos e aumentam as chances de conflitos com os moradores locais.

A reportagem é de Paulo Henrique Marinho, Damião Valdenor De Oliveira, Joadson Vagner Silva, Julie Cavignac e Moema Hofstaetter, publicada por ((o))eco, 03-08-2023. 

Com a expansão desenfreada dos parques eólicos e fotovoltaicos na Caatinga, sobra cada vez menos espaço para os grandes felinos e, consequentemente, aumentam as chances de conflitos entre estes animais e os moradores locais, o que pode causar a extinção local de espécies essenciais para a saúde dos ecossistemas.

Animais predadores que ocupam o topo da cadeia alimentar precisam de grandes áreas para estabelecer seus territórios, uma boa quantidade de presas e uma baixa ou nenhuma perturbação humana. Por isso, a presença desses felinos pode ser considerada um indicador da saúde ambiental das áreas que ocupam. Reconhecidos como espécies-chave nos ecossistemas, esses animais são muito importantes, uma vez que controlam as populações de presas e de outros predadores de menor porte, afetando até mesmo a estrutura da vegetação.

O desaparecimento desses animais é causado, principalmente, pela crescente perda de habitat, a caça predatória das suas presas, a perseguição por conflitos com humanos e atropelamentos. Sendo assim, a extinção, ou mesmo populações extremamente baixas de predadores de topo, podem resultar no desequilíbrio de todo um ecossistema.

Entre os predadores de topo de ambientes terrestres que ocorrem no Brasil, as onças-pardas, suçuaranas ou onças-vermelhas (Puma concolor, no nome científico) pesam de 34 a 72 kg, dependendo do ambiente, e são amplamente distribuídas nas Américas, desde os Estados Unidos até o sul da Argentina, passando por todos os biomas brasileiros. Apesar de ser mais tolerante às perturbações humanas do que sua companheira de topo de cadeia alimentar, a onça-pintada (Panthera onca), as populações de onça-parda em ambientes como a Caatinga brasileira estão em situação crítica, sendo consideradas ameaçadas de extinção na categoria “Em Perigo”, o que configura a situação mais preocupante no país. 

Na Caatinga, além das ameaças já citadas para grandes predadores, surge uma nova ameaça: a expansão da matriz energética renovável a partir das fontes eólica e solar, conforme destacado na avaliação detalhada sobre o estado de conservação dos carnívoros brasileiros realizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em 2013.

Situação preocupante

No Rio Grande do Norte (RN), estado do Nordeste que tem mais de 90% do seu território recoberto pela semiárida Caatinga, até pouco tempo a onça-parda havia sido registrada em uma única área. Enquanto isso, a onça-pintada foi extinta há tanto tempo que não existem nem mesmo relatos da sua presença no território potiguar. Em 2014, através de um amplo levantamento utilizando armadilhas fotográficas (câmeras automáticas para registro da fauna), uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (incluindo um dos autores deste texto) conseguiu um único registro de uma onça-parda, um macho adulto, sugerindo uma situação bem crítica de conservação da espécie no estado.

O registro foi obtido em uma área de serra do município de Luís Gomes, no alto-oeste potiguar, próximo da divisa do Rio Grande do Norte com o Ceará e a Paraíba. No entanto, registros históricos e relatos de moradores também indicavam que a espécie ainda habitava a região entre os municípios de Lajes e Cerro Corá, na porção mais central do estado, ou que pelo menos havia sido extinta localmente mais recentemente nesse território, onde até então existia uma extensa área de vegetação de caatinga contínua e relativamente bem preservada. Esse espaço foi indicado pelo Ministério do Meio Ambiente, em 2018, como uma das áreas prioritárias para conservação da Caatinga, sendo considerada uma das mais importantes do bioma (código: CA078), apresentando alta prioridade para se tornar unidade de conservação. Desde então, o único dado mais concreto da presença da espécie nesta segunda área foi uma pele de um animal abatido há mais de 30 anos.

Pele de onça-parda abatida há mais de 30 anos na região da Serra do Feiticeiro. (Foto: ((o))eco | Paulo Marinho)

Mesmo após intensas amostragens entre os anos de 2016 e 2018, nenhum registro ou vestígio confiável da presença da espécie foi obtido na região entre Lajes e Cerro Corá. Isso levou a equipe da UFRN a pensar que sua extinção local era praticamente certa, provavelmente pela perseguição e conflitos com criadores locais de animais como cabras e ovelhas, já que os dados apontavam para uma boa quantidade de presas como veados, tatus e tamanduás, mesmo com a intensa atividade de caça que existe na região.

A dúvida sobre a presença da onça-parda na região entre Lajes e Cerro Corá durou até o início deste ano, quando imagens de um animal circularam em aplicativos de troca de mensagens, particularmente entre pessoas ligadas à área ambiental no Rio Grande do Norte. Segundo as informações compartilhadas, tratava-se de uma onça-parda registrada na porção nordeste da Serra do Feiticeiro, no município de Lajes, no dia 24 de janeiro de 2023, justamente nas imediações da região que foi estudada pela equipe da UFRN desde 2014, quase 10 anos depois do primeiro e, até então, único registro oficial da espécie no estado, oriundo do alto-oeste potiguar. Essa notícia deveria ser motivo de comemoração. Apesar de todas as ameaças, sabemos agora que essa espécie ainda persiste naquela região. Com essa informação, medidas mais efetivas devem ser planejadas e colocadas em prática para investigar se existe uma população residente e viável, saber qual o seu tamanho e distribuição, para garantir sua proteção.

No entanto, o registro de um espécime de onça-parda também traz grande preocupação e um alerta, já que a área na qual o animal foi registrado é justamente a porção da Serra do Feiticeiro onde está prevista a instalação de mais um parque eólico em um futuro muito próximo, assim como vem acontecendo com a maioria das serras que existem no estado do Rio Grande do Norte e em grande parte do Nordeste do Brasil. Inclusive, o registro em questão foi feito pela equipe da consultoria ambiental que está realizando o monitoramento prévio da fauna, atividade prevista no processo de licenciamento ambiental do parque eólico e uma das condicionantes da Licença de Instalação emitida pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte (IDEMA) (processo: 2020-154271/TEC/LI-0108).

Registro de onça-parda feito pelo Projeto Caatinga Potiguar (UFRN/WCS) no extremo sudoeste do Rio Grande do Norte em 2014. (Foto: Reprodução | ((o))eco)

Importância socioambiental da área

O licenciamento do parque eólico dessa área vem se arrastando desde meados de 2014. Um dos motivos é justamente o alto nível de importância biológica, geológica e cultural da Serra do Feiticeiro, o que tem feito pesquisadores e moradores locais atuarem contra a instalação do empreendimento. Enquanto isso, o restante da serra, sua porção noroeste, já foi ocupada por completo por aerogeradores, assim como vem acontecendo em praticamente todas as áreas serranas do estado. 

Os dados sobre a diversidade biológica da região acumulados pelos estudos realizados desde 2014 tornam a situação ainda mais preocupante. 

A área abriga, por exemplo, pelo menos 17 espécies de mamíferos terrestres, incluindo pequenos felinos ameaçados de extinção a nível nacional e mesmo internacional, como o gato-mourisco (Herpaulirus yagouaorundi) e o gato-do-mato-pintado (Leopardus tigrinus), além da jaguatirica (Leopardus pardalis) e da onça-parda já citada, espécies que a nível estadual estão em estado bastante crítico de conservação. 

Além disso, existem pelo menos 24 espécies de morcegos nas imediações da Serra do Feiticeiro, incluindo uma das poucas populações conhecidas de um morcego nectarívoro (que se alimenta de néctar) típico da Caatinga e ainda muito pouco conhecido pela ciência, o Xeronycteris vieirai; além de uma colônia do ameaçado de extinção, o Furipterus horrens. A diversidade de morcegos fez com que o local fosse considerado como Área Importante para a Conservação de Morcegos (AICOM) pela Rede Latino-Americana e Caribenha para a Conservação de Morcegos (RELCOM). 

Entre as aves, cuja riqueza facilmente supera 150 espécies na serra, pode ser encontrado o jacu-do-nordeste (Penelope jacucaca), também ameaçado de extinção, e o papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva), espécie de psitacídeo bastante rara na Caatinga potiguar. Além disso, um estudo, recentemente publicado por pesquisadores também da UFRN, destaca a importância dessa região para conservação da herpetofauna da Caatinga potiguar.

O biólogo, doutor em Ecologia pela UFRN e pesquisador especialista em morcegos da Caatinga, Juan Carlos Mena, que desenvolve estudos com o grupo na região de Lajes desde 2015, vê com preocupação a instalação de tantos empreendimentos eólicos em ambientes prioritários para a conservação destes mamíferos alados. “A Serra do Feiticeiro é, sem dúvida, uma área única no estado no que diz respeito aos morcegos. As extensas manchas de vegetação de caatinga e a grande quantidade de lajedos graníticos proporcionam alimento e abrigo essenciais para a sobrevivência destes animais”, enfatiza Juan.

Para o pesquisador, está mais do que evidenciado que as usinas eólicas geram impactos negativos para os morcegos e que a instalação de mais um parque eólico na região irá trazer efeitos negativos para as populações dos mamíferos voadores da porção ainda conservada da Serra do Feiticeiro. Além dos potenciais impactos negativos atrelados ao desmatamento e à degradação da vegetação nativa, os parques eólicos têm o potencial de impactar principalmente animais alados como morcegos e aves, seja por colisão ou trauma decorrente da mudança de pressão gerada pela rotação dos aerogeradores.

Diante da presença de um número elevado de projetos eólicos e da importância da área, pesquisadores e ativistas da sociedade civil vem alertando desde 2014 que a ocupação desenfreada dessa região por parques eólicos terá como consequência a descaracterização da paisagem e o desequilíbrio da biodiversidade de uma das mais importantes áreas prioritárias para a conservação do estado e, consequentemente, de todo o ecossistema.

Mapa mostrando o corredor da Serra de Santana (lado leste), formado principalmente pela vegetação arbórea da Caatinga; a Serra do Feiticeiro (polígono em azul, onde foi registrada a onça-parda); e o polígono da UC em processo de criação (RVS Serra das Araras), além de outras serras importantes da região que estão ocupadas ou em fase de ocupação por parques eólicos. (Foto: ABEEólica | Google Earth)

Região com a sobreposição dos empreendimentos eólicos licenciados ou fase de licenciamento, sobrepondo, inclusive, a região prevista para se tornar uma unidade de conservação de proteção integral. (Foto: ABEEólica | Google Earth)

Nesta imagem é possível ver a Serra do Feiticeiro com mais detalhe, com destaque para a porção da serra ocupada por aerogeradores (estrelas) e acessos dos parques (linhas contínuas de cor clara). (Foto: ABEEólica | Google Earth)

É importante destacar, por exemplo, que existe um número expressivo de plantas na Caatinga que são polinizadas por morcegos e que a diminuição das populações desses mamíferos por impactos diretos ou indiretos da presença de empreendimentos eólicos pode comprometer o equilíbrio desse ecossistema único. Sem contar os impactos para o patrimônio geológico, espeleológico e arqueológico, no regime hidrológico e na cultura local, já que a serra conta com um santuário religioso, sítios arqueológicos que testemunham a presença de populações autóctones e uma paisagem natural exuberante, sendo frequentada por romeiros, trilheiros de aventura e pesquisadores.

A relevância da Serra do Feiticeiro é tamanha que, entre 2010 e 2011, um então vereador do município de Lajes, o professor e ambientalista Canindé Rocha, propôs a criação de uma Área de Proteção Ambiental para garantir a conservação do local e fomentar o turismo local e de aventura. No entanto, o processo de criação da unidade de conservação (UC) não avançou, nem a nível municipal, estadual ou federal, mesmo após os repetidos esforços de pesquisadores e ativistas e dos trabalhos científicos e técnicos que foram publicados após a emissão da Licença Prévia do empreendimento, ainda em 2015 , atestando que se trata de uma área única e que precisa ser preservada.

Para onde irão as onças?

O que muda agora com o novo e importante registro de uma onça-parda na Serra do Feiticeiro? Na verdade, a confirmação da presença de onças-pardas só reforça o que já era de conhecimento público: que a vocação da Serra do Feiticeiro é de ser um grande corredor ecológico preservado por onde a biodiversidade potiguar deveria transitar livremente, entre a região de Lajes e as encostas da Serra de Santana, passando por Cerro Corá, onde, segundo o IDEMA, uma nova UC estadual deve ser criada ainda este ano (Refúgio da Vida Silvestre Serra das Araras), e não desviando de acessos extensos e grandes estruturas de geração de energia eólica por toda parte.

O cenário atual está bem distante das recomendações feitas por pesquisadores e ambientalistas da sociedade civil. A instalação de vários empreendimentos eólicos entre a Serra do Feiticeiro, a Serra de Santana e região do entorno está provocando a descaraterização de boa parte dessas áreas e comprometendo a conectividade das porções ainda conservadas da paisagem. Neste sentido, para garantir o fluxo da fauna, é fundamental manter o que restou de área natural nessa paisagem, como as encostas da Serra de Santana, a parte da Serra do Feiticeiro que ainda não tem empreendimentos instalados e as áreas naturais de outros ambientes serranos com alta prioridade de conservação da região. Para isso, o governo do Rio Grande do Norte precisa urgentemente implementar novas unidades de conservação e barrar a instalação de novos empreendimentos eólicos nestas áreas ecologicamente excepcionais.

Em outros estados do Nordeste, os impactos dos parques eólicos sobre as onças já vêm sendo denunciados e discutidos. Na região do Boqueirão da Onça, no norte da Bahia, onde existe um Parque Nacional e uma Área de Proteção Ambiental desde 2018, pesquisas e monitoramentos de longo prazo demonstram que as onças precisam percorrer distâncias maiores do que eram habituadas para desviar de parques eólicos e encontrar recursos essenciais, como água, nas áreas onde os empreendimentos foram instalados. Segundo Carolina F. Esteves, bióloga e pesquisadora do Programa Amigos da Onça (Instituto Pró-Carnívoros), a legislação frágil e permissiva no contexto do licenciamento de parques eólicos no Nordeste prejudica a conservação da fauna. Especificamente quanto aos grandes felinos, ela destaca que “com a chegada dos empreendimentos, as onças mudam seu comportamento, especialmente a onça-parda, por ser relativamente mais adaptada à presença humana (em comparação com a onça-pintada), e isso faz com que elas se aproximem mais das comunidades, resultando no aumento da retaliação e dos conflitos entre humanos e onças”.

Especialista em ecologia de onças-pintadas e pardas na Caatinga e também bióloga e pesquisadora do Instituto Pró-Carnívoros, Claudia B. Campos tem analisado o comportamento de onças nas áreas em que foram instalados parques eólicos no Boqueirão da Onça. O monitoramento, primeiro do tipo para a Caatinga, é feito por meio de dados enviados a partir de colares equipados nos animais e obtidos via satélite. De acordo com Claudia, os dados sugerem que pelo menos uma das onças-pardas monitoradas respondeu negativamente à presença dos parques eólicos, visto que nunca cruzou as linhas das torres eólicas instaladas em seu habitat. “O animal mudou seu comportamento e teve que aumentar sua área de vida, o que pode ter aumentado sua exposição às comunidades próximas, e possivelmente resultado no seu abate”, conclui Claudia Campos. Vitória, uma onça-parda fêmea de 30 kg, a primeira monitorada com tecnologia GPS na Caatinga, começou a ser acompanhada em 2017 pelo Programa Amigos da Onça e foi precocemente abatida no início de 2018, em condições que até hoje não foram totalmente elucidadas.

Parte do topo da Serra do Feiticeiro já ocupado e descaracterizado por parques eólicos. (Foto: Ramiro Camacho)

É sabido que com o trânsito intenso de máquinas e trabalhadores, o desmatamento e a degradação da vegetação, o aumento de ruídos de detonações para desmonte de rochas, assim como a diminuição e fuga das presas para outras áreas, é provável que as onças também precisem se deslocar para outros territórios. E é durante esses deslocamentos que elas podem encontrar cada vez mais estradas, pessoas, animais de criação e parques eólicos, o que só deve acirrar o conflito entre predadores e moradores locais, trazendo prejuízos para ambos e para todo o ecossistema. Essa mudança na movimentação dos animais pode ser, inclusive, um dos fatores que fizeram com que a onça-parda tenha sido registrada somente agora na região. O que era antes uma área extensa e contínua de vegetação nativa e de presas está se tornando agora um retalho de acessos e estruturas de parques eólicos por todos os lados, empurrando os animais para ambientes minimamente adequados e cada vez mais limitados.

Sobre esse tema, Cláudia Martins, engenheira agrônoma, doutora em Ecologia Aplicada pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Projeto RE-Habitar Ararinha-azul (UNIVASF), reforça que as atividades de implantação e operação dos empreendimentos eólicos forçam alterações nas rotas feitas pelas onças, inclusive descendo serras e boqueirões, o que aumenta a probabilidade de encontro com humanos e com seus animais domésticos.

“Uma maior pressão de caça sobre as presas naturais das onças provoca uma diminuição de recursos alimentares para as que vivem na região de implantação do empreendimento. Em lugares onde gado e criações são manejados de forma extensiva, os animais domésticos podem tornar-se presas para um predador que encontra menor disponibilidade de suas presas naturais”, alerta a pesquisadora, que desenvolveu sua pesquisa de doutorado focada na relação entre as pessoas e as onças do Boqueirão da Onça.

Claudia ainda ressalta o que isso deve significar para os pequenos agricultores e pecuaristas afetados: “Se isso impacta um pecuarista bem estabelecido, tente imaginar o quanto impacta um pequeno criador. O impacto vai além do prejuízo econômico, ele exacerba a percepção de vulnerabilidade que a pessoa já tem de si mesma e atinge um bem material que compõe sua identidade sociocultural e pelo qual ele tem afeto”.

Os conflitos entre humanos e onças no sertão nordestino são uma realidade antiga que têm dizimado populações de onças-pardas e pintadas, o que tem se intensificado com o avanço de grandes empreendimentos na região. Por isso, estratégias de convivência entre humanos e fauna, que já existem, devem ser difundidas em associação à criação de unidades de conservação, a exemplo dos chiqueiros adaptados e outras medidas desenvolvidas pelo Programa Amigos da Onça na região das unidades de conservação do Boqueirão da Onça. Estes chiqueiros garantem um melhor manejo das criações, diminuindo a exposição de animais como ovelhas e cabras à predação. Mas é essencial que exista habitat suficientemente preservado para que as onças que vivem na área tenham território e presas disponíveis, e para isso são necessárias unidades de conservação bem planejadas e manejadas em uma paisagem mais amistosa para estes predadores.

Onças-pardas são espécies guarda-chuvas. Isso significa que, se garantirmos a sua permanência numa área, é muito provável que estaremos contribuindo para a conservação de muitas outras espécies que utilizam os mesmos ambientes e, consequentemente, para a saúde de todo um ecossistema. O resultado disso é a garantia de serviços ambientais essenciais para o semiárido nordestino, como a recarga de aquíferos e a manutenção de um microclima mais ameno frente às mudanças climáticas que ameaçam aumentar a aridez e os processos de desertificação na Caatinga.

Apesar dos resultados científicos e da evidente relevância biológica e cultural da área, em resposta aos questionamentos direcionados de forma conjunta pelo Grupo Seridó Vico, Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (núcleo Rio Grande do Norte, FMCJS/RN) e Serviço de Assistência Rural e Urbana (SAR), no final do ano passado, endereçados para a Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Norte, Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (MPRN), Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (SEMARH), Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (IDEMA) e Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Rio Grande do Norte (IPHAN/RN), acerca da ocupação da única porção ainda desocupada por parques eólicos da Serra do Feiticeiro, o órgão ambiental estadual, IDEMA, esclareceu que não tem interesse em criar uma UC na área, e que a Licença de Instalação do empreendimento continua vigorando mediante o cumprimento de algumas condicionantes.

Entre estas condicionantes está a intensificação do monitoramento prévio da fauna da área, bem como a criação, por parte do empreendedor, de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural na Serra do Feiticeiro, mas com área e localização não explicitadas. O IPHAN, por sua vez, se posicionou mencionando que não sendo a manifestação religiosa presente na Serra do Feiticeiro e a própria paisagem da mesma reconhecidas a nível federal, o órgão não pode intervir no licenciamento, o que é uma pena, já que o patrimônio cultural do Brasil não conta com sólidos instrumentos legais de proteção nos níveis municipal e mesmo estadual.

No entanto, uma única onça-parda pode necessitar de quase 10.000 hectares para estabelecer território. Isto reforça a necessidade de uma estratégia muito mais ambiciosa e efetiva, a nível regional, para garantir a conservação dessa e de outras espécies frente à expansão exponencial de empreendimentos do tipo na região. É necessário que se planeje a criação de um mosaico de unidades de conservação de proteção integral e uso sustentável, com conexões através de corredores ecológicos, indo desde a Serra do Feiticeiro, localizada em Lajes, até a Serra de São Bernardo, em Caicó, passando por outros reconhecidos refúgios da Caatinga potiguar como é o caso da Serra de Santana e Serra de João do Vale, incluindo, assim, os municípios de Caiçara do Rio dos Ventos, São Tomé, Cerro Corá, Bodó, Lagoa Nova, São Vicente, Santana do Matos, Tenente Laurentino Cruz, Florânia, Jucurutu e Caicó.

Por mais que o IDEMA prometa criar uma nova UC de proteção integral na região ainda este ano, sozinha ela não conseguirá garantir a manutenção da provável população local de onças-pardas e de outras espécies mais exigentes em termos ecológicos. Associado a isso, estratégias de monitoramento mais eficientes e de longo prazo, como o armadilhamento fotográfico sistemático e a utilização de rastreamentos por GPS, de mitigação de conflitos com criadores e de outras ameaças, como atropelamentos, precisam ser planejadas e implementadas pelo poder público, em parceria com instituições de pesquisa e empreendedores. Além disso, é importante que os órgãos ambientais disponibilizem os relatórios destes monitoramentos para a sociedade e que as empresas do setor adotem uma política de publicação científica dos dados sobre espécies ameaçadas encontradas, só assim essas informações poderão ser utilizadas cientificamente e na elaboração de estratégias regionais e nacionais de conservação.

Com todos esses conflitos de uso da terra na área da Serra do Feiticeiro, as ações de conservação se tornam cada vez mais complexas e custosas, embora necessárias e urgentes. Por outro lado, no extremo sudoeste do estado, onde foi obtido o registro de onça-parda em 2014, ações mais proativas e de menor custo ainda poderão ser desenvolvidas, já que, até onde se sabe, não existem interesses de grandes empreendimentos. Isso poderia facilitar o processo de criação de uma área protegida de dimensões apropriadas para conservar as onças e outras espécies nesta região, o que deve estar associado a um planejamento estratégico de conservação das onças-pardas no estado envolvendo ambas as áreas com ocorrência confirmada da espécie.

O futuro das onças-pardas do Rio Grande do Norte está na Caatinga, já que na faixa litorânea, onde ocorre a Mata Atlântica, a espécie está extinta há muito tempo. Mas é na Caatinga também que estão os maiores investimentos em termos de grandes empreendimentos na forma de parques eólicos e fotovoltaicos. Já passou da hora de compatibilizarmos a produção de energia renovável com a conservação da biodiversidade e a melhoria da qualidade de vida das pessoas do Nordeste do Brasil, garantindo que sociedade, onças e outros seres vivos continuem convivendo em ambientes preservados no sertão, enquanto a energia é produzida de forma verdadeiramente sustentável, mas apenas em áreas compatíveis com este tipo de empreendimento.

É com as palavras do ilustre potiguar Oswaldo Lamartine de Faria, em seu livro "A caça nos sertões do Seridó", que em 1961 já denunciava o empobrecimento da biodiversidade da Caatinga decorrente da ação humana, que fechamos este texto: “(…) na pisada em que vamos, o sertanejo herdará, em um amanhã bem próximo, um chão sem rastros de bichos e silencioso de cantos dos pássaros. Paisagem morta e de fauna sintética já galhofada no dizer matuto: ‘De bicho de cabelo só vai escapar escova; de animal de quatro pés, tamborete e bicho de fôlego – o fole…’”.

Posicionamento dos envolvidos

Tanto a Maron Ambiental, empresa que fez o registro da onça-parda na Serra do Feiticeiro, quanto o IDEMA, órgão ambiental que emitiu a Licença Prévia do parque eólico, foram questionados quanto a viabilidade da compatibilização da conservação da espécie e da serra com a instalação de mais um parque eólico na região. As respostas aos questionamentos são expostas abaixo.

Maron Ambiental:

Nossos estudos e experiências em outros projetos sustentáveis embasam nosso posicionamento de que é possível compatibilizar a conservação da espécie com o parque eólico. Entendemos que o projeto irá se constituir como um importante ator adicional para garantir o desenvolvimento sustentável no território, somando esforços para proteger o ecossistema da região.

Acreditamos que é possível compatibilizar a conservação da espécie com o parque eólico, mediante medidas de conservação, mitigação de impactos e investimento em pesquisa e educação ambiental”.

IDEMA:

Questionado no dia 26 de julho via e-mail, o IDEMA não respondeu ao contato até o momento da publicação deste texto.

*Contribuição no texto: Étore Medeiros (MCC/UFRN)

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