04 Abril 2023
"A estrutura social e eclesial 'por ordens' não tem mais evidência. Mas como falar sobre a diferença entre Deus, seu amor e sua bondade, no mundo da igualdade?", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado no blog Come Se Non, 01-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre as reivindicações que surgiram do Caminho Sinodal Alemão está a superação total de uma expressão que remonta a Tertuliano e que pode ser assim resumida: podem batizar (e ensinar) bispos, presbíteros, diáconos, homens leigos, mas não mulheres. Deve-se dizer que essa posição de Tertuliano, bem conhecida em toda a tradição, sofreu grandes revisões ao longo do tempo. Por um lado, a elaboração de uma “competência feminina” sobre o batismo, ligada ao “caso de necessidade” ou “perigo de morte”. A par disso, admitia-se também um possível “ensino” para as mulheres, desde que ficasse rigorosamente “em privado”. Essa diferenciação era válida em dois níveis:
Criou-se assim um sistema no qual se concentram as funções de representação eclesial:
Esse sistema funcionou não apenas pela graça, mas pela cultura. É a cultura da "sociedade da honra", que se baseia na desigualdade, e que precisamente assim anuncia Deus e experimenta a transcendência. A diferença de Deus é assegurada pelas "diferenças de honra": entre mulher e homem, entre clero e leigos e pelas infinitas diferenças de grau internas a cada uma dessas categorias.
Muito interessante é o fato de que onde há uma "diferença", sempre funciona a lógica da potestas: no Concílio de Trento houve sessões que foram abertas por discursos de "leigos" (que, no entanto, eram "nobres"); nas dioceses alemãs no período seguinte a Trento, havia bispos nomeados em idade muito jovem (por exemplo, 12 anos), nunca ordenados diáconos ou presbíteros, diretamente consagrados bispos, mas diferentes por "nascimento nobre". A ordem nobiliária (mesmo sem ordenação eclesial) funcionava perfeitamente na sociedade da honra. E assim garantiu a "diferença de Deus". O próprio rei de França, como o mais nobre entre os nobres, passava sempre a Semana Santa em oração na Capela Real!
O fim da sociedade da honra e a inauguração da sociedade da dignidade colocou à dura prova todo o sistema ministerial da Igreja, que se modelara em grande sintonia com aquele arquétipo. Se olharmos para o que era o Cerimonial dos Bispos até o Concílio Vaticano II, entenderemos de onde vem nosso preconceito em relação ao poder episcopal. A Igreja Católica primeiro tentou defender-se contra a igualdade, identificando-se como societas inaequalis, mas depois lentamente aceitou revisar suas categorias. Hoje estamos no meio dessa grande metáfora: estamos transportando as melhores experiências eclesiais da linguagem da sociedade da honra para a linguagem da sociedade da dignidade. O ato inaugural dessa passagem foi a “entrada da mulher no espaço público” assinalada como “sinal dos tempos” por João XXIII em 1963. Reconhecer a dignidade da mulher tornava-se então uma questão primeira para a sociedade, depois também para a Igreja.
Essa passagem, na Igreja, não é simples. Porque enquanto a sociedade da honra projeta sobre Deus as infinitas hierarquias da vida humana, e vive Deus apenas pela evidência das diferenças humanas, a sociedade da dignidade transfere a sua igualdade para Deus: proclama um Deus "igual para todos", mas também “diferente para todos”, o que torna todos iguais, mas também todos diferentes e que, portanto, não pode mais ser reconhecido ou reconhecível.
Aqui está o ponto chave: entre a sociedade da honra e a sociedade da dignidade o que muda é o desejo de reconhecimento. Num mundo que não quer diferenças estruturais, mas espera apenas a mais radical igualdade, laços e relações tendem a não ter mais nenhuma evidência. Se somos todos iguais, mas todos livremente diferentes, o mundo torna-se incompreensível e ingovernável, desorienta e se perde.
Eis então o desafio: como anunciar a diferença de Deus neste contexto da “dignidade universal”? Se entendemos que esse contexto não é a negação de Deus, em que sentido pode ser ainda mediação do Deus de Jesus Cristo?
A estrutura social e eclesial “por ordens” não tem mais evidência. Mas como falar sobre a diferença entre Deus, seu amor e sua bondade, no mundo da igualdade? Ainda mais profundamente: no mundo da liberdade e da igualdade, para que serve a fraternidade? Não é por acaso que, enquanto a liberdade e a igualdade podem ser "absolutas", a fraternidade é, ao contrário, o cuidado dos vínculos, dos filhos com o pai e entre os filhos do mesmo pai. O que a liberdade e a igualdade tendem a negar, a fraternidade deve pressupor e cultivar!
O anúncio da palavra e a celebração do sacramento já não são mais pensadas como ações reservadas a uma ordo. Este é um dos novos lugares-comuns, ainda de parcial evidência, próprios de uma Igreja que está aprendendo a linguagem da sociedade da dignidade. Reservar a palavra ao Bispo e a Eucaristia ao padre era a lógica da Igreja da honra. No entanto, isso não significa superar a função do episcopado, do presbiterado e do diaconato, mas pensá-los como sacramentos com novas categorias. Em que a diferença não é assegurada pela honra, mas pela dignidade.
Se considerarmos então a questão sob esta luz, bem veremos que as razões que impõem vínculos insuperáveis a celebrações "limiares", como o batismo e a homilia, merecem um pensamento menos rígido e drástico, ainda que justificado pela necessidade de defender a "diferença", não da honra, mas da dignidade. A qualidade de "limiar" do batismo é, precisamente, ser a "porta" de entrada na Igreja. A qualidade de limiar da homilia é ser "palavra direta" que pode interceptar cada vida, cada história, cada pergunta, cada problema. É por isso que está no cerne da celebração de uma intimidade, mas é também uma forma liminar de anúncio.
Eu vou explicar melhor. É bem evidente que na Igreja de hoje não é tão impensável que a celebração do batismo seja presidida por um simples batizado, nem que a tomada de palavra homilética seja confiada a um homem ou a uma mulher sábios da comunidade. Isso não deve escandalizar. Ao contrário, poderia ser escandaloso que essas oportunidades não sejam revestidas de "formas institucionais", isto é, que não sejam lidas como oportunidades para renovar a experiência eclesial, de modo pleno e formal.
É compreensível que existam “ministros ordinários” que se identificam, em sua maioria, com os ministros ordenados. Ai se não fosse assim. Mas não seria sensato julgar escandaloso que, conforme as circunstâncias e não apenas "em perigo de morte", se pudesse recorrer a "ministros extraordinários" para celebrar batismos e fazer homilias. Por que na "distribuição da comunhão" deveria ser possível o que é considerado impossível para o batismo ou para a homilia? Ordinariamente quem preside ou concelebra distribui, mas nada impede que... ordinariamente batize o ministro ordenado, mas nada impede que... normalmente quem preside à Eucaristia faça a homilia, mas nada impede que...
Aqui não se trata de contrapor princípios opostos, mas de integrar visões diferenciadas. Não são as legítimas reivindicações alemãs que negam as instâncias centrais, nem as justificadas instâncias centrais que impedem definitivamente os novos espaços invocados. Reservar o batismo e a homilia a quem preside uma comunidade é normal e também vital. Mas são precisamente as formas da autoridade eclesial que já não podem mais ser pensadas ou administradas com a lógica arcaica da ordo. Aqui estamos bem no centro de uma nova visão: podemos proclamar a diferença de Deus tendo misericórdia pelas infinitas distinções de gosto duvidoso com as quais, durante séculos, discriminamos as mulheres diante dos homens, os leigos diante dos clérigos. O que antes pensávamos, de boa-fé, fosse querido por Deus, agora sabemos que era apenas um nosso próprio ponto cego, uma nossa própria forma de orgulho e uma falta de humildade, que nos fez confundir a diferença de Deus com a hierarquia entre os humanos. Não perder a diferença de Deus numa cultura da igualdade e da liberdade pode levar-nos a pensar não como abuso um batismo presidido por um não clérigo ou uma homilia proferida por um leigo ou uma leiga.
Por outro lado, se há décadas concordamos em reconhecer o doutorado em teologia, na Sagrada Escritura, na pastoral ou na espiritualidade para leigos e leigas, poderíamos pensar que eles só possam empregá-lo "em privado", mantendo-o enquadrado em seu gabinete? O munus docendi e o munus sanctificandi não estão mais incluídos (e garantidos por) uma ordo separada (respectivamente pelo episcopado e pelo presbiterado), mas juntamente ao munus regendi entraram na experiência possível de cada batizado, seja homem ou mulher. Essa mudança de paradigma certamente precisa de critérios de reconhecimento e confiabilidade, sobre os quais, no entanto, devemos raciocinar com calma, mas não segundo as regras da sociedade da honra, mas sim segundo aquelas da sociedade da dignidade. Por respeito à tradição, que nunca tolera reduções demasiado gritantes.
Uma igreja em saída não se entrincheira atrás de normas contingentes de um regulamento jurídico ou litúrgico, que ao contrário pode ser adaptado às novas exigências do povo de Deus. Se partimos sempre de diferenças intransponíveis, permanecemos no estilo do mundo que passa e não abre espaço para a verdadeira diferença que importa.
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“Poder para ensinar e batizar” aos leigos e às mulheres? Da sociedade da honra à sociedade da dignidade. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU