23 Mai 2023
A perda de espécies silvestres nunca foi tão rápida na história da humanidade. A poluição marinha foi multiplicada por 10, no último meio século, e 75% da superfície terrestre foi alterada pelos humanos. Nos últimos 40 anos, a superfície urbana duplicou. Mais de um milhão de espécies animais e vegetais estão em perigo de extinção.
Esses cinco dados podem não nos dizer muito por si mesmos, mas servem para ilustrar até que ponto os seres humanos entraram em conflito com a biosfera terrestre, colocando em risco nossa própria sobrevivência. Sem biodiversidade, não há Terra e não há Homo sapiens.
Esses cinco dados também fazem parte dos últimos relatórios da Plataforma Intergovernamental sobre Diversidade Biológica e Serviços Ecossistêmicos (IPBES). Esse órgão, assim como faz o IPCC com a mudança climática, reúne e analisa o conhecimento existente sobre a perda de biodiversidade e o publica para que as informações possam servir a governos, empresas e organizações.
Desde 2019, a IPBES é presidida pela colombiana Ana María Hernández Salga. Nascida em Bogotá, a especialista em relações internacionais e direito ambiental nos atende de Montreal, no Canadá, onde mora e ocorreu, em dezembro, a última Conferência das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, a COP15.
A entrevista é de Juan F. Samaniego, publicada por La Marea/Climática, 22-05-2023. A tradução é do Cepat.
A IPBES é a responsável por monitorar a saúde da biodiversidade no planeta. Como ela está?
A IPBES reúne diferentes sistemas de conhecimento sobre biodiversidade. Analisamos e sintetizamos as informações já existentes sobre biodiversidade e as preparamos para que os tomadores de decisão possam entender o estado em que a biodiversidade se encontra e como desenvolver suas políticas com base na ciência. Entregamos informações sólidas, claras, robustas e objetivas. E os tomadores de decisão veem se a usam ou não.
E como está a biodiversidade? Bem, sem entrar em detalhes, não está bem, e não digo isso por fatalismo. De forma objetiva, estamos perdendo biodiversidade, há extinção de espécies, perdemos capacidades e funções dos ecossistemas... Não estamos no melhor momento em termos de conservação da biodiversidade. No entanto, se analisarmos os casos locais, sim, vemos que houve recuperação de espécies e de ecossistemas. O panorama geral é complexo, tendendo ao negativo, mas, localmente, há cada vez mais esforços positivos.
É bom ir reunindo razões para manter a esperança.
Sempre, a esperança é a última que se perde. Mas a esperança deve estar baseada na nossa capacidade de torná-la algo concreto. Não podemos esperar que a biodiversidade se salve sozinha ou esperar que, sem fazer a nossa parte, o mundo seja mais sustentável. A esperança vem com responsabilidades compartilhadas.
O último relatório de avaliação global publicado pela IPBES, em 2019, é claro: nas últimas décadas, a quantidade e a diversidade de espécies silvestres diminuíram drasticamente. Quais são as consequências para o ser humano?
Dependemos, vivemos e interagimos com a biodiversidade. Não estamos isolados. Dependemos da biodiversidade para desenvolver nossos remédios e os tecidos que vestimos, para nos aquecer e comer, para nos divertir. A natureza e o ar livre também são importantes para a nossa saúde mental. Além disso, a dimensão espiritual do ser humano está ligada à biodiversidade e aos processos naturais.
Em geral, a Mãe Terra, a natureza, é o nosso suporte. A biodiversidade nos ajuda a regular o ar, a água, o clima... Temos tantos usos da biodiversidade incorporados em nosso dia a dia que se eliminamos a biodiversidade, eliminamos o suporte vital do ser humano. Sem a biodiversidade não podemos viver. E não estou sendo em nada exagerada.
A Nasa gasta mais de 3 bilhões de dólares por ano para fazer com que a Estação Espacial Internacional mantenha as condições mínimas para servir como suporte vital aos astronautas. São 3 bilhões para que haja oxigênio, água e comida. Na Terra, contamos com tudo isso graças à biodiversidade.
Claro. Além disso, a biodiversidade é muito importante para a nossa economia. A agricultura depende de uma porcentagem altíssima dos polinizadores, da saúde dos ecossistemas de solos, da existência de variedades de espécies... Existe uma relação de enorme codependência com a biodiversidade.
Quando a IPBES publicará a próxima avaliação global da biodiversidade?
O último relatório global foi aprovado em 2019. Mais recentemente, aprovamos um relatório sobre usos sustentáveis e outro sobre valores da biodiversidade. Na próxima reunião plenária, em agosto, aprovaremos um sobre espécies exóticas invasoras e revisaremos as prioridades para novas avaliações. Como resultado da conferência da Convenção sobre Diversidade Biológica [a COP15], ocorrida em dezembro, solicitaram-nos uma atualização da avaliação global da biodiversidade.
A ideia é que se a plenária der sinal verde, façamos uma análise global que deverá ser publicada antes de 2030, data em que a maior parte dos objetivos do novo Marco Global Kunming-Montreal da Diversidade Biológica deveria ser alcançada. Devemos fazer um acompanhamento para ver se o mundo consegue cumprir as metas de redução da perda de biodiversidade.
Não sabemos quase nada sobre muitas espécies, muitas outras ainda não foram descobertas. Por exemplo, o mundo microscópico é um grande desconhecido. Quais são as chances de que estejamos subestimando a atual perda de biodiversidade?
Ufa, muitíssimas. Nós buscamos ser os mais verdadeiros possíveis com a informação científica que já existe. Dependemos das informações que tenham sido publicadas. Em muitas ocasiões, obter essas informações é complicado. Os próprios cientistas estão cientes das grandes lacunas de conhecimento que existem e não é possível avaliar algo que não se conhece.
Onde estão as maiores lacunas de conhecimento?
Cada tema tem as suas. Em cada avaliação, buscamos destacar onde estão as grandes lacunas para apresentar oportunidades de pesquisa e desenvolvimento de conhecimento. Cada tema tem lacunas importantes em sua parte biológica, mas também na política, social, econômica... Um vazio gigantesco, por exemplo, é a dos cenários futuros em nível local. Os modelos para cada um dos países e regiões deveriam ser muito mais robustos para que os tomadores de decisão possam agir com conhecimento de causa real.
Nos próximos anos, as medidas que tomarmos marcarão esses cenários futuros. Como determos a perda de biodiversidade?
Ah, imagine. Se eu responder isso, ganho na loteria [risos]. É um tema de múltiplas responsabilidades, em muitos níveis. Cada um de nós tem direitos e obrigações nesse assunto, de governos a indivíduos. Uma parte importante das soluções passa pela conscientização e a educação, e penso que já estamos vendo uma mudança de mentalidade importante nos mais jovens.
No início da COVID-19, houve um boom no interesse pela biodiversidade porque sua destruição foi associada aos impactos na saúde humana. Mais recentemente, aumentou o interesse sobre a relação entre mudança climática e perda de biodiversidade. Mas há um problema: a perda de biodiversidade é um processo lento e pouco impactante para as pessoas.
Em nosso dia a dia, nós a percebemos pouco.
Agora mesmo, olho pela janela e vejo árvores cheias de neve [a entrevista foi realizada em dezembro] e sei que vão brotar na primavera. Posso pensar que tudo está divino. E mais, há pessoas que até veem a perda de espécies como algo positivo, por exemplo, com os insetos irritantes que desaparecem. Com tudo isso, quero dizer que a percepção da perda de biodiversidade é complexa.
No entanto, cada vez mais governos, empresas e organizações civis estão se envolvendo na proteção da biodiversidade e no uso sustentável dos recursos naturais. Penso que estamos em um processo de transição. Ainda assim, do ponto em que estamos até conseguirmos deter a perda de biodiversidade há um caminho bastante longo.
Mantemos um sistema econômico que depende da extração de recursos e processos institucionais que são permissivos com a superexploração da natureza. Enquanto não trocarmos de chip, enquanto não pararmos para pensar se precisamos de tudo o que compramos e consumimos, será difícil deter as pressões aceleradas sobre a biodiversidade.
Muitas das soluções propostas para deter a perda de biodiversidade entram em conflito com esses sistemas econômicos extrativistas. Contudo, não fazer nada também compromete sua viabilidade.
A ideia é fazer algo, do pequeno ao grande. Há propostas sobre a mesa, organizações que estão colocando dinheiro, projetos que podem começar a girar a roda. Seria preciso, por exemplo, que a Organização Mundial do Comércio se sentasse para analisar as alternativas que existem para estabelecer um comércio sustentável global. O mesmo acontece com a agricultura e com a expansão das infraestruturas.
Quando nós, ambientalistas, estamos juntos, é tudo muito bonito, todos sabemos o que se deve fazer. Contudo, não nos sentamos para falar de verdade com aqueles que não estão fazendo bem as coisas em nível ambiental. A grande maioria das empresas e organizações não são sustentáveis. São elas que precisamos subir a bordo.
Esquecemos que dependemos dos sistemas biológicos e geológicos do planeta, assim como do restante das espécies?
Às vezes, parece que nós, seres humanos, somos diferentes, separados do mundo natural. Contudo, essa divisão é totalmente artificial e não resiste a nenhum tipo de análise.
Às vezes, é difícil imaginar o quanto perdemos quando perdemos a biodiversidade.
Existem muitos exemplos concretos. Das frutas e verduras, 75% dependem da polinização, mas, nos últimos anos, estamos perdendo grandes quantidades de polinizadores. Aqui, é fácil enxergar: a perda de biodiversidade implica uma perda da capacidade de produzir frutas e verduras que são fontes de alimento e de comércio e atividade econômica. O impacto é direto.
Sabemos que mais de 66% do oceano está afetado pela poluição e os microplásticos. O mar é também uma grande despensa para os seres humanos. Na medida em que o poluímos, nós poluímos as espécies que estamos comendo. Ou seja, nossa própria poluição retorna ao prato.
Antes, citava brevemente o novo marco de ação para a biodiversidade, alcançado na COP15. Como você o avalia?
Esses tipos de negociação sempre buscam os mínimos que sejam melhores para todos. Penso que o Marco Global da Diversidade Biológica é um conjunto de mínimos muito positivos que cobrem grande parte das problemáticas associadas à biodiversidade. Contudo, também acho que falta trabalhar mais a fundo os motores indiretos da perda de biodiversidade, como o comércio.
O marco global da biodiversidade deve integrar todas as políticas dos países. Caso contrário, não será eficaz. Para resumir, é um marco que não foi tão ambicioso como se esperava inicialmente, mas é positivo, e só pode ser alcançado se os países o implementarem desde já e em todas as suas decisões.
Como conseguir que o novo marco não fracasse onde o seu antecessor fracassou, nas Metas de Aichi?
[Suspiro]. Aichi não se cumpriu por muitas razões. Os países não identificaram suas reais prioridades em termos de conservação e de uso sustentável da biodiversidade. Muitos países responderam às avaliações do acordo de forma artificial. Só foram coletadas informações das ações positivas, mas não se fazia uma análise crítica das lacunas existentes e das dificuldades. Além disso, bem poucos países têm uma referência para medir sua perda de biodiversidade.
A realidade dos processos de degradação não aparece refletida nas avaliações. Contudo, quando fazemos uma análise criteriosa, percebemos a gravidade da situação.
Faltou financiamento?
Há países que citam a falta de financiamento como a causa do fracasso de Aichi, mas acredito que foi mais falta de organização no financiamento. Além disso, era importante fazer uma análise crítica dos problemas, o que não aconteceu.
Por outro lado, as políticas dos países mudam a cada certo período. Cada governo vem com suas ideias próprias, e isso é perfeito. Mas, muitas vezes, o que um governo constrói, o seguinte tenta desconstruir, em um processo que consome tempo e recursos. Quando tudo se reduz a problemas de institucionalidade e governança, perde-se a capacidade de enfrentar os problemas associados à biodiversidade.
Considerando essas lições, o que precisaria mudar para que esse novo marco não acabe em nada?
É importante que o financiamento seja bem organizado. Precisamos de mais recursos, sim, mas temos que ser realistas, estamos em um momento de importante crise global. Portanto, o pouco que há deve ser muito bem aproveitado. Por outro lado, é importantíssimo que os países façam suas próprias avaliações da biodiversidade, para que conheçam quais são suas prioridades e seus vazios. Por exemplo, há países que já cumprem o objetivo de proteger 30% de sua superfície.
Outro exercício muito importante é que, quando o marco global for aterrissado no nível local, dever ser usado para mudar as políticas existentes. Com Aichi, muitos países utilizaram o que já tinham feito para justificar que haviam cumprido as metas. Contudo, é preciso fazer o contrário, ajustar as políticas nacionais ao que o acordo demanda.
Uma das prioridades do novo marco é a eliminação de subsídios que prejudicam a biodiversidade. Por que continuamos subsidiando o que põe em xeque o nosso futuro?
Se analisamos o que se subsidia, como os subsídios destinados a proteger a produção agrícola, vemos que retirá-los tem impactos sociais e econômicos muito relevantes. Em termos ambientais, esses subsídios geram incentivos perversos que impactam a biodiversidade e expandem a fronteira agrícola.
Contudo, a luta para deter a perda de biodiversidade não é apenas um tema biofísico, mas também moral e ético. Temos que pensar até onde vamos sacrificar o bem-estar daqueles que recebem os subsídios em prol da conservação e quais alternativas essas pessoas têm. Precisamos de um grande contrato social para ser sustentáveis. Precisamos de um acordo com as pessoas que dependem das atividades insustentáveis. Não podemos deixá-las na rua.
O novo marco também inclui o reconhecimento dos territórios e direitos dos povos indígenas. Qual é o seu papel na proteção da biodiversidade?
Esses povos têm muito claro seu papel, sempre tiveram. São guardiões e defensores do mundo natural. Cultural e cosmogonicamente incorporam a responsabilidade de cuidar da Terra e aproveitá-la de modo que não se esgote. Dentro de suas culturas e histórias, plasmam sistemas que são sustentáveis.
Ocorre que as comunidades e os povos indígenas não contam com o reconhecimento suficiente para realizar sua visão em seus territórios. Além disso, nos espaços indígenas também há agentes externos que chegam com diferentes propostas de exploração da natureza, o que gera conflitos.
Garantir os direitos dos povos indígenas para que possam trabalhar em seus territórios de acordo com suas circunstâncias, sua cultura e seus planos é positivo. Contudo, também não se deve romantizar. Há também casos de comunidades indígenas que se dedicam a explorar a biodiversidade de forma insustentável. Além disso, em muitos países do mundo, a situação de segurança nos territórios e as complexidades sociais e econômicas tornam muito difícil o cumprimento dessas boas intenções.
A mudança climática e a perda de biodiversidade são duas crises paralelas. Por que se dá mais atenção à primeira?
Sempre se deu mais atenção à mudança climática. Os seres humanos a sentem mais no dia a dia. Sentimos o frio e o calor, sofremos as chuvas torrenciais e as secas... A variabilidade do clima é claramente percebida. Lembro-me, por exemplo, na Colômbia, de ver como o Nevado del Ruiz [um vulcão] perdia neve e perdia neve até que ficou quase como um vulcão pelado. Vê-se que há um processo de mudança climática em curso e que há claros impactos naturais, humanos e econômicos.
O ser humano reage melhor ao imediato. A perda de biodiversidade não se vê a olho nu. Na cidade, nem nos inteiramos. Nas zonas rurais, no campo, sim, é notada, mas é um declínio gradativo. Como não se percebe o real impacto da perda de biodiversidade, parece que não importa tanto. A crise da biodiversidade é difícil de incorporar na consciência do dia a dia das pessoas.
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“Se eliminamos a biodiversidade, eliminamos o suporte vital do ser humano”. Entrevista com Ana María Hernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU