Para simbolizar o novo governo, o presidente subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado do cacique Raoni Metuktire e de representantes da diversidade brasileira; nos dois discursos que fez, Lula reforçou a importância da preservação da floresta amazônica.
A reportagem é de Cristina Ávila e Leanderson Lima, publicado por Amazônia Real, 01-01-2022.
De mãos dadas com ninguém menos que o cacique Raoni Metuktire, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) subiu a rampa do Palácio do Planalto. E não só ele, mas também um menino negro, uma catadora de materiais reciclados, uma cozinheira, um professor, um metalúrgico, um artesão e um influenciador da causa capacitista. Até a cachorra vira-lata “Resistência”, adotada pela primeira-dama Janja Lula da Silva quando Lula estava preso no Paraná, participou desse momento histórico. O simbolismo da subida à rampa se refletiu pelas Esplanada dos Ministérios e Praça dos Três Poderes, tomadas pelo povo em toda a sua diversidade.
Centenas de milhares de brasileiros de todas as localidades do país foram à Brasília para ver Lula assumir a Presidência da República pela terceira vez. Transformaram o 1º de janeiro de 2023 em uma posse como “nunca antes na história do Brasil”. A Amazônia se fez presente de inúmeras formas na posse de Lula. A começar das várias e importantes ocasiões em que o presidente a citou em seus dois discursos, em uma cerimônia no Congresso e depois no Parlatório, diante de uma Praça dos Três Poderes povoada de militantes de vermelho. Garantiu que “o Brasil não precisa desmatar” e que, em seu governo, não será tolerada “a violência contra os pequenos, o desmatamento e a degradação do ambiente, que tanto mal já fizeram ao País”. Ele prometeu o desmatamento zero da Amazônia.
Foram frases como essa que justificaram as lágrimas da manauara Dany Bonates Crespo neste domingo. Ela caminhava por volta das 9 horas pelo gramado da Esplanada dos Ministérios, em direção à Praça dos Três Poderes com um desejo forte. “Eu queria muito ver o Lula, mas está tão cheio que não sei se conseguirei”, dizia, emocionada, enquanto parecia arrastar o filho adolescente pelo braço, determinada a superar cerca de três quilômetros até a rampa do Palácio do Planalto.
Naquele horário, a multidão já havia começado a se posicionar ao longo da pista para garantir uma boa visão. Lula chegou na Catedral, onde às 14h30 embarcou no Rolls-Royce aberto e fez o tradicional passeio pelo Eixo Monumental. Várias pessoas subiram em árvores e até mesmo espiaram sua passagem por frestas de um tapume que cobria um trecho ocupado pela infraestrutura preparada para o evento. Um dos temores era em relação ao risco de Lula e Geraldo Alckmin, seu vice-presidente, desfilarem em carro aberto, depois de dias de expectativa e tumulto causado por terroristas bolsonaristas em Brasília.
“Mas é aconchegante estar aqui”, conformava-se Dany. “Não foi fácil chegar onde estamos. A gente precisava muito estar nesta posse, viver a energia que estamos vivendo hoje. Somos o povão, e é povão que o presidente Lula é. Nos identificamos com ele. Humano, verdadeiro estadista.” Neste momento, a preocupação dela era a passagem da faixa presidencial, que foi negada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que "abandonou" o cargo tão logo soube do resultado eleitoral. “A faixa poderia ser passada por Dilma (Rousseff). Seria uma reparação histórica”, disse, referindo-se ao impeachment contra a ex-presidenta, ao golpe político-midiático e à prisão de Lula para evitar que disputasse o pleito em 2018. Dilma Rousseff (PT) esteve presente tanto no Congresso quanto no Palácio do Planalto e foi lembrada por Lula nos dois discursos que fez. O rito foi ainda mais emocionante, marcante e simbólico.
A faixa acabou sendo entregue pela catadora Aline Sousa da Silva, uma mulher negra. Na subida da rampa também estavam presentes o menino negro Francisco Carlos do Nascimento e Silva (campeão de natação), a cozinheira Jucimara Fausto dos Santos, o artesão Flavio Pereira, ambos do Acampamento Lula Livre, o influenciador da causa capacitista Ivan Vitor Dantas Pereira, o professor Murilo de Quadros Jesus e o metalúrgico Weslley Viesba Rodrigues Rocha. O cacique Raoni, que manteve sigilo do convite para subir a rampa, é, nas palavras de Ailton Krenak, o “grande guerreiro da paz entre seus irmãos indígenas”.
Eleitora aplaudia discurso do presidente Lula no parlatório (Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real)
Maial Paiakan Kayapó, uma das importantes lideranças jovens da Terra indígena Kayapó (PA), preferiu participar do evento da posse distante da rampa do Palácio do Planalto, acompanhada pela mãe, Irekran, e pela sobrinha Irerae. Ela preferiu ficar na Esplanada dos Ministérios, longe até das maiores aglomerações. “Raoni está lá, e eu estou muito feliz em participar deste momento. Ele é nosso representante. Este é um momento de felicidade para nós”, disse, referindo-se à posse do presidente da República que criou o Ministério dos Povos Indígenas, com a expectativa de demarcações de territórios e combate a crimes ambientais. Raoni é do mesmo povo de Maial e histórico na defesa da Amazônia.
Outro parente presente no evento foi Bepkriti Kayapó, da aldeia Moikarakô, localizada em São Félix do Xingu, que com outros dois indígenas xinguanos vestia camiseta com demonstração de apoio a Lula. Os Kayapó são conhecidos pelo comportamento guerreiro e foram importantes para a construção do capítulo dos Índios na Constituição homologada em 1988 e, embora avessos à decisão do governo petista de Dilma em construir a hidrelétrica Belo Monte, que fez a barragem no Xingu, compreenderam a importância da frente pela redemocratização do país e apoio ao presidente desde a campanha.
A Amazônia Real, presente na cobertura da posse de Lula, com transmissões ao vivo no Instagram, também encontrou personagens amazônicos simbólicos. Yonne Duarte, que mora em Boa Vista, Roraima, carregava uma faixa: “Garimpo em terra indígena, nunca mais”. Para ela, a posse do presidente Lula “representa a retirada dos garimpos das terras indígenas, representa a floresta em pé. Viva um governo democrático!”, comemorou.
Já Benedita Rubim afirmou: “Eu sou brasileiro que sonha com essa realidade que nós vamos fazer no Brasil. Viva o Norte!” Bárbara Flores, do Movimento Plurinacional de Indígenas Mulheres, comemorava a volta de Lula: “Estamos muito felizes com a criação deste novo ministério dos Povos Indígenas. Esse ministério traz muita esperança. Agora é a nossa vez de trazer a nossa voz e de ocupar esses espaços dentro da política”.
No Palácio do Planalto, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, discursa após receber a faixa presidencial. (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)
No discurso que fez no Congresso Nacional, Lula reforçou o ineditismo de um ministério exclusivo para os indígenas, povos que foram perseguidos no governo Bolsonaro, que se recusou a transmitir a faixa presidencial para o petista e fugiu para os Estados Unidos. O cuidado com a terra e com as políticas ambientais foi, segundo Lula, uma das razões para a criação do Ministério dos Povos Indígenas. “Ninguém conhece melhor nossas florestas nem é mais capaz de defendê-las do que os que estavam aqui desde tempos imemoriais. Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental. A estes brasileiros e brasileiras devemos respeito e com eles temos uma dívida histórica. Vamos revogar todas as injustiças cometidas contra os povos indígenas”, prometeu.
Nesse discurso, depois de ser empossado pela terceira vez como presidente da República, Lula lembrou que nenhum outro país tem as condições do Brasil para se tornar uma potência ambiental, a partir da criatividade da bioeconomia e dos empreendimentos da sócio biodiversidade. “Vamos iniciar a transição energética e ecológica para uma agropecuária e uma mineração sustentáveis, uma agricultura familiar mais forte, uma indústria mais verde”, afirmou, prometendo ainda desmatamento zero na floresta amazônica e emissão zero de gases do efeito estufa na matriz elétrica.
Para Lula, o Brasil pode ampliar sua fronteira agrícola, sem abdicar da prosperidade na terra. “Liberdade e oportunidade de criar, plantar e colher continuará sendo nosso objetivo. O que não podemos admitir é que seja uma terra sem lei”, num dos vários recados que deu a Bolsonaro. Para o petista, a vitória no pleito de 2022 foi da democracia, “superando a maior mobilização de recursos públicos e privados que já se viu; as mais violentas ameaças à liberdade do voto, a mais abjeta campanha de mentiras e de ódio tramada para manipular e constranger o eleitorado”.
O presidente disse que o diagnóstico que recebeu do Gabinete de Transição de Governo é estarrecedor. “Esvaziaram os recursos da Saúde. Desmontaram a Educação, a Cultura, a Ciência e Tecnologia. Destruíram a proteção ao Meio Ambiente. Não deixaram recursos para a merenda escolar, a vacinação, a segurança pública, a proteção às florestas, a assistência social”, disparou.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se emociona durante cerimônia de posse, no Palácio do Planalto (Foto: Marcelo Camargo/ABr)
Apesar de negar o qualquer clima de revanchismo, Lula garantiu que “quem errou responderá por seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal”, sendo ovacionado pelo público. Ele afirmou que a Lei de Acesso à Informação será retomada, o que pode abrir espaço para a abertura dos sigilos de 100 anos impostos por Bolsonaro. “O mandato que recebemos, frente a adversários inspirados no fascismo, será defendido com os poderes que a Constituição confere à democracia. Ao ódio, responderemos com amor. À mentira, com a verdade. Ao terror e à violência, responderemos com a lei e suas mais duras consequências”, disse. “Sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais! Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para sempre.”
Promessa de campanha, Lula falou também sobre o fim da política armamentista de Bolsonaro. “Estamos revogando os criminosos decretos de ampliação do acesso a armas e munições, que tanta insegurança e tanto mal causaram às famílias brasileiras. O Brasil não quer mais armas; quer paz e segurança para seu povo”, afirmou.
Presidente Lula e o líder indígena Raoni Metuktire (Foto: Mídia Ninja/Cobertura Colaborativa)
Lula agradeceu a Câmara e o Senado pela aprovação da PEC do “Bolsa Família” e disse que vai fazer com que os bancos públicos, especialmente o BNDES, sejam indutores do crescimento. As vítimas da Covid-19 não foram esquecidas no discurso do presidente, que afirmou que se houve erros na condução do enfrentamento da pandemia, eles serão punidos, num outro recado a Bolsonaro. Ele finalizou o discurso dizendo que a missão mais importante de seu terceiro mandato será “honrar a confiança recebida e corresponder às esperanças de um povo sofrido, que jamais perdeu a fé no futuro nem em sua capacidade de superar os desafios. Com a força do povo e as bênçãos de Deus, haveremos der reconstruir este país”, finalizou.
No Parlatório, lembrou do período em que ficou na prisão, retribuindo a força recebida pela Vigília Lula Livre, no período em que esteve preso em Curitiba. “Hoje, neste que é um dos dias mais felizes da minha vida, a saudação que eu faço a vocês não poderia ser outra, tão singela e tão cheia de significado”. Em tom apaziguador, disse que governará para os 215 milhões de brasileiros e não apenas para aqueles que votaram nele. “A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra”.
O presidente criticou a volta do país ao mapa da fome. “A volta da fome é um crime, o mais grave de todos, cometido contra o povo brasileiro. A fome é filha de desigualdade, mãe dos grandes males que atrasam o desenvolvimento do Brasil. […] De um lado, uma pequena parcela da população tudo tem. De outro lado, uma multidão a quem tudo falta e uma classe média que vem empobrecendo ano a ano”.
Lula defendeu que as mulheres ganhem o mesmo que os homens. “Não podemos continuar a conviver com a odiosa pressão imposta às mulheres, submetidas diariamente à violência nas ruas e dentro de suas próprias casas. É inadmissível que as mulheres continuem a receber salários inferiores dos homens quando, no exercício de uma mesma função, elas precisam conquistar cada vez mais espaço”, disse o presidente que recriou o Ministério das Mulheres.
Multidão lotou a Praça dos Três Poderes (Foto: Lula Marques/Fotos Públicas)
As primeiras pessoas começaram a chegar cedo à Esplanada. E ainda chegava gente até perto das 16 horas, surpreendendo os próprios participantes que foram a Brasília de todos os cantos do país, principalmente do Nordeste. “Até o dia amanheceu bonito”, disse Elias Rocha, que às 15 horas já tinha vendido 600 picolés. “Tchau, gente, vou buscar o quarto carrinho do dia. Papai voltou e as coisas já estão mudando”, brincou, aproveitando as vendas de um dia quente depois de muitos dias de chuva em Brasília. O clima desértico típico da capital federal já tinha acabado com a água em grande parte das barracas de ambulantes e as crianças andavam enroladas em panos e usando chapéus, protegidas pelos pais e mães. Enormes filas nas barracas oficiais do evento impediram que as pessoas perdessem horas para comprar fichas e até comida e bebida.
Outro transtorno ocorreu nas primeiras horas do dia, quando uma fila imensa se formava para a revista feita pela segurança pública para a entrada na Esplanada. Foi proibido o transporte de objetos metálicos e coisas que representassem algum perigo. Mas não demorou muito e por volta das 10h30 se ouviu um grito – “liberou geral” – avisando que era o fim da inspeção policial. O acesso à área mais próxima ao Palácio do Planalto, porém, se manteria restrita, apenas para movimentos sociais que usavam uma pulseirinha azul indicando o cadastramento feito antecipadamente nos locais de alojamento, um momento de sufoco pelo calor e pelo aperto, de tanta gente.
A petista Sula Cruz, moradora de Parauapebas (PA), chegou com uma delegação de Canaã dos Carajás, com 46 pessoas, depois de 27 horas de ônibus. “A viagem foi maravilhosa porque estávamos vindo pra posse. Vim ver justiça. Perdi minha mãe há um ano e meio porque precisou trocar uma válvula do coração, mas os hospitais em Belém não puderam atender porque estavam super atarefados com o atendimento às vítimas da Covid. Eu não perdoo Bolsonaro. Se houvesse vacina isso não teria acontecido. Por esse motivo, dediquei minha vida à campanha de Lula”, conta a agricultora, filha e neta de agricultores e vinculada ao Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST), que depois que conheceu o movimento decidiu ingressar na engenharia agronômica e planta 60% dos alimentos que consome.
Bandeira brasileira é aberta na Praça dos Três Poderes (Foto: Ricardo Stuckert)
Participaram da equipe da Amazônia Real na cobertura da posse presidencial Alberto César Araújo, Cícero Pedrosa Neto, Eduardo Nunomura, Kátia Brasil e Marizilda Cruppe.