04 Outubro 2019
Trump investe contra China e Irã; Boris Johnson ameaça um Brexit devastador: a ultradireita chantageia para impor seu projeto. Mas um país do Sul, oprimido pelo FMI e breve com novo governo, terá meios para apavorar a oligarquia financeira.
O artigo é de Nouriel Roubini, professor de Economia na Stern School of Business na Universidade de Nova York, executivo-chefe da Roubini Macro Associates e foi o primeiro economista de repercussão internacional a prever a grande crise financeira de 2008, publicado por OutrasPalavras, 01-10-2019. A tradução é de Antonio Martins.
No clássico jogo de quem vai morrer primeiro [game of chicken], dois pilotos aceleram um contra o outro e o primeiro a desviar está derrotado. Se nenhum desvia, os dois colidem de frente e provavelmente morrerão. No passado, tais cenários foram estudados para apontar os riscos produzidos por rivalidades entre grandes potências. No caso da crise dos mísseis cubanos, por exemplo, os governantes norte-americanos e soviéticos estavam diante da escolha de perder a credibilidade ou arriscar um choque catastrófico. A questão, sempre, é encontrar um compromisso que poupe as vidas e as faces de ambas as partes.
Há, nesse momento, diversos jogos geoeconômicos de quem vai morrer primeiro em curso. Em cada caso, a ausência de um compromisso pode levar a uma colisão, muito provavelmente seguida de uma recessão global e uma crise financeira. A primeira e mais importante disputa é entre os EUA e a China, sobre comércio e tecnologia. A segunda é a disputa crescente entre os EUA e o Irã. Na Europa, ocorre uma provocação crescente entre o primeiro ministro inglês Boris Johnson e a União Europeia, sobre o Brexit. Por fim, há a Argentina, que pode entrar em rota de colisão com o Fundo Monetário Internacional após a provável vitória do peronista Alberto Fernández nas eleições presidenciais do próximo dia 27.
No primeiro caso, um conflito aberto – comercial, monetário, tecnológico e “guerra fria” – entre os EUA e a China aprofundaria o declínio já em curso na produção da indústria, no comércio e nos gastos de capital, expandindo-o para o setor de serviços e o consumo privado. Os EUA e a economia global entrariam em severa recessão. De modo parecido, um confronto militar entre os EUA e o Irã levaria os preços do petróleo acima dos 100 dólares por barril, deflagrando estagflação (uma recessão combinada com inflação em alta). É o que ocorreu em 1973 durante a guerra do Yom Kippur; em 1979, na sequência da revolução iraniana; e em 1990, depois da invasão do Kuwait pelo Iraque.
Um estouro relacionado ao Brexit poderia não causar a recessão global por si mesmo, mas certamente a desencadearia na Europa, e a projetaria em seguida sobre as outras economias. O pensamento convencional é de que um Brexit não negociado [hard Brexit] levaria a uma severa recessão no Reino Unido mas não na Europa, porque esta depende menos do comércio com Londres que vice versa. É ingenuidade. A eurozona já está sofrendo uma desaceleração aguda e está à beira de uma recessão industrial. Além disso, a Holanda, Bélgica, Irlanda e Alemanha – bem próximas da recessão – apoiam-se pesadamente no mercado de exportações do Reino Unido.
Com a confiança empresarial na eurozona já deprimida, como resultado das tensões comerciais sino-americanas, um Brexit caótico seria a gota d’água. Imagina milhares de caminhões e carros em fila, para preencher os novos papéis de alfândega em Dover (Inglaterra) e Calais (França). Além disso, uma recessão europeia teria efeitos em cadeia, interrompendo o crescimento em todo o mundo e possivelmente desencadeando um surto de riscos. Poderia inclusive levar a novas guerras cambiais, se o valor do euro e da libra caíssem muito diante de outras moedas (em especial o dólar).
Uma crise na Argentina também teria consequências globais. Se Alberto Fernández derrotar Mauricio Macri e depois torpedear o programa do país com o FMI, de 57 bilhões de dólares, a Argentina pode viver uma repetição da crise cambial e da moratória e 2001. Isso poderia levar a fuga generalizada de capitais dos mercados emergentes, possivelmente desencadeando crises na Turquia, Venezuela, Paquistão e Líbano, altamente endividados, e complicando as coisas na Índia, África do Sul, China, Brasil, México e Equador.
Em todos estes quatro cenários, ambos os lados querem salvar sua própria face. Donald Trump quer um acordo com a China, para estabilizar a economia e os mercados antes de sua tentativa de reeleição em 2020; Xi Jimping também quer um compromisso, para interromper a desaceleração econômica de seu país. Mas nenhum que ser a “galinha”, porque isso solaparia sua situação política doméstica, e empoderaria seus adversários. Ainda assim, sem um acordo até o final deste ano, uma colisão será provável. À medida em que os ponteiros do relógio avançam, um mau prognóstico torna-se cada vez mais possível. Trump também pensou que poderia chantagear o Irã, ao abandonar o acordo nuclear internacional (JCPOA) e impor severas sanções. Mas os iranianos responderam ampliando suas ações regionais. Sabem muito bem que Trump não pode bancar uma guerra aberta e que os preços do petróleo disparariam. Além disso, o Irã não quer, até que ao menos algumas das sanções sejam retiradas, entrar em negociações que dariam a Trump uma chance de ficar bem na foto. Como ambos os lados estão relutantes em piscar primeiro – e com a Arábia Saudita e Israel incitando o governo Trump – o risco de um acidente é cada vez maior.
Talvez inspirado por Trump, Boris Johnson pensou ingenuamente que poderia usar a ameaça de um Brexit duro para chantagear a União Europeia (UE) e forçá-la a oferecer condições de retirada britânica melhores que as obtidas por sua predecessora. Mas agora que o Parlamento aprovou legislação para evitar um Brexit não negociado, Johnson envolveu-se em dois jogos de quem morre primeiro simultâneos. Um acordo com a UE sobre a fronteira entre a Irlanda e o Reino Unido ainda é possível antes do prazo final de 31 de outubro, mas a possibilidade de um cenário de Brexit duro de fato também continua crescendo.
Na Argentina, talvez os dois lados estejam representando. Alberto Fernández quer um mandato eleitoral claro e faz campanha lembrando que Macri e o FMI são os culpados pelos problemas do país. O poder do FMI é óbvio: se ele retiver permanentemente a próxima parcela de US$ 5,4 bilhões de empréstimo e terminar o “resgate”, a Argentina sofrerá outro colapso financeiro. Mas Fernández também está em situação de poder, porque uma dívida de US$ 57 bilhões é um problema para qualquer credor. A capacidade do Fundo para “ajudar” outras economias em apuros seria restringida por um colapso argentino. Como nos casos anteriores, um acordo que permita salvar as faces é melhor para todos, mas um choque e o derretimento financeiro que se seguiria não podem ser descartados.
O problema é que um compromisso exige que ambas as partes reduzam as tensões, e a lógica tática dos jogos de quem morre primeiro premia o comportamento enlouquecido. Se eu posso fazer parecer que removi meu volante, o outro lado não terá escolha exceto desviar. Mas se ambos os lados jogarem fora seus volantes, a colisão será inevitável.
A boa notícia é que, nos quatro cenários acima, os dois lados ainda estão falando entre si, ou podem estar abertos ao diálogo sob certas condições que lhes permitam salvar a face. A má notícia é que todos os lados ainda estão muito distantes de algum tipo de acordo. Pior: há grandes egos em cena, alguns dos quais prefeririam chocar-se que ser vistos como galinha. O futuro da economia global, portanto, depende de quatro jogos de temeridade que podem, cada um deles, terminar com qualquer resultado.
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Os quatro gatilhos da nova crise global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU