29 Abril 2023
A intensificação das chuvas e das secas é um dos efeitos mais visíveis da crise climática no Sahel, uma das regiões do mundo mais afetadas por este fenômeno.
A reportagem é de Patricia Simón, publicada por La Marea, 28-04-2023. A tradução é do Cepat.
Os pés de milho olham ressequidos para o céu. Há apenas uma dúzia deles, cercados por alguns pés de tomate igualmente raquíticos. É a tentativa desesperada de conseguir alguma coisa para comer que os habitantes deste campo para deslocados pela guerra, situado nos arredores de Bamako, desenvolveram.
A planície onde vivem cerca de mil famílias é inundada pelas chuvas que não param de cair há dias. As tendas de plástico em que vivem se assentam na lama. “Aqui as crianças estão sempre doentes, quase não têm o que comer e mais de vinte já morreram desde que chegamos aqui fugindo há alguns anos”, explica Ouman Dicko, que já não sabe o que fazer para conseguir que alguém os ouça.
À tarde, o sol sai, trazendo vida ao campo com seus raios, as mulheres acendem fogueiras com os poucos galhos que permanecem secos, algumas dão de mamar aos bebês, outras peneiram o arroz antes de cozinhá-lo enquanto as crianças correm em torno dos jornalistas brancos. Sobre esta terra e sob este céu, há apenas um sinal de que a sorte dessas almas importa para alguém no mundo: colocado sobre um pilar, um pequeno tanque que serve para coletar a água que cai do céu ostenta um logotipo desbotado da ACNUR, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados. É cada vez mais comum que ela transborde durante dias e permaneça seca durante semanas. A intensificação das chuvas e das secas é um dos efeitos mais visíveis da crise climática no Sahel, uma das regiões do mundo mais afetadas por este fenômeno.
O Sahel é uma grande faixa de terra que separa o deserto do Saara, ao norte, da África Central, estendendo-se do Senegal à Eritreia. Mais de 4 milhões de quilômetros quadrados com mais de 300 milhões de habitantes que, especialmente na tríplice fronteira do Mali, Burkina Faso e Níger, concentra vários dos mais complexos e mortíferos conflitos ativos. Além dos múltiplos atores armados e da falta de governabilidade devido à ausência de Estado em enormes extensões de seu território, há um terceiro fator que vítimas e analistas estabelecem como prioritário.
“Falamos muito sobre o papel do terrorismo islâmico na violência no Sahel e pouco sobre a crise climática. E tem um papel fundamental, porque afeta diretamente a identidade das comunidades”, explica Boris G. Kabré, que no momento da entrevista acabava de voltar de Timbuktu para Bamako, onde desenvolve um programa para evitar o recrutamento dos jovens por grupos armados. “Aqui, os povos se definem por sua dedicação. Os bozo vivem da pesca. Mas com as mudanças climáticas não há peixes porque não há água nos rios, então eles têm que encontrar outra atividade. Os dozo são caçadores, mas a caça também diminuiu. Os dogon são em sua maioria agricultores, mas as colheitas estão piorando e há menos terra disponível. Então, quando esses povos perdem sua fonte de renda, também estão perdendo sua identidade. E quando começam a se dedicar a outras atividades, entram em conflito por recursos escassos”, explica Kabré, que é especialista em mediação de conflitos intercomunitários e dirige a ONG Ação da Juventude para a Prevenção e o Combate ao Extremismo Violento no Norte e Centro do Mali (JANC-PLEV).
A crise climática acabou em poucos anos com um equilíbrio que levou séculos para se estabelecer. As estações estão quase dois meses atrasadas. Por isso, quando os peul, em sua maioria pastores, fazem suas longas rotas de pastoreio – que chegam inclusive a cruzar as fronteiras impostas pelo colonialismo – seu gado pisa e come as plantações que começam a brotar. Com o consequente confronto entre comunidades.
E o mesmo acontece com as demais atividades primárias em um território onde 1 de cada 6 pessoas vive em situação de insegurança alimentar, ou seja, sem acesso à alimentação suficiente ou regular. Além disso, 1 de cada 5 meninos e meninas sofre de desnutrição grave. Mais de 32 milhões de pessoas não conseguem satisfazer as suas necessidades alimentares e nutricionais básicas. É o número mais alto da última década. No Sahel, as pessoas voltam a morrer de fome e, segundo um relatório da ACNUR, se medidas apropriadas não forem tomadas, as mudanças climáticas agravarão exponencialmente a situação.
Segundo seus dados, até 2080, a previsão é de que as ondas de calor aumentariam em até 19,9%, o que se traduziria em mais 59 dias de calor intenso por ano e quatro vezes mais mortalidade por essa causa. Os períodos de chuva e de calor seriam cada vez mais extremos, razão pela qual os seus habitantes terão de adaptar os seus cultivos às novas condições: o milho, o painço e o sorgo terão de ser substituídos pela mandioca, feijão, amendoim e arroz, espécies que melhor aproveitam a fertilização por CO2.
“Precisamos urgentemente de programas de adaptação à crise climática e mitigação de seus efeitos. E para isso a cooperação internacional é fundamental”, explica Fousseini Diop, responsável pelos programas de governança e engajamento cívico da Associação de Jovens pela Cidadania e Democracia (AJCAD). Este pesquisador destaca que a crise climática também está provocando um aumento da população deslocada no Sahel, mais de 4 milhões, o que gera novos conflitos por recursos.
Em cada cúpula do clima, os líderes dos países do Sul Global exigem recursos dos mais ricos para se adaptar ao aquecimento global provocado pelo Norte. No caso do Sahel, a esta reparação histórica soma-se o fato de, na última década, os Estados Unidos e a União Europeia terem destinado orçamentos multimilionários à região, mas o fizeram em programas de contraterrorismo baseados numa resposta militar que claramente fracassou. Entretanto, fontes especializadas no conflito do Sahel advertem que o avanço do jihadismo está intimamente relacionado com a pobreza agravada pela crise climática.
“A mudança climática pode multiplicar as ameaças que preocupam muito os Estados Unidos e o Ocidente. No Sahel, essas ameaças incluem o aumento do extremismo violento, da demanda por ajuda internacional e a proliferação de governos fracos e autoritários”, alertou em relatório de novembro de 2022 o Council on Foreign Relations, um think tank conservador que assessora o governo dos Estados Unidos na política externa.
Por esta razão, a maioria das grandes ONGs internacionais que operam no Sahel aplicam uma abordagem climática a todas as suas intervenções. “As necessidades da população são básicas e urgentes: acesso à água potável, a um saneamento que evite infecções e à alimentação necessária”, explica Sherifath Mama Chabi, especialista em nutrição pública e coordenadora da delegação da Ação Contra a Fome em Kayes. Essas necessidades foram agravadas no ano passado pelo impacto da crise climática e pelo aumento dos preços dos alimentos devido à guerra na Ucrânia.
Para evitar a fome, esta ONG desenvolveu o Biogenerador, um programa para prever e prevenir a desnutrição. Eles fazem isso através do estudo de imagens de satélite e outras coletadas por drones para estudar o estado das lavouras e refinar seus projetos em relação à qualidade e temporalidade das plantações. “Fazemos uma análise anual da produção de biomassa e dos recursos hídricos na superfície do Sahel através do Biogenerador para analisar a produção de plantas durante a estação das chuvas”, explica Paloma Martín de Miguel, responsável para o Sahel da Ação Contra a Fome. Dessa forma, sabem quando as reservas vão começar a acabar para que possam avançar na distribuição da assistência alimentar.
“Não creio que haja uma radicalização ideológica. Para explicar por que muitos jovens acabam ingressando nesses grupos [jihadistas], devemos olhar para a falta de oportunidades e as consequências da crise climática”, conclui Boris G. Kabré. O fenômeno estende-se para além do Sahel: em Moçambique ou na Somália, os grupos fundamentalistas também aproveitam a seca e a falta de colheitas para promover confrontos intercomunitários e engrossar as suas fileiras com novos recrutas: “Na Europa, toda a agricultura está se adaptando a esta nova realidade climática. Nós, com recursos, também poderíamos conseguir”, conclui Kabré. E ele está falando de semear a paz.
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A crise climática: o terceiro ator nas guerras do Sahel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU