23 Mai 2023
"Um amigo meu parisiense diz que o divã do analista fica na rua." Assim Massimo Recalcati, 63 anos, nascido em Milão, explica por que nas suas sessões costuma fazer incursões para o espaço público. Entrevistado no espaço La Stampa pelo diretor Massimo Giannini, o psicanalista abordou os principais temas da atualidade a partir do livro A pugni chiusi. Psicoanalisi del mondo contemporâneo (De punhos fechados, em tradução livre, Feltrinelli), coletânea de seus últimos artigos.
A pugni chiusi, de Massimo Recalcati (Foto: Divulgação)
A entrevista é de Massimo Giannini, publicada por La Stampa, 22-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O subtítulo do livro é Psicanálise do mundo contemporâneo, da Covid à guerra na Ucrânia, das desigualdades à política italiana. Citando o profeta Isaías, a que hora estamos da noite?
Por ofício ouço constantemente os sofrimentos dos pacientes no meu consultório, mas também é verdade que nos últimos anos conseguimos superar muitas noites: a crise econômica, o terrorismo islâmico, a Covid, os conflitos incluindo o atual e a incerteza do destino do nosso país. Como psicanalista, não me interesso apenas pelas noites, mas também pelos anticorpos que nascem de tais experiências. Por exemplo, a pandemia de um certo ponto de vista foi um magistério, deixando claro que liberdade não é simplesmente individualidade e quando desconectada dos outros torna-se uma impostura. Um conceito também lembrado por um dos homens mais de esquerda dos últimos anos, o Papa Francisco, em sua encíclica sobre a fraternidade. E já para Nietzsche o verdadeiro amor não é para o próximo, mas para o distante. Sem perturbar a liberdade como participação de Giorgio Gaber. Em suma, a sociedade e as instituições fazem parte de nós, são vida, suporte à vida, como demonstrado pela vacinação que aconteceu graças à contribuição do exército.
Agora, porém, as instituições, ou pelo menos a maioria, são acusadas como ontem por Roberto Saviano de buscar um novo sistema autoritário e a fase populista italiana poderia levar a formas mais ou menos veladas de autoritarismo ou de autarquia. O que você acha?
Acredito que o populismo com Trump, o Brexit e a Europa Oriental, já nos mostrou sua componente autoritária que foi menos vista na Itália, porque o Cinco Estrelas trouxeram uma série de instâncias legítimas que a esquerda não representava mais. No máximo, tivemos o berlusconismo que, no entanto, mais que tendências autoritárias, representava a neolibertarismo do nosso tempo.
Berlusconi era mais libertário que liberal?
Sim, ele acreditava que a lei servisse para fazer o que se quer. Lembro-me das numerosas normas ad personam. O salvinismo, por outro lado, foi um fenômeno diferente, mesmo que ainda anti-institucional, ou seja, sem o pensamento do Estado. Meloni, pelo contrário, tem isso e é um dos motivos de sua vitória eleitoral. O FdI apresenta-se como uma força que tenta enfrentar o governo da nação. Não concordo com quase nada de seu trabalho, ainda que por honestidade intelectual devo dizer que defendo completamente sua posição clara e definida na política externa. Todo o resto me deixa perplexo.
Mas está em ato um projeto de restrição à liberdade, como denuncia Saviano?
Eu não teria tanta certeza. Da mesma forma durante a pandemia me deixavam em dúvida as posições de alguns intelectuais que falavam de uma ditadura sanitária. Por um senso de responsabilidade civil, portanto, não enfatizaria esse risco democrático. Também porque ser democráticos é um trabalho árduo, um esforço, mesmo para mim que sou de esquerda. O filósofo Deleuze dizia que para ser verdadeiramente antifascista é preciso lidar com o fascista que cada um carrega dentro de si. Nesse sentido, a democracia comporta o luto do pensamento único e a difícil aceitação do pluralismo. Garantir o pluralismo foi um problema histórico do antifascismo. Aos 16 anos fiz parte do Lotta continua por dois anos e conheci o germe pelo qual, em nome do antifascismo, comportamentos fascistas podem ser justificados.
Refere-se apenas ao passado?
Na época, apenas Pannella ou Pasolini tiveram a coragem intelectual do inconformismo. Naqueles anos, qualquer um que dissesse algo diferente era considerado um infame. Voltando ao presente eu acho que, por exemplo, as garotas que rasgaram os cartazes eleitorais de Meloni em Roma cometeram um ato fascista.
Mas rotulando qualquer forma de dissenso como fascismo não se corre o risco de cair na armadilha ideologia da contraposição entre fascistas e antifascistas?
O do cartaz foi um ato intolerante e não educa para a democracia, que é um esforço ético. Claro que não gosto daquele cartaz e entendo aquelas garotas, mas eu também suportei em Milão a propaganda de Gallera, que não teve o senso de ridículo de não se reapresentar.
Nesse período algumas categorias, como os casais homoparentais, veem seus direitos limitados e ontem no Salone houve um protesto contra a ministra Roccella, que a impediu de falar, e uma polêmica sobre o diretor Lagioia que não conseguiu moderar a contestação.
Você vê fascismo nisso também?
O direito à contestação é um dos fundamentos da democracia, tal como a tutela das minorias, como a família homoparental. Infelizmente, o governo parece insensível a isso e propõe uma imagem de família natural que nega os vínculos de amor ou adia uma lei sobre o fim da vida. Devemos nos opor, mas cultivando o valor da democracia, e a Itália está tendo dificuldades com isso. Eu sempre estive aberto à vivacidade dos jovens e por isso apreciava Renzi, que entre tantos deméritos, no entanto, resgatou muitos jovens das sereias populistas, e apoio Schlein e seu movimento que tenta atrair as pessoas para a política e rejuvenescer a esquerda, mas como adulto devo dizer que é necessário um pensamento longo, como dizia Berlinguer. Enquanto, infelizmente, eu ainda vejo o fascismo no coração de muitos democratas. Há homens que teorizam o pluralismo e depois são machistas ferrenhos em casa. Ou mulheres que se dizem livres em público, prontas para se submeter a maridos sádicos.
Você conhece a fundo o universo juvenil, somos demasiado indulgentes com os garotos? Vamos pensar sobre os estudantes que acampam contra o preço dos aluguéis enquanto alguns outros dão de ombros.
O meio intelectual, digamos assim, é surdo às instâncias do mundo juvenil. Um famoso empresário ligado à primeira-ministra sugere que não serve estudar. Como eles poderiam pegar um protesto como esse e traduzi-lo em termos políticos? Sem falar no ministro Valditara, que lembrou o valor educativo da humilhação pública. Não se deve compactuar com isso, mas para problematizar a minha posição, quando Meloni falou sobre mérito, estou de acordo. E o sou para preservar as condições de partida iguais de acordo com a Constituição. Uma específica esquerda rejeita palavras como mérito e segurança, pensando que pertencem à direita. Mas não é verdade.
O mérito não diz respeito tanto aos estudantes quanto aos professores aos quais não aplicamos nenhum critério para avaliar quem tem condições de ensinar. Podemos falar sobre isso ou temos que nos bater sempre com o conservadorismo dos sindicatos?
No livro não teve tempo de falar sobre Meloni, que figura ela é: uma mulher sozinha no comando ou o pai que estávamos procurando?
Vou pensar nisso, e prometo que escreverei a respeito no La Stampa. Para ser muito franco, devo dizer que a biografia de Meloni chama a minha atenção, e não apenas negativamente. Ela não é uma pessoa privilegiada, viveu uma profunda carência afetiva, sobreviveu a uma cultura machista como a da direita, jurou sobre a Constituição, portanto fez um percurso. Mas eu me pergunto, com seu pai ausente e uma filha sem casamento, por que não é sensível como deveria à complexidade dos laços familiares ou por que pensa que para ser pais é necessário e suficiente ser dois heterossexuais?
E qual é a sua resposta?
Deixe-me pensar sobre isso um pouco mais.
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“Correta a luta em defesa dos direitos, mas existe fascismo no coração de tantos democratas”. Entrevista com Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU