08 Mai 2023
“Casos recentes de empresas farmacêuticas que aumentam o preço das vacinas que salvam vidas confirmam mais uma vez que precisamos de uma nova abordagem para a inovação farmacêutica. A governança do setor de saúde e o financiamento público devem promover a colaboração e a solidariedade, não a competição de soma zero e a vigilância”. A reflexão é de Mariana Mazzucato, professora da cátedra RM Phillips de Ciência e Tecnologia da Universidade de Sussex, em artigo publicado originalmente por Project Syndicate e reproduzido por El Economista, 02-05-2023. A tradução é do Cepat.
Como teatro político, será difícil superar o recente questionamento do presidente do Comitê de Saúde, Educação, Trabalho e Pensões do Senado dos Estados Unidos, Bernie Sanders, feito ao CEO da Moderna, Stéphane Bancel, que teve que explicar por que a sua empresa quadruplicou o preço da vacina que fabrica contra a Covid-19.
Embora Sanders esteja certo ao dizer que a Moderna deve suas vacinas aos bilhões de dólares dos contribuintes dos Estados Unidos que recebeu como ajuda, a decisão de aumentar seu preço não deve surpreender. É do conhecimento de todos que as empresas farmacêuticas sempre ganham uma fortuna em crises como a pandemia, e os contribuintes estadunidenses sempre serão extorquidos enquanto não consertarmos um sistema que obviamente está quebrado.
No começo da pandemia, o governo federal dos Estados Unidos poderia ter estabelecido um poderoso precedente se tivesse alinhado seus investimentos em vacinas com princípios do bem comum, como o acesso equitativo e a acessibilidade, mas escolheu “o mesmo de sempre” e agora testemunhamos os resultados previsíveis: a Moderna está fazendo tudo o que pode para maximizar seus lucros e o valor para os acionistas, mesmo às custas da saúde pública. A empresa afirma que está aumentando os preços para compensar a perda de receita, mas sua vacina é decorrente da inteligência coletiva.
Os Institutos Nacionais de Saúde (INS) dos Estados Unidos não apenas investiram bilhões de dólares para criar a vacina; além disso, possuem as patentes das modificações mRNA, das quais depende a vacina da Moderna. Após vários anos de disputas sobre as patentes, o INS concordou em conceder à Moderna uma licença da sua tecnologia por 400 milhões de dólares. Do ponto de vista da Moderna, foi um excelente acordo. Esses 400 milhões geraram 36 bilhões de dólares em vendas em todo o mundo, receita extraordinária que se refletiu em gigantescos pacotes de remuneração para seus executivos. Durante a pandemia, o próprio Bancel vendeu ações por 400 milhões de dólares, e sua polpuda indenização em caso de demissão (que receberá se a empresa for vendida e ele demitido) aumentou para quase 1 bilhão de dólares (100 vezes o que era em 2019).
Sanders está certo quando destaca a ajuda de US$ 1,7 bilhão que a Moderna recebeu do governo para desenvolver sua vacina contra a Covid-19 e quando condena os aumentos injustificados de preços da empresa. Os preços dos medicamentos deveriam refletir o custo total da pesquisa e desenvolvimento, fabricação e distribuição (que, neste caso, incluem contribuições públicas substanciais para P&D).
Mas os problemas do "o mesmo de sempre" não terminam com as volumosas remunerações dos CEOs ou com a privatização de lucros financiados com o dinheiro dos contribuintes. A Moderna também se recusou a compartilhar sua tecnologia, por exemplo, com o Centro Sul-Africano de Compartilhamento de Tecnologia mRNA, uma iniciativa para acelerar o desenvolvimento de vacinas em países de baixa e média renda. Embora a Moderna tenha prometido não aplicar as patentes durante a pandemia. O excesso de patentes continua sendo uma enorme potencial barreira para o desenvolvimento e a distribuição de tratamentos para outras doenças, como HIV e câncer.
São necessárias medidas concretas para garantir a disponibilidade gratuita de vacinas que salvam vidas nos pontos de uso de todos os sistemas de saúde. A proteção da saúde pública requer um ambiente de inovação completamente diferente do existente, porque depende de todos os atores trabalhando juntos de forma dinâmica para compartilhar o conhecimento e acelerar o progresso. A governança do setor de saúde deve estimular a colaboração e a solidariedade entre os países, em vez da competição e das restrições ao desenvolvimento de produtos capazes de salvar vidas. A pandemia já mostrou por que precisamos dessa mudança de perspectiva.
Com um enfoque centrado no bem comum, Estado, empresas e comunidades se uniriam para pactuar regras e obrigações relacionadas à propriedade e à forma de compartilhar conhecimentos, com o objetivo de maximizar os benefícios para a saúde global. Isso requer uma nova estrutura de governança que oriente sistematicamente a inovação e o conhecimento em direção a objetivos sociais específicos.
É fundamental garantir o acesso e a acessibilidade. A criação de vacinas tão caras que apenas um número limitado de pessoas pode acessar gera pouco valor público. Para evitar que interesses escusos influenciem indevidamente a política, o acesso equitativo deve ser um dos objetivos explícitos do processo de inovação em saúde desde o início.
Para cumprir ambiciosas missões de saúde pública, os governos terão que recuperar parte do equilíbrio entre os incentivos privados e o interesse público, o que implica a necessidade de elaborar novos planos legais para as patentes e outros tipos de propriedade intelectual. E para criar parcerias mais simbióticas, os governos devem rever os contratos fundadores das parcerias público-privadas. Os consórcios e compromissos de concessão de patentes e novas oportunidades de licenciamento podem levar a um maior compartilhamento do conhecimento, e as licenças compulsórias poderiam ajudar os países a aproveitar ao máximo o conhecimento criado por meio da pesquisa.
Em termos mais amplos, quando as empresas se beneficiam do investimento público, esses subsídios, garantias, créditos, resgates e contratos de fornecimento deveriam incluir condições destinadas a maximizar o benefício público. A vacina da Oxford-AstraZeneca, por exemplo, teve que atender ao requisito de poder ser armazenada em temperaturas normais, o que facilitou seu transporte e distribuição mundo afora. A vacina da Pfizer-BioNTech, pelo contrário, deve ser armazenada entre -80°C e -60°C, o que implica discriminação entre mercados.
Da mesma forma, os contratos de aquisição devem ser condicionados ao compartilhamento de conhecimento, ao reinvestimento de lucros ou a melhores condições de trabalho para os funcionários de uma empresa. Esses requisitos atrelados aos fundos públicos são fundamentais para garantir os retornos sociais concretos sobre o investimento.
A disseminação de doenças infecciosas como a Covid-19 destaca a interconexão do mundo moderno e a importância da coordenação internacional para alcançar objetivos compartilhados como a saúde para todos. Os governos de todo o mundo devem unir forças para impor regras rígidas sobre a propriedade intelectual, a fixação de preços e a produção das empresas farmacêuticas.
O governo dos Estados Unidos é a maior fonte de financiamento para a inovação em saúde e o maior comprador de medicamentos, o que o coloca em uma posição única para conduzir a economia global em direção a um futuro mais inclusivo e saudável. Mas ele terá que fazer algo mais do que apenas envergonhar publicamente os executivos das farmacêuticas, que operam em um sistema projetado para beneficiá-los. Quando o sistema muda, seu comportamento também muda.
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Produzir remédios... de maneira correta. Artigo de Mariana Mazzucato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU