11 Julho 2023
Dez anos depois da visita do pontífice à ilha. O procurador regente de Agrigento faz um balanço sobre investigações e sobre os tráficos da Líbia e da Tunísia.
A entrevista é de Nello Scavo, publicada por Avvenire, 08-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dez anos depois, as palavras do Papa Francisco em Lampedusa “ainda são atuais, mas são ignoradas”. Salvatore Vella, que dirige a promotoria de Agrigento, responsável por Lampedusa, diz que ele repete para si aquelas palavras a cada desembarque. “Nós, nos milhares de pessoas que continuam a desembarcar em Lampedusa, vemos realmente as vítimas da ‘globalização da indiferença’ da qual falava o Papa, agora quase não se veem lágrimas derramadas diante dos descartados".
As investigações, porém, não param e permitiram reconstruir a cadeia do tráfico de pessoas que, especialmente em Líbia, envolve também figuras da "zona cinzenta", algo entre milicianos, chefes de clãs e expoentes das instituições governamentais dos estados do norte da África. Se Lampedusa continua a ser a primeira linha, a resposta das instituições nacionais não parece, no entanto, ser adequada: “Dos 12 magistrados no quadro da Procuradoria, apenas 7 estão em serviço, e os próximos chegarão no final de janeiro de 2024. Há 18 meses falta o procurador-geral e há anos que não temos um responsável administrativo”, diz Salvatore Vella que desempenha, na prática, três funções simultâneas: “Também cuido da declaração de impostos do meu departamento", diz ele sem reclamar muito.
Neste período em 2022 os desembarques haviam sido pouco mais de 30 mil, este ano já são 67 mil. O que vocês esperam?
As projeções indicam que poderíamos esperar a chegada de mais de 200.000 pessoas em 2023, números nunca vistos até agora. Enquanto isso, a frente de partidas se alargou, envolvendo amplamente a Cirenaica e a Tunísia, como havíamos previsto. Com presenças e modalidades que é impossível que escapem às instituições locais africanas.
A que se refere?
Dos testemunhos que recolhemos e dos dados sobre as nacionalidades observamos uma continua chegada de migrantes do Paquistão e de Bangladesh. Traficantes asiáticos de pessoas oferecem verdadeiras pontes aéreas desses países para o litoral africano.
Onde pousam?
Se no passado os principais aeroportos de destino eram principalmente no Egito, agora sabemos que desembarcam também na Líbia, na Cirenaica.
Trata-se de uma região sob o controle do general Haftar. Como se pode contornar os controles?
Acreditamos ser impossível que a polícia de fronteira e as autoridades que administram esses aeroportos não tenham conhecimento desses desembarques e não saibam o que acontece com toda essa gente. Estamos falando de dezenas de milhares de migrantes.
Do lado oposto, aumentaram as saídas da Tunísia. Como chegam lá os migrantes e os refugiados?
É preciso reiterar: continuamos a registrar milhares de tunisianos entre as pessoas que desembarcam em Lampedusa.
Mas da Tunísia hoje partem principalmente subsaarianos e asiáticos. Dos depoimentos que que coletamos, através da Polícia de Estado de Agrigento, parece emergir como as saídas de Tunísia sejam geridas por organizações criminosas tunisianas, que contam com a ajuda de "recrutadores de negócios" desses grupos étnicos para recrutar migrantes seus compatriotas. No momento a Tunísia é a sexta nacionalidade entre aquelas de chegada, depois da Costa do Marfim, Guiné, Egito, Bangladesh e Paquistão. Muitas dessas pessoas para chegar à Tunísia passam pela Líbia.
Vocês têm evidências de ligações entre a criminalidade da Tunísia e da Líbia?
Não temos elementos para poder afirmar se existe um acordo direto entre traficantes líbios e tunisianos. O que sabemos com certeza, pelos muitos testemunhos que recolhemos, é que muitos decidiram alcançar à Tunísia porque é considerada menos perigosa para os migrantes do que a Líbia. Mas no momento não podemos excluir que essas "transições" de um país para outro sejam também o resultado de uma joint venture entre grupos criminosos dos dois países.
Qual é a situação dos campos de detenção na Líbia?
Continua terrível. Podemos compará-los aos campos de prisão e extermínio, já vistos em outros lugares ou épocas históricas. Locais onde ocorrem abusos, torturas, assassinatos, violências sexuais contra mulheres, homens e crianças. Os elementos que recolhemos nos dão testemunhos horríveis e desumanos.
Ainda no mês passado, graças ao trabalho da Polícia de Agrigento, identificamos e detemos um torturador nigeriano, que havia "trabalhado" em um campo de prisioneiros na zona de Zawyah, Líbia.
Pode nos dizer se no registro dos investigados vocês também têm o momento suspeitos que estão no exterior e se entre eles há representantes de instituições locais?
Posso dizer que há suspeitos de vários países, da Líbia ao Sudão. Existem indivíduos pertencentes àquele mundo que o seu jornal também investigou e deu a conhecer ao longo dos anos. E sabemos também que muito do nosso trabalho tem contribuído para as investigações da Procuradoria para o Tribunal Penal internacional. Infelizmente, não temos atividades de cooperação judicial com as autoridades judiciais da Líbia e da Tunísia.
Os líbios investigados são expressão do crime organizado ou homens das instituições?
Às vezes é extremamente difícil distinguir uns dos outros. Os testemunhos dos migrantes muitas vezes descrevem a presença, entre os traficantes, de homens armados uniformizados, mas com exceção de algumas figuras do topo, como aquelas identificadas e divulgadas pelo Avvenire nos últimos anos, no contexto líbio é difícil distinguir entre bandos criminosos, milícias, grupos armados e quantos entre eles são afiliados diretamente aos vários ramos das instituições líbias. Então considero que a melhor maneira, embora com dificuldades e limitações, seja de continuar a utilizar os instrumentos da justiça internacional.
Mapa do Mediterrâneo (Fonte: Guia Geográfico)
Nos últimos anos, vocês também submeteram as organizações de ajuda humanitária a investigações. Encontraram alguma evidência ou indicação de possíveis ligações entre ONGs e traficantes?
Era uma hipótese investigativa. Fizemos o nosso trabalho, procuramos ligações concretas, mas não encontramos nenhum vestígio de hipotéticas ligações entre ONGs e os terríveis traficantes de pessoas humanos líbios. A nossa Polícia Judiciária trabalhou a fundo em tais teorias e nunca foi encontrado nada de concreto.
Acha que a presença de socorristas no mar seja um fator de atração para as embarcações?
Em minhas décadas de experiência com esses fenômenos, posso dizer que o que controla as partidas na maioria dos casos são exclusivamente as condições meteorológicas e marítimas do Estreito da Sicília, combinadas com as condições socioeconômicas ou políticas dos países de origem dos migrantes, em contínua mudança. O que faz os homens migrarem ainda são a fome, a guerra e as doenças.
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“Migrantes, as palavras ignoradas do Papa. Em Lampedusa teremos um número recorde de chegadas”. Entrevista com Salvatore Vella - Instituto Humanitas Unisinos - IHU