19 Junho 2023
“A categoria redistribuição precisa ser redefinida por outra concepção de justiça que recupere todas as suas dimensões e que, além disso, acrescente uma ambiental. O conceito de reconhecimento deve ir além da intersubjetividade entre as pessoas porque as concepções do si mesmo também são geradas em espaços específicos, em ambientes onde coparticipam entidades não-humanas. É por essas razões que o debate sobre o “marco temporal” é muito mais do que parece”, escreve Eduardo Gudynas, pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social – CLAES. A tradução é do Cepat.
É possível impor uma data limite para o reconhecimento das terras que são o lar de um povo indígena? É possível indicar um dia a partir do qual não será mais aceitável encontrar ou resgatar o território de um povo originário? Essa possibilidade, por mais inacreditável que possa ser, é o propósito da chamada lei do “marco temporal”.
O projeto, muito comentado nas últimas semanas, estabelece o dia 5 de outubro de 1988 como data de referência. Nesse dia, que foi uma quarta-feira, promulgou-se a nova Constituição brasileira. Como consequência, só serão reconhecidos os territórios indígenas que estavam ocupados até aquela data e, inclusive, os lugares em processo de designação deverão ou poderão ser revistos sob estas novas condições.
Essa normativa é um golpe muito duro contra os povos indígenas em vários aspectos encadeados a outros. Em um primeiro nível, modifica os mecanismos para delimitar seus territórios, tanto em relação ao passado como ao futuro. Em um nível seguinte, impõe condições sobre as atividades dentro desses territórios, abrindo as portas para usos militares e extrativistas. Em um terceiro nível, acaba cerceando o reconhecimento dos povos originários sob o embate de conservadores e bolsonaristas e a facilitação decorrente do apego de diferentes setores da coalizão de Lula da Silva aos extrativismos.
As normas e políticas contemporâneas, baseadas nos saberes ocidentais, não são suficientes e adequadas para compreender que não são apenas o reconhecimento de direitos individuais e o papel que uma redistribuição possa desempenhar que estão em jogo. Para muitos povos originários, esses territórios são mais do que um sustento físico e geográfico, já que são fundamentos de suas próprias essências como pessoas, comunidades e povos. Isso torna as implicações desta norma muito mais severas do que se alega.
A lei do “marco temporal” foi aprovada no último dia 30 de maio, na Câmara, sob duras críticas da sociedade civil e de organizações indígenas, e agora está no Senado. Lembremos são consideradas terras indígenas “tradicionalmente ocupadas”, se em 5 de outubro de 1988 atendiam simultaneamente quatro condições: habitadas por eles de forma permanente; utilizadas em suas atividades produtivas; indispensáveis para a preservação de recursos ambientais necessários para o seu bem-estar; e necessárias para a sua reprodução física e cultural, seguindo seus usos, costumes e tradições.
Em relação ao futuro, estabelece-se a proibição de ampliar as terras que já foram demarcadas, o que implica em congelá-las eternamente. Em relação ao passado, os processos iniciados anos atrás e que estejam em andamento deverão ser ajustados à nova norma. Isso poderá afetar, e inclusive suspender, múltiplos processos de demarcação que foram iniciados depois de 1988 (estimados em 764 áreas, nos últimos vinte anos) [1].
O projeto de lei estabelece condições sobre o uso e manejos das terras que limitam a autonomia indígena. Entre eles, a instalação de bases militares, a ampliação de rodovias, a exploração de energia e “riquezas” estratégicas. Tudo isso poderá ser implementado sem consultar as comunidades indígenas. Permite-se o exercício de atividades econômicas pelos indígenas, como agrícolas e florestais, mas também em cooperação ou por meio de acordos com terceiros que não sejam indígenas.
De acordo com a Constituição e as normas vigentes, os indígenas têm um poder de decisão sobre suas terras, ainda que com as conhecidas fragilidades e limitações. Apesar disso, as disputas por esses territórios se repetem há anos. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ao se referir a esse projeto de lei, deixa claro as questões em jogo. Afirmou que não tinha “nada contra os povos originários”, mas, em seguida, acrescentou uma conhecida advertência: “estamos falando de 0,2% da população brasileira que está sobre 14% das áreas do país” [2]. Suas palavras invocam mais uma vez a imagem de indígenas que monopolizam grandes áreas, impedindo o progresso do restante do país, uma metáfora muito repetida, por exemplo, no Peru, Bolívia, Equador e Colômbia.
De um ponto de vista conceitual, esse projeto de lei expressa uma tentativa de modificar o controle sobre o “acesso” e não sobre a propriedade da terra e dos recursos que contém. Não é exagero lembrar que acesso e propriedade são duas categorias distintas. Os indígenas são concebidos como “porteiros” que podem impedir, condicionar ou permitir a entrada da agricultura, pecuária, mineradoras e petroleiras, portanto, são aqueles que controlam o acesso.
Durante o governo Bolsonaro, o acesso foi “liberado”, pois o Estado deixou de salvaguardar os direitos dos povos indígenas, e o resultado foi uma avalanche de invasões de suas terras. Ao contrário, com o governo Lula, controles básicos foram retomados e, inclusive, invasores foram expulsos de alguns lugares. Isso levou os atores mais reacionários a redobrar as pressões por essa reforma legislativa.
Atualmente, os setores conservadores e o bolsonarismo deixam claro o seu desejo de anular esses controles indígenas sobre os acessos e, ao mesmo tempo, permitir que não-indígenas entrem nessas áreas para impor, por exemplo, a agropecuária e a mineração. Ignoram os indígenas em dois sentidos: como povos originários e como cidadãos brasileiros. Como justificativa, denunciam que já possuem “muitas” terras, que não estão capacitados para administrá-la e, inclusive, que não são “pessoas”, por isso seus territórios devem ser liberados. Defendem os extrativismos com argumentos simplistas, descrevendo-os como sucessos econômicos, e concebem os povos originários como atrasados e ignorantes que impedem o progresso. Não estão dispostos a discutir com eles os usos de suas terras, nem aceitam compartilhar seus lucros.
No campo progressista, alinhado ao “lulismo”, observam-se inações, apoios dissimulados ou explícitos a essas mudanças sobre o acesso, ainda que a partir de outros caminhos conceituais. Os extrativismos são defendidos como necessários para alcançar excedentes em dinheiro que permitam sustentar o Estado e programas em áreas sociais. Portanto, a questão do “marco temporal” passa a ser um elemento a mais nos assuntos da apropriação de excedentes econômicos, mas não como uma particularidade que determina o reconhecimento de um povo indígena.
Não há uma oposição aos extrativismos, o que ficou claro com a atitude do “lulismo” ao não apoiar claramente a decisão de impedir a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas. Simultaneamente, no legislativo, considera-se uma reforma ministerial que significaria esvaziar as competências do novo Ministério dos Povos Indígenas e dissolver as do Ministério do Meio Ambiente. Essas ações também não foram enfrentadas pelo núcleo central do governo de Lula da Silva [3]. Fica evidente que o “lulismo” deseja manter a exploração do petróleo, já que espera coparticipar dos excedentes que gera.
Estamos, portanto, diante de um forte ataque em várias frentes. De um flanco, buscam redefinir os territórios indígenas, ao passo que, do outro, fragiliza-se os ministérios do meio ambiente e assuntos indígenas para que sejam impedidos de exercer controles adequados. Isso, por sua vez, acaba afetando as opções e salvaguardas no reconhecimento dos povos indígenas.
Desse modo, o núcleo central do progressismo brasileiro está repetindo estratégias anteriores. Por ter optado pelos extrativismos, deve assegurar que operem e estimulem empresários e investidores, ao mesmo tempo em que se vê obrigado a conter as restrições ou controles que seus ministérios possam impor em assuntos ambientais e indígenas. Não ataca as ministras, mas também não as defende diante das investidas da direita que retiram suas atribuições. Também não menospreza os indígenas, como faz o bolsonarismo, mas não os defende da mesma forma que protege empresas e investidores.
Dessa forma, fica claro que o “lulismo” está disposto a sacrificar o reconhecimento dos indígenas em troca de um imaginário de redistribuição dos extrativismos. Isso também não é novo, porque os progressismos latino-americanos reduziram as diferentes dimensões da justiça ao campo econômico e, depois, voltaram a limitá-la se concentrando na redistribuição econômica (como os conhecidos auxílios em dinheiro e os estímulos ao crédito para o consumo popular). Ou seja, a justiça foi limitada ao menos duas vezes.
Seguindo o raciocínio progressista, o bem-estar dos indígenas deveria se apoiar na redistribuição econômica, utilizando instrumentos como auxílios financeiros, coparticipação nos lucros e nos rendimentos da exploração de seus recursos e, inclusive, compensações pelos impactos negativos que sofreram. Sob essa visão, uma comunidade indígena poderia se estabelecer em qualquer lugar, sempre e quando a redistribuição garanta esses meios econômicos. A pertença a um território específico não é vista como relevante para essa concepção da justiça.
Essas posições são possíveis porque as ideias de reconhecimento próprias dos saberes ocidentais não são suficientes, nem adequadas para essas problemáticas. Não se compreende, ou quando se entende, não se assume em toda a sua complexidade que para muitos povos originários o ambiente que os abriga é parte essencial de si mesmos como pessoas. Não são separáveis um do outro. Eles são também uma floresta e um rio. Dito de outro modo, suas essências, suas definições de si mesmos, suas identidades, estão enraizadas ou dependem desses ambientes.
Limitações semelhantes sofrem as ferramentas legais disponíveis. Seguem o clássico traço moderno. Por um lado, concebendo os indígenas como indivíduos e, por outro, a terra como suporte inerte. A terra tem “donos”, mas as pessoas não podem “ser” território. Não se consegue manejar adequadamente que uns e outros se determinam reciprocamente, ou que inclusive são o mesmo. E mais, não faz sentido assumir que algumas dessas condições são cumpridas ou não de acordo com uma data no calendário. É uma medida alheia e estranha a essas outras formas de sentir e pensar próprias dos indígenas.
Do mesmo modo, enganam-se aqueles que entendem que são possíveis compensações baseadas em conceder “terras” aos indígenas em outros lugares, acreditando que sendo relocalizados podem recriar suas comunidades. Não se compreende que muitas dessas demandas não são por uma superfície de solo que pode estar em qualquer lugar. Ao contrário, algumas comunidades só podem ser elas mesmas em espaços geográficos específicos. Transferi-las para outras localidades é cercear parte de sua essência.
Ao mesmo tempo, de algum modo, essa normativa resulta em congelar as distinções entre “indígena” e “não-indígena”. Como adverte Eduardo Viveiros de Castro, o pensamento judicial no Brasil entende que os povos indígenas são “bons” e “necessários”, mas, sobretudo, “suficientes”, motivo pelo qual se busca impedir acrescentar mais povos às listas oficiais daqueles reconhecidos. O “marco temporal”, além disso, impediria que grupos que redescubram sua ancestralidade indígena possam passar a reivindicar terras que lhes foram retiradas no passado. Evita-se o que muitos consideram perigoso: que grupos de não-indígenas tentem se tornar índios. “Tem muito muito branco, que nunca foi muito branco porque já foi índio, querendo virar índio de novo”, advertia Viveiros de Castro [4].
Este breve percurso mostra que em torno da nova lei considerada no Brasil estão as conhecidas disputas por interesses imediatos, como a busca do lucro por meio da exploração das terras indígenas. Mas, ao mesmo tempo, toda essa discussão é afetada por ideias e conceitos que, baseadas nos saberes ocidentais, são insuficientes e incompletos para lidar com a problemática dos indígenas. Apontar uma data limite, com toda a sua carga de temporalidade e normatividade, é uma clara impostura própria da modernidade, com enormes consequências, tanto imediatas quanto a médio prazo, colocando em xeque a sobrevivência dos povos indígenas e de seus mundos.
Sofre-se uma cegueira ontológica: ignora-se que o reconhecimento também está determinado por existir e viver em territórios específicos que também devem existir e viver. A nova lei não só supera a longa história dessa cegueira, como também a agrava. Privá-los de seus territórios é deixá-los incompletos como seres viventes. Aqueles que foram deslocados, décadas atrás, talvez não vão poder recuperar suas terras ancestrais, o que significará seu desaparecimento. Se isso ocorra, saberão que vão deixar de existir e terão que lidar com a dramática certeza de entender que não possuem mais futuro. Ao mesmo tempo, os povos que já ocupam territórios ficam amarrados porque a nova lei permite impor alterações ou artificializações em suas terras, que ao mudá-las também os prejudicam. Se seus ambientes forem transformados, não poderão mais ser eles mesmos.
Diante dessas situações, são necessárias mudanças nas ideias políticas e nas ações que desencadeiam. A categoria redistribuição precisa ser redefinida por outra concepção de justiça que recupere todas as suas dimensões e que, além disso, acrescente uma ambiental. O conceito de reconhecimento deve ir além da intersubjetividade entre as pessoas porque as concepções do si mesmo também são geradas em espaços específicos, em ambientes onde coparticipam entidades não-humanas. É por essas razões que o debate sobre o “marco temporal” é muito mais do que parece.
As ideias deste artigo fazem parte da reflexão sobre a condição necropolítica e as alternativas para políticas de outros modos, compartilhadas na série Otra Política – cuestiones y disputas, disponível em otrapolitica.substack.com
[1] Cimi: Marco Temporal coloca em risco todos os territórios indígenas no Sul, Sudeste e Nordeste, L. Gomes, Sul21, 26 maio 2023, disponível aqui.
[2] Lira defende aprovação do marco temporal para demarcação de terras indígenas, Agência Câmara de Notícias, Brasília, 30 maio 2023, disponível aqui.
[3] Governo Lula lava as mãos e Câmara dos Deputados aprova urgência do PL 490/2007, I.C. Cima y R. Liebgoot, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 25 maio 2023, disponível aqui.
[4] “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”, entrevista a Eduardo Viveiros de Castro, pp 41-49, em Povos indígenas no Brasil. 2001/2005, Instituto Socioambiental, São Paulo, 2006, disponível aqui.
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Por trás do marco temporal há uma cegueira dos modos de existir indígenas. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU