"Por si, os cinco anos após as mortes de Marielle e Anderson denunciam que nenhuma instância do Estado brasileiro se empenhou de fato - ou conseguiu sobrepor os obstáculos encontrados - para alcançar os mandantes dos assassinatos, nitidamente vinculados ao modo miliciano de operar os crimes e de manter a investigação eternamente hibernando", escreve Carlos Tautz, jornalista e doutorando em História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense.
Meia década já se passou sem que as propaladas prioridades de investigação e punição dos culpados fossem aplicadas aos responsáveis pela surpreendente execução fria da ex-vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, na noite do fatídico 14 de março de 2018.
A gravidade que o caso revela ultrapassa em muito as tragédias familiares - e não somente porque, passado tanto tempo do caso, ainda são desconhecidas inclusive as causas do assassinato político de maior repercussão nacional e internacional desde a bomba no Riocentro, em abril de 1981.
Devido ao cenário e aos precedentes históricos em que aconteceram, os tiros a queima-roupa na cabeça de Marielle e nas costas de Anderson indicam, entre inúmeros outros casos, o contínuo avanço sem resistência de um Estado miliciano que se ora sobrepõe, ora interage com o Estado formal no Rio de Janeiro.
Algo nesse sentido já havia sido ensaiado em 2011, quando a juíza Patrícia Acioli, dedicada a enfrentar grupos de extermínio, foi assassinada em São Gonçalo (RJ) por uma quadrilha de Policiais Militares chefiados por um coronel. Ele se refestela até hoje com um régio salário de pelo menos R$ 40 mil. E, para saciar a nossa hierárquica sede de Justiça, os praças envolvidos foram expulsos da PM.
Por si, os cinco anos após as mortes de Marielle e Anderson denunciam que nenhuma instância do Estado brasileiro se empenhou de fato - ou conseguiu sobrepor os obstáculos encontrados - para alcançar os mandantes dos assassinatos, nitidamente vinculados ao modo miliciano de operar os crimes e de manter a investigação eternamente hibernando.
Até um dos supostos mais próximos amigos de Marielle afastou-se relativamente do tema. O ex-deputado Marcelo Freixo, em campanha (2022) ao governo do Estado - que poderia ter sido um momento privilegiado para defender publicamente a resolução do caso - abandonou a crítica frontal às milícias (objeto de enfrentamento por parte dele e de Marielle em CPI na Alerj, nos idos de 2008) e preferiu saudar os soldados da PM, um braço armado do Estado com capilaridade política muito útil em épocas eleitorais.
Derrotado no primeiro turno pelo governador Cláudio Castro (PL), que pouco faz diante das chacinas rotineiras perpetradas por PMs contra moradores de favelas, Freixo, sem mandato e iniciando a carreira de especialista na área do turismo, contentou-se com o cargo de presidente da Embratur. Está em posição hierárquica inferior em relação à ministra do Turismo, Daniela do Waguinho, denunciada por sua ligação com milicianos. Uma ligação que começa dentro de casa.
O marido dela e prefeito do município de Belford Roxo, Wagner dos Santos Carneiro, o Waguinho, já foi afastado do cargo em 2019 pela Justiça fluminense, acusado de chefiar uma organização criminosa na Prefeitura. Waguinho, principal liderança política na Baixada Fluminense, apoiou vividamente Lula em 2022, o que denota que a lógica miliciana tem vida para além do governo Bolsonaro.
Sequer o partido político de Marielle, o PSOL, consegue impor no debate público e em ações institucionais concretas a urgência de se concluírem as investigações do caso, que é um emblema de quanto é difícil de distinguir legalidade de ilegalidade no Rio.
Exemplo deste cenário está o centro do Caso Marielle e Anderson. Durante décadas o acusado de puxar o gatilho operou tranquilamente como o principal assassino de aluguel no Estado, além, de segurança do Jogo do Bicho - o pai das principais estruturas de crime organizado dentro e fora da institucionalidade fluminense.
Ronnie Lessa, o sicário profissional, há décadas atuava como, quando e com quem desejava, sem ter sido incomodado uma vez sequer por qualquer autoridade. Enquanto prestava serviços às organizações criminosas da "contravenção", chegou a perder uma das pernas em explosão de uma bomba a la Al Qaeda. Mas, nem esse evento cinematográfico despertou a atenção dos órgãos de controle dos sistemas de justiça e de segurança.
Até ser preso um ano após as mortes de Marielle e Anderson, Lessa nunca havia sido investigado pela Corregedoria da PM, pela Polícia Civil ou pelo Ministério Público estadual, este que tem a obrigação legal de fiscalizar as polícias. Mesmo após ter sido aposentado da PM por invalidez, o sicário continuou a prestar serviços de resgate à Polícia Civil em situações extremas, como cercos e tiroteios.
Tudo isso se deu antes e também em plena vigência da intervenção financeira e militar no Rio de Janeiro. A intervenção foi arquitetada em 2018 por um ilegítimo governo federal que resultou do golpe de 2016 e possibilitou aos generais bolsonaristas acesso liberado aos bancos de dados do sistema de segurança pública e, ao menos parcialmente, também do sistema de Justiça do Rio de Janeiro. [Note-se: é corriqueiro o acesso parcial dos militares aos sistemas estaduais de segurança. Por força da legislação, os castrenses estão em permanente preparação para intervir na segurança pública através do instrumento da Garantia da Lei e da Ordem (GLO)].
Nomeado interventor federal, o ex-Ministro da Defesa e ex-candidato (2022) a vice de Bolsonaro, o general Braga Netto, operativo quando Marielle e Anderson foram assassinados, chegou a admitir ter conhecimento de quem seriam os mandantes do assassinato duplo. "Poderia ter anunciado a solução do caso Marielle, diz Braga Netto".
Ainda nos dias atuais, a extensa cadeia de cumplicidades, incompetências e omissões que parecem se chocar atabalhoadamente são funcionais ao Estado mezzo miliciano mezzo formal que vigora no Rio. Assim, o Estado híbrido continua a manter as aparências de normalidade na tensa realidade que se vive no Estado e a promessa de que um dia finalmente serão descobertos os mandantes e as causas das mortes de Marielle e Anderson.
Em fevereiro, o Ministério Público do Rio de Janeiro implicitamente admitiu ser incapaz de conduzir as investigações. Em reunião com o Ministro da Justiça Flávio Dino, o Procurador-Geral de Justiça do Rio, Luciano Mattos, solicitou e conseguiu ajuda da Polícia Federal nas investigações - embora o escopo da ajuda não tenha ficado claro.
Em 2018, o ex-Ministro golpista da Justiça, Raul Jungmann, já havia autorizado que a PF realizasse uma "investigação da investigação", antecipando a certeza de que a Polícia Civil fluminense - que já trocou cinco vezes o delegado responsável pelo caso Marielle e Anderson - e o Ministério Público não têm independência política nem competência técnica para chegar aos mandantes.
Há, entretanto, outra forma de entender a estratégia de Luciano Mattos. Ele conseguiu transformar a tarefa, amarga feito limão, de chegar aos culpados últimos do crime numa saborosa limonada para o Estado híbrido do Rio .
Às vésperas de o caso completar hoje (14 de março de 2023) cinco anos sem solução - quando na imprensa aparecem carradas de matérias sobre pseudo-efemérides que fazem aniversários redondos (dois, cinco, 10, 20 anos etc) -, Mattos tentou evitar a pecha de conivente.
Além de compartilhar com a PF parte da responsabilidade pela solução deste caso em adiantado estado de putrefação, com a aproximação a Dino ele, Mattos, afastou a hipótese de "federalização" do caso (quando o Superior Tribunal de Justiça transfere o caso para o âmbito exclusivo da Justiça federal, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal).
Assim, na quase surdina, manteve a competência do recalcitrante sistema de Justiça do Rio para determinar as decisões pertinentes ao caso - incluindo buscas, apreensões e, o mais importante, prisões.