06 Julho 2023
"O desafio seria, pois, realizar uma operação, contribuindo para a reforma da cúria e do 'dicastério' inspiradas pela necessidade de uma mudança de rumo, mas que não perca nada do passado nas suas expressões mais autênticas".
A opinião é de Giuseppe Lorizio, padre italiano e professor da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma., em artigo publicado por Settimana News, 05-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos últimos dias, a teologia sentiu-se particularmente interpelada por dois fatos que mostram, caso seja preciso, aquilo que um dos maiores teólogos do século XX, Henri Marie de Lubac, chamava de “o paradoxo da Igreja”.
Há poucos dias ficamos sabendo, não sem consternação, que um estimado colega, Martin M. Lintner, foi proibido pelo Dicastério (que palavra feia para uma entidade eclesial) para a Cultura e a Educação de ser nomeado reitor do Studio Acadêmico Teológico de Bressanone, para o qual havia sido eleito pelos órgãos colegiados daquela instituição.
Motivações e sua transparência não foram divulgadas, exceto em termos tão genéricos quanto irrelevantes. O que deveria fazer sorrir, mas na verdade é preocupante, é o fato de que tal sorte recaiu sobre o novo prefeito daquele que, à luz da Praedicate Evangelium, denomina-se hoje de Dicastério para a Doutrina da Fé.
De fato, na época havia sido negada a ele a possibilidade de acessar o cargo de Reitor da Universidade Católica Argentina, com o nihil obstat posteriormente concedido, supõe-se por intervenção do primaz daquela nação: o cardeal Bergoglio.
Talvez, os casos sejam diversos, mas a ninguém escapa a analogia, que, como sabemos, vê prevalecer a dessemelhança sobre a semelhança, enquanto dá o que pensar.
Diante dessa nomeação, alguns teólogos da corte poderiam facilmente apressar-se em conceder licença de acesso ao novo superior diante do fato de que algum vaticanista se encarregou de destacar os limites teológicos e científicos de suas publicações, negando justamente sua congruência.
Mas isso faz parte do circo midiático, do qual gostaríamos de tomar distâncias, oferecendo algumas sugestões para uma maior reflexão.
Em primeiro lugar, parece-me estar perante uma pessoa que mais que à argumentação conceitual recorre à intuição, a que acompanha a atenção à emoção: duas dimensões que a teologia ocidental muitas vezes evitou e que, por uma espécie de "ressentimento", voltam à tona.
Mas a esse respeito é interessante notar como, nas duas circunstâncias e figuras evocadas, a teologia de língua alemã cruze e encontre aquela de língua e cultura latino-americanas, o que aconteceu também no alvorecer da teologia da libertação (pensamos em sua relação com o pensamento de Johann Baptist Metz).
A esse propósito, parece-me necessário e urgente recordar uma chave de leitura subjacente à essa escolha do Papa e à figura do arcebispo Víctor Manuel Fernández. De fato, se é verdade, e não tenho por que duvidar, que como teólogo desempenhou um papel decisivo por ocasião da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, realizada em Aparecida em maio de 2007, o estudo atento não só do documento final, mas do processo que o gerou, confronta-nos com uma metodologia tudo menos que obsoleta.
Se, num primeiro momento, a descrição do contexto e da situação dos povos daquelas terras era confiada a uma análise de tipo sociológico, a que se seguiria a reflexão teológica, a virada aconteceu quando o Bergoglio, auxiliado pelo teólogo Fernández, propuseram uma leitura da realidade, com aqueles que, juntamente com Pierre Rousselot, podemos chamar de "os olhos da fé".
Afinal, nunca há uma leitura neutra das situações humanas, que a comunidade crente lê e interpreta a partir do Evangelho. Trata-se, como afirma o documento, do “olhar sobre a realidade dos discípulos missionários”.
Tal perspectiva permitiu não perder nada das aquisições da teologia da libertação, enquadrando-as no contexto próprio da ciência teológica, que é a fé. Não é de admirar, portanto, que o Papa Bento XVI, em sua carta de 29 de junho de 2007, tenha apresentado e apreciado essas conclusões, a despeito de quem vê nessa nomeação uma ruptura entre os dois pontificados.
Voltando aos dias de hoje, o desafio seria, pois, realizar uma operação semelhante, contribuindo para a reforma da cúria e do "dicastério" inspiradas pela necessidade de uma mudança de rumo, mas que não perca nada do passado nas suas expressões mais autênticas.
Sabemos e sempre falamos isto: a salvaguarda não é a das fórmulas doutrinárias, mas a da fé, pela simples razão de que o ato de crer não se dirige ao ditado, mas à própria coisa, palavra de Tomás de Aquino, que encontra perfeita correspondência na teoria do “assenso real” de John Henry Newman. Aqui está o grande paradoxo e o desafio que enfrentamos: se a fé é um ato e um acontecimento dinâmico, como pode ser preservada, senão reconhecendo tais prerrogativas?
A esse propósito, a rotatividade entre figuras de topo de um dicastério obviamente não basta, mas será necessária uma equipe que saiba fazer networking, para que o sonho de um Evangelho vivo na Igreja Católica, da qual somos filhos, possa se realizar.
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Retorno a Aparecida? Uma hermenêutica do presente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU