22 Dezembro 2022
Enquanto no mar Egeu o bote se enchia de água “Pensei, ‘eu consigo’, ‘vou consegui’, e consegui: me joguei no mar e comecei a nadar puxando o barco atrás de mim. Três horas e meia até ver a costa”. Quem recorda aquela noite de agosto de 2015 é Sara Mardini, síria de 27 anos, protagonista junto com sua irmã Yusra da história verídica que inspirou o filme da Netflix “As Nadadoras”, da diretora anglo-egípcia Sally El-Hosaini.
Agora Sara mora em Berlim, onde chegou naquele mesmo verão após uma odisseia de 29 dias pela "rota dos Balcãs". Um processo contra ela será aberto em 10 de janeiro na Grécia, onde voltou para ajudar outros refugiados. Yusra, na Alemanha, conseguiu realizar o sonho de nadar nas Olimpíadas Rio 2016 no Refugee Team e agora se mudou para os Estados Unidos para continuar seus estudos.
A entrevista com Sara Mardini é editada por Uski Audino, publicada por La Stampa, 21-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que levou você e sua irmã a partir?
Em 2015 a situação na Síria era perigosa. Já havíamos tido que deixar nossa casa no interior, mas a situação piorava e não dava para levar uma vida normal nem mesmo em Damasco. Você arriscava a vida até mesmo indo para a escola ou para o trabalho. Tínhamos que ficar fechadas dentro de casa o dia todo: então decidimos ir embora.
Em que momento vocês perceberam que eram "refugiadas"?
No voo da Síria para o Líbano, fomos explicitamente instruídas a não roubar os coletes salva-vidas do assento. Ali nos demos conta.
Vocês chegaram na Turquia e tentaram embarcar em um bote. O que aconteceu durante a travessia?
Era agosto, éramos 20 pessoas num bote apto para transportar sete. Havia também uma criança de 4 anos conosco. O bote estava tão pesado que estávamos viajando quase na linha da água e depois de um quarto de hora o motor parou de funcionar. Foi exatamente como no filme "As nadadoras". Estava entrando na água, então eu pulei.
Como você teve a ideia de pular no mar?
Naquele momento pensei: 'Não quero morrer'. Sabia que podia nadar, tenho treinamento como salva-vidas. Naquele momento você não tem muito tempo para pensar, tem que agir. Pensei: eu consigo, vou conseguir e consegui. Amarrei a corda no bote, então minha irmã Yusra, também nadadora profissional, se juntou a mim. Nadamos juntas puxando o barco por três horas antes de chegar à costa grega.
Como conseguiram evitar o pânico que surge nesses casos?
Talvez as pessoas do nosso barco fossem especiais, ninguém desistiu. Todos queriam sobreviver e, em vez de chorar ou gritar, começamos a trabalhar juntos. Um dizia: ‘Eu posso fazer isso, eu faço isso’, outro dizia: "Eu posso fazer isso, vou fazer isso". Todos começaram a acreditar, só havia este plano - permanecer vivos. E nós conseguimos.
De onde vinham as outras pessoas que estavam com vocês no bote?
Do Afeganistão, Síria, Iraque, mas também da África, por exemplo, da Somália.
Talvez tenha lido as histórias de pessoas que embarcam da África tentando chegar à Itália. Você sente algo em comum com elas?
Trabalho com elas como voluntária na organização Sea-Watch e no ano passado, em abril, estive em missão por dois meses nas águas entre a Líbia e a Itália. Sei que as histórias não devem ser comparadas, mas o que as pessoas que chegam da Líbia passam é mil vezes pior do que aconteceu conosco e, em geral, com quem chega da Turquia. Já ouvi tantas histórias horríveis.
Os refugiados na Líbia pagam por um apartamentinho e em vez disso são colocados em um galpão, cem em um quarto sem comida, os líbios colocam petróleo na água potável para que bebam pouco, para economizar dinheiro. Batem neles, abusam deles. E os refugiados ficam anos antes de conseguirem entrar em um barco. E aí, então, ainda arriscam a vida. Vi com meus próprios olhos os guardas líbios atacando-os em botes de borracha, batendo, empurrando-os para a água.
Na sua maioria são os migrantes que chamamos de “econômicos”, não fugindo da guerra como vocês...
Não acho que tenha diferença. Ninguém arrisca a própria vida ou a dos filhos se realmente tem outra opção. Não importa de onde você é. Alguns dizem: ‘Eles só querem melhorar sua situação de vida’. Não é isso que se faz também aqui na Europa, quando depois de estudar se resolve ir para os Estados Unidos ou outro lugar para descobrir se existe outro lugar melhor para se viver?'.
Mas existem formas legais de entrar na Europa.
Sim e não. Com os meios legais, você tem que esperar dois ou três anos - pelo menos na Síria - para obter um visto e isso somente depois de satisfeitas todas as condições exigidas. As vias legais são para quem tem uma conta bancária vultosa.
Como foi a viagem quando chegaram na Grécia?
Continuámos por todos os meios possíveis, a pé, de carro, de ônibus. Demoramos 29 dias.
Rota dos Balcãs. (Fonte: InfoMigrantes | Correio da Manhã)
O que vocês fizeram quando chegaram na Alemanha?
Ficamos em um centro de refugiados em Potsdam, perto de Berlim, fazendo o que todo mundo fazia: preenchendo papéis. Procurei uma forma de preencher o vazio dos dias oferecendo-me para ser tradutora voluntária do árabe e parei de nadar, minha irmã procurou um lugar para praticar para manter vivo seu sonho das Olimpíadas do Rio.
Quando você decidiu deixar Berlim e por quê?
Antes de acompanhar a minha irmã às Olimpíadas, um amigo convidou-me a ir à Grécia, a Lesbos, para ajudar outros refugiados. Fui para lá e fiquei dois anos e meio. Eu tratava de ‘busca e salvamento’ e trabalhava como tradutora. A certa altura quis voltar para Berlim e retomar a universidade, mas prenderam-me: fui acusada de tráfico de seres humanos. Montaram uma ação porque usamos um grupo de Whatsapp onde compartilhávamos informações com outras ONGs. Agora corro o risco de pegar 25 anos de prisão.
E agora?
Saí sob fiança após 3 meses e meio de prisão preventiva. O processo era para ser em novembro de 2021, mas será no dia 10 de janeiro.
Pode-se dizer que tentou ajudar a si mesma ajudando os outros?
Sim... ou melhor, ajudei os outros para evitar de me ajudar e deixei um pouco de lado a minha vida.
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“Nadei três horas para salvar a minha vida, agora corro o risco de 25 anos porque ajudo os refugiados” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU