"Contrarreformas e explosão de plataformas e teletrabalho colocaram em xeque a própria noção de jornada laboral. Diante da precarização da vida, luta pelo tempo livre pode ser um dos caminhos para resgatar direitos – e combater o desemprego", escreve Sadi Dal Rosso, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), em artigo artigo publicado por Outras Palavras, 15-12-2022.
Este artigo foi publicado originalmente com o título “Tempos de trabalho em redução: continuar as lutas para construir direitos”, como um capítulo do livro O futuro é a redução da jornada de trabalho (CirKula, 2022).
Examinamos, criticamente, nas páginas que seguem, noção e fatos sobre tempos de trabalho, processos de sua redução e tendências, que, no correr do tempo, foram possíveis construir historicamente tendo por base as lutas deflagradas pelos mais diversos integrantes das classes sociais com tal objetivo. Com efeito, as jornadas laborais são variáveis com o passar do tempo, podendo o número de suas horas aumentar ou diminuir a depender das direções implementadas pelos movimentos sociais. Tais fenômenos são visíveis e podem ser estudados no Brasil e em quaisquer outros países do mundo, já que não há trabalhos sem jornadas, sem horas a implementar.
Em relação ao Brasil, autoras e autores, entre os quais Cardoso (2009), Calvete (2006), Krein (2007), a quem me refiro para representar os demais, já delinearam o percurso das jornadas laborais. Internacionalmente, a duração dos tempos de trabalho foi tratada classicamente por Marx (1976) e, entre outros autores contemporâneos, por Lee, Mccann e Messenger (2009) e a redução das horas de trabalho por Huberman (2002) e outros, e o alongamento das jornadas nos EUA por Schor (1992) em processos que alcançaram, especialmente a mão de obra assalariada. O capítulo, no entanto, tem marca própria, dada pelo tratamento conjunto das lutas pelo controle da duração, do grau de intensidade e da distribuição dos tempos de trabalho e pela perspectiva colocada no horizonte da história de retomar as lutas por menos horas laborais. Metodologicamente o capítulo é construído com revisão de fatos e lutas sociais, da mais recente campanha e seus resultados, com base em entrevistas e relatos de autores.
Ao início da industrialização no Brasil, ainda em pleno século XIX, em estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, dentre outros, as jornadas de trabalho foram ampliadas ao seu limite máximo possível, fato que conduziu trabalhadores e trabalhadoras à única porta que lhes sobrava, lutar pela redução da jornada de trabalho.
Essas lutas se corporificaram em movimentos grevistas gerais que traziam entre suas bandeiras explicitamente a reivindicação das oito horas diárias de trabalho (HARDMAN; LEONARDI, 1991), exigência que caracterizou o movimento do dia 1º de maio de 1907 e o movimento grevista de 1912 de sapateiros e trabalhadores em indústrias têxteis. Por esta época as greves repercutiram no Congresso Nacional e projetos de leis foram apresentados por parlamentares buscando alcançar a diminuição da jornada de trabalho. Em ambos os movimentos, as greves terminaram com vitórias localizadas, mas que romperam as barreiras do trabalho sem limites e sem controles, usual nas fábricas do século XIX. Em tais lutas de desespero, porquanto os trabalhadores não tinham outra alternativa senão derrotar o presente, a greve de 1917 foi impulsionada por repercussões da Revolução Russa, que, pela primeira vez na história mundial, registrava os tempos laborais dos trabalhadores e das trabalhadoras em oito horas diárias (RIMASHEVSKAYA; VERSHINGSKAYA, 1993). O governo brasileiro reagiu com repressão, prisões e mortes.
Subjacente à redução das jornadas, naquela época tal qual aos dias de hoje, está presente o problema da produtividade na maioria das fábricas, operários e operárias alcançaram as metas estabelecidas para os limites das jornadas. Com os limites da produtividade alcançados, o sistema justificador do trabalho prolongado começa a se esgarçar. O Estado da Bahia, assim, em 10 junho de 1919, acata a reivindicação de oito horas em estabelecimentos industriais e categorias como transportes, após assinados acordos entre grevistas e patrões (CASTELUCCI, 2005, p. 154).
Vitórias alcançadas em greves e ação parlamentar conduzem à generalização das jornadas de oito horas diárias, quarenta e oito horas semanais, com a possibilidade de mais duas horas extras diária remuneradas. Tal padrão extensíssimo de trabalho começou a corporificar-se nos decretos leis do Governo Getúlio Vargas, em 1932, iniciando pelo comércio e seguindo pela indústria (DAL ROSSO, 1996, p. 239-240) e disseminando-se para outros setores. Mais avante, o processo regulatório do trabalho resultou na Consolidação das Leis do Trabalho de 1943. Vale esclarecer que a legislação reguladora da jornada não se aplica à maior parte da população trabalhadora por morar no meio rural.
Este primeiro ciclo de lutas, dos movimentos de trabalhadores e trabalhadoras e de seus aliados, que se encerra com alguma redução dos tempos de trabalho é fundamental para o entendimento do elevado grau de crescimento econômico, ancorado na produção de mais-valia que o Brasil viveu até a crise que sepultou a Ditadura Civil Militar em 1985.
Praticamente meio século mais tarde, na década de 1980, trabalhadoras e trabalhadores, organizados em sindicatos e associações, promovem o segundo importante movimento pela redução da jornada de trabalho. Este segundo momento assemelha-se bastante ao primeiro, por ter uma pauta definida de redução da jornada fixada em oito horas diárias, 40 semanais, controle das horas extras e preservação dos salários. Com tais objetivos são organizadas greves e outros movimentos paredistas e forçada a negociação. Os movimentos sociais encontraram apoio na ação parlamentar que se manifestou especialmente durante o Congresso Constituinte de 1986 a 1988.
A assim chamada “greve da vaca brava”, o principal movimento com o objetivo de diminuir a duração da jornada laboral, explodiu em 11 de abril e concluiu em 4 de junho de 1985, a depender de as empresas assinarem acordos individualizados rapidamente ou a tentarem resistir prolongando o movimento. Ao final desta greve, a jornada de 44 horas semanais já saia implantada em um número significativo de empresas do setor metalmecânico entre outros. As 44 horas semanais conquistadas apontavam para o que seria o futuro da duração da jornada para os trabalhadores.
A generalização da jornada de 44 horas para o setor privado foi decidida durante o Congresso Constituinte, iniciado em 1986, e que estabeleceu os novos parâmetros para a sociedade do trabalho no pós-Ditadura Civil Militar de 1964 a 1985. A jornada laboral no setor público era de 40 horas e preexistia ao Congresso Constituinte em decorrência de legislação específica.
A proposta de 40 horas semanais como jornada do setor privado prevaleceu nas primeiras etapas deste Congresso. No seu curso, entretanto, congressistas próximos ao governo formaram o grupo político chamado de Centrão e assumiram as rédeas do poder de decisão no evento e conseguiram reverter a proposta mais progressista. A proposta de 40 horas semanais para o setor privado foi, pois, derrotada e, em seu lugar, foram recuperadas as 44 horas semanais, testadas durante as greves. E com tal resultado encerrou-se o segundo período de conquistas de duração da jornada para a classe trabalhadora.
No período pós-1988 entrou em curso, por um lado, um lento processo de implementação das decisões aprovadas pela nova Constituição. Neste período, por outro, também se encontrava presente o impacto de ações (neo)liberalizantes por parte de governos antipopulares, medidas que se opunham à generalização das 40 horas de trabalho para todos os setores e ramos de atividade ou que procuravam reverter o processo de redução das jornadas. É exemplo a adoção do chamado banco de horas, sistema de compensação que tinha como alvo eliminar tempos mortos de meio dos tempos remunerados por empregadores e capitalistas (KREIN, 2007). Tal banco exerce a função de tornar mais intenso e denso o trabalho, transferindo uma quantidade maior de valores dos trabalhadores para as contas do capital.
Não é possível descrever os enfrentamentos entre capital e trabalho que ocorreram entre 1990 e os dias de hoje, particularmente as lutas levadas a efeito por meio de negociações e de greves que tinham por bandeira a redução da jornada laboral. Mais informações e análises podem ser encontradas, entre outros, no capítulo deste livro escrito por autores que atuam no Dieese.
Mas descreveremos com bastantes detalhes, entretanto, a Campanha pela Redução da Jornada de Trabalho planejada e executada no início do século XXI para recolocar na pauta sindical e dos trabalhadores a reivindicação das 40 horas semanais sem redução de salários. Visava ainda enfrentar a atuação dos governos liberais e as alianças com o empresariado que se seguiu ao período pós-Congresso Constituinte de 1988. A descrição que segue vale-se de entrevistas online, com assessor e assessora que estiveram diretamente envolvidos na campanha e por isso o material utilizado é essencialmente de fontes primárias.
Idealizada por assessores do DIEESE, a campanha foi assumida, não sem dificuldades, por boa parte da estrutura sindical brasileira.
A primeira questão provém dos objetivos da campanha. Cardoso (2009) faz uma análise conceitual e política detalhada sobre a pertinência de ligar redução da jornada com criação de empregos. O outro fim também alcançado com a redução da jornada é mais tempo livre. Tal objetivo, ainda que inteiramente legítimo por preservar a saúde dos/as trabalhadores/as, está sujeito a uma exposição ideológica negativa baseada no argumento de que os trabalhadores não desejam trabalhar. Cardoso analisa ainda a organização da campanha, a importância da participação do governo e a comparação da campanha levada a termos aqui no Brasil e na França, aproximadamente na mesma época.
Uma segunda questão tem a ver com a participação dos sindicatos na campanha. Ora, o sindicalismo brasileiro só de maneira muito distante pode ser descrito como uma estrutura com unificação. Durante a Campanha não ocorreu de outra maneira. “Participaram da Campanha as seis maiores Centrais Sindicais” (Entrevista A, 2021) e as confederações, federações, sindicatos e associações. Estas eram as forças que se uniram para alcançar o objetivo de reduzir a jornada de trabalho para 40 horas semanais.
Observando de outro ângulo, seis também indica divisão. Porque as seis centrais têm seus interesses próprios, dominam determinados terrenos políticos e sociais e articulam-se com os partidos vigentes. Seis é unificação e apoio para realizar uma campanha juntos, sem, entretanto, conceder espaços de poder e comando. Seis não é um. Donde procedem as perguntas e as fontes de divisões: Por que se formaram tantas centrais sindicais no mundo sindical brasileiro? Para aumentar a força do sindicalismo? Para alcançar acesso aos abundantes recursos do Estado? Por divergências políticas e partidárias entre sindicatos? Por ocupação de espaços políticos?
Com o passar do tempo, as diferenças e divergências foram sendo administradas e seis entidades sindicais empunharam a bandeira da redução da jornada, por mais empregos e sem redução de salários. Tal composição majoritária de seis não realizou a unidade do movimento sindical, ficando entidades mais à esquerda fora da campanha.
A Campanha foi realizada por meio das seguintes atividades:
O DIEESE era o responsável técnico pela produção de material que dava sustentação à Campanha… foram ministradas incontáveis palestras, cursos e entrevistas. Foram financiadas a produção de duas teses de doutorado, foram feitas oito Notas Técnicas, uma Cartilha, uma História em Quadrinho e apoio a inúmeros panfletos do movimento sindical (Entrevista A, 2021).
Quem participou? Além das centrais sindicais, a Campanha recebeu apoios de sindicatos e de parlamentares:
A campanha teve três movimentos que se confundiam e se reforçavam:
Nesta descrição, mencionam-se ações coletivas, não havendo alusão a movimentos de rua e a greves que incluíssem em suas pautas as 40 horas semanais ou outras reivindicações de redução da jornada, o que de fato aconteceu.
A campanha teve uma vigência longa: começou em 2003 e conseguiu manter-se ativa até 2010-2011: a campanha começa a perder fôlego já na época das discussões em torno do “mensalão” (Entrevista B, 2021). “Não teve um fim formal. No entanto as ações, publicações e atividades começaram a diminuir em 2010 e 2011” (Entrevista A, 2021).
Descrita a Campanha, passa-se a examinar resultados alcançados. A Campanha não alcançou o objetivo de alterar o artigo da Constituição que estabelece a jornada de 44 horas semanais de trabalho para o setor privado, diminuindo-a para 40 horas. Entretanto, o exame de estatísticas dos censos demográficos brasileiros de 2000, comparados com o censo de 2010, dão contas de diversos fenômenos, dos quais dois merecem ser destacados aqui: primeiro, a média de horas de trabalho continuou a diminuir entre estas duas datas; segundo, trabalhadores e trabalhadoras assalariados também passaram a fugir das jornadas extremamente longas de 50 ou 60 horas reforçando a participação maior em jornadas de 30, 40 a 44 horas de trabalho por semana.
Tais mudanças poderiam ser também efeitos de fatores econômicos e políticos, segundo Entrevista A:
No Plano político, na primeira década dos anos 2000 as condições para a Redução da Jornada de Trabalho no Brasil eram muito apropriadas. Na Europa, a França havia reduzido sua jornada legal de 39 para 35 horas semanais. A América Latina experimentava um significativo aumento do número de governos progressistas ou de centro-esquerda (Uruguai, Bolívia, Paraguai, Argentina, Brasil, Venezuela) como uma opção para tentar reverter o fracasso das políticas neoliberais dos anos 1990 que aumentaram o desemprego, a precarização, a informalidade e diminuíram os salários. No Brasil, a chegada à Presidência da República de um sindicalista pelo Partido dos Trabalhadores.
No plano macroeconômico, a economia brasileira experimentava baixas taxas de inflação, crescimento econômico e ganhos de produtividade. E, é importante ressaltar, que a RJT como meio de combater o desemprego tem baixo risco monetário, aspecto importante em uma sociedade traumatizada pela recente hiperinflação.
No plano microeconômico, nos anos 1990 a maioria das empresas nacionais havia passado por uma forte reestruturação produtiva com grande incorporação de inovações tecnológicas e adoção de novas técnicas organizacionais e se beneficiaram das mudanças na legislação trabalhista que reduziu o custo salarial e intensificou o ritmo de trabalho. Portanto, vinham de um momento em que tiveram aumento de produtividade, redução dos custos e diminuição da utilização da força de trabalho, portanto tinham capacidade de absorver o pequeno aumento de custo dado pela RJT (Entrevista A, 2021).
Se em razão de economia, política ou resultado da ação sindical, o fato é que são verificáveis mudanças nas jornadas laborais no período considerado. Com efeito, consultando os dados dos censos demográficos de 2000 e de 2010 (DAL ROSSO, 2017) acima referidos, assim como das Pesquisas Nacionais por Amostras de Domicílio contínuas (DAL ROSSO; SANTANA, 2021, Tabela 3) obtém-se um panorama de lentas, mas continuadas reduções das jornadas de trabalho. Fica em aberto o significado de tais mudanças e sua composição social. Conforme aponta a Entrevista A para ressaltar a complexidade da evolução das jornadas de trabalho:
[…] nesse período 2000-2010 (verificou-se) uma forte redução da taxa de desemprego as elevadas taxas de desemprego andam no mesmo sentido da utilização das horas extras. Como nesse referido período diminuiu o desemprego também diminuiu a utilização de horas extras. Então teria que tentar separar esses dois fatores. O quanto da diminuição da jornada média foi causada pelas conquistas de RJT e quanto foi causada pela diminuição das horas extras (Entrevista A, 2021, por e-mail).
Parte da avaliação crítica da Campanha precisa ser dirigida a elementos mais qualitativos, tais como os envolvimentos do governo e da burguesia empresarial, destacados da Entrevista B:
No que se refere ao desenvolvimento e resultados da campanha, até o presente ela não se traduziu em um amplo e efetivo processo de discussão. Primeiramente, porque foi difícil ao movimento sindical assegurar a mobilização dos trabalhadores. Diversas razões […]: seja porque não é uma tarefa fácil conseguir realizar uma campanha nacional em torno da temática do tempo de trabalho; seja porque dentre as categorias com uma história de maior organização e mobilização, a maior parte já conquistou uma jornada de trabalho menor do que o previsto na legislação; seja ainda porque para as outras categorias, como muitas vezes explicitado pelos próprios trabalhadores, a preocupação central é emprego e salários e não redução do tempo de trabalho (Entrevista B, 2021).
No início do primeiro mandato do Governo Lula, as reformas sindical e trabalhista foram colocadas como prioridades de governo […]. Porém, a partir do momento em que o governo viu-se envolvido na crise política, abandonou as discussões das reformas, e, face ao cenário bastante conturbado, a Campanha pela Redução da Jornada de Trabalho perdeu fôlego. Como resultado, a campanha se viu sem o apoio dos trabalhadores, sem o apoio do governo, e, consequentemente, não conseguiu inserir este tema na pauta negocial com os empresários, que se posicionam totalmente contrários à redução da jornada de trabalho (Entrevista B, 2021).
A proposta de redução da jornada de trabalho foi perdendo lugar na agenda social e na rua. Mesmo assim, manteve espaço em acordos trabalhistas, em negociações por empresas, elemento que fornece explicação para a lenta, mas continuada redução da média de horas, década após década (“dentre as categorias com uma história de maior organização e mobilização, a maior parte já conquistou uma jornada de trabalho menor do que o previsto na legislação”, Entrevista B).
Para o empresariado, os anos após a Constituição de 1988 foram um período de recuperar terrenos perdidos, tentativa após tentativa, de que são exemplo o banco de horas ou a terceirização que é o “golpe mais duro (desferido) contra o direito do trabalho”, como escreve Coutinho (2021, p. 206) nas reformas recentes propiciadas pelos tribunais. Os governos golpistas de Michel Temer e Jair Bolsonaro assumem a tarefa de reverter o curso declinante da jornada de trabalho na Legislação Trabalhista, de precarizar as condições de trabalho e de outros dispositivos antitrabalho aos quais chamaram de “Reforma Trabalhista” e que resumiremos mais à frente.
A realização de uma campanha nacional pela redução da jornada de trabalho, embora não tenha alcançado seu maior objetivo no momento de sua efetivação, não perde seu valor como fato histórico. Foram feitas marchas públicas, assembleias, reuniões, eventos, deliberações, estudos, publicações e todo um acervo de ações promovidas pelos movimentos sociais e pelos sindicatos de trabalhadores, isto é inegável. E terão seu lugar na história do trabalho dos brasileiros. São fatos e estão registrados. Serão parte da história do trabalho. As lutas pelo controle dos tempos de trabalho mantêm-se através dos anos e formam um acervo a que trabalhadores e trabalhadoras recorrem para organizar suas pautas de reivindicações e implementar negociações no dia a dia. A história do trabalho inescapavelmente carrega a marca da realização, no início do século XXI, no Brasil, de uma campanha com grande repercussão social pela redução dos tempos de trabalho sem redução dos salários.
Há também um elemento de retroalimentação entre países do sistema capitalista mundial. Se a RJT não alcançou todos os objetivos que pretendia no caso brasileiro, a luta desenvolvida na França alcançou sucesso com a implantação das 35 horas de trabalho semanal e serviu de exemplo. Escreve Coutrot (2022, p. 160) em capítulo deste livro: “A mudança para uma semana de 35 horas (LEIS AUBRY, 1998-2000) criou centenas de milhares de empregos, sendo que os/as trabalhadores/as apreciaram muito os dias extras de folga conquistados”. No caso mencionado da França, houve um envolvimento grande de parte do governo em apoio à implantação da jornada mais reduzida de trabalho e envolvimento dos/as trabalhadores/as e seus sindicatos.
Dentro dessa perspectiva de análise do processo histórico do desenvolvimento da Campanha pela RJT realizada no Brasil entre os anos 2003-2011, os resultados são avaliados positivamente por assessores do movimento:
A partir da experiência dessa Campanha e daquelas desenvolvidas em outros países, entendo que, se o governo não “aderir” a classe trabalhadora não terá chance de ter sua reivindicação atendida, sobretudo num contexto de intensificação das políticas neoliberais. Tudo o que vimos no pós-crise 2008 foi um processo de ampliação (explícita e velada), de destruição de limites da jornada de trabalho e da criação de novas formas de contrato de desconsiderar o tempo de trabalho – do trabalho intermitente, até aqueles que desconsideram mesmo a existência de uma relação de emprego – como no caso das plataformas. Não acho que faltem condições econômicas e tecnológicas, essas temos de sobra, mas nos faltam condições políticas (Entrevista B, 2021).
Desta avaliação resulta a conclusão sobre a importância de também o governo, além dos sindicatos, aderir à luta da classe trabalhadora. Há que avaliar ainda se outras condições econômicas, políticas e sociais estão presentes e se favorecem o deflagrar de um movimento. Neste sentido, outro assessor da Campanha pela RJT se pronuncia pela viabilidade da retomada de uma campanha hoje e pelo apoio que receberia de novos trabalhadores precarizados:
A Campanha é viável porque pode mobilizar amplos setores dos trabalhadores, os desempregados, os subocupados, os superocupados, os precarizados, os por tempo indeterminado, os trabalhadores de plataforma e as novas modalidades de vínculo que vem crescendo de forma exponencial: Trabalho Intermitente e Teletrabalho. […]. A Campanha teria que se adaptar e inserir propostas específicas de regulamentação e/ou proteção do tempo de trabalho, direito à desconexão etc. que dialoguem com esses novos atores.
Diante da situação atual de altas taxas de desemprego, polarização das jornadas de trabalho (muito altas e muito baixas) e desemprego estrutural é necessário que se adotem medidas que melhorem esse cenário. Também, se levarmos em conta as perspectivas futura de diminuição de postos de trabalho em função do forte boom de inovações tecnológicas a RJT é uma das possibilidades para enfrentar a situação. Atualmente tem ganhado os holofotes para solução do problema do desemprego e das exclusões a Renda Básica Universal, mas creio que a RJT pode ser discutido como alternativa à Renda Básica Universal ou como uma medida a vir a ser adotada conjuntamente com ela (Entrevista B, 2021).
Cabe pensar na redução da jornada de trabalho como mecanismo de criar novos empregos numa sociedade em que a inovação tecnológica consome cada vez mais postos de trabalho. E, “Ao mesmo tempo, lançar uma campanha junto com a próxima eleição, a questão do emprego etc., pode ser uma boa oportunidade de construção de algo comum entre as centrais sindicais” (Entrevista B, 2021).
O Brasil não apresenta dificuldade sobre de onde procedem os empregos. A infraestrutura econômica está dilapidada. Investimentos para a preservação do meio ambiente urbano e rural são fonte inesgotável de empregos.
Se a Constituição de 1988 representou um avanço no controle da duração dos tempos de trabalho por parte dos trabalhadores, governos que a sucederam foram plenos em iniciativas de recuperar para o capital valores produzidos e retidos nas mãos do trabalho.
No livro Resistência (SOUTO MAIOR; SEVERO, 2017), publicado após a entrada em vigor da Lei n. 13.467/2017, pela qual o governo de Michel Temer pretendeu “adequar a legislação às novas relações de trabalho”, é realizada uma análise crítica de dispositivos a presidir a jornada de trabalho (SOUTO MAIOR; SEVERO, 2017, p. 259-351). Retemos as seguintes disposições sobre jornada:
a) A limitação da jornada é um direito fundamental porque constitucional.
b) A evolução da regulação do trabalho e o banco de horas, o regime 12 x 36, os tempos de descanso para repouso e alimentação, o teletrabalho e o trabalho intermitente, contribuem para transformar a vida do trabalhador em disponibilidade contínua para o trabalho.
c) O conceito de jornada de trabalho encontra incompatibilidades nas novas “práticas” do trabalho.
d) A jornada 12 x 36 representa uma regressão histórica; reintroduzir uma jornada contínua de 12 horas recupera o passado do tempo de trabalho, com impactos sobre a saúde e a psique do/a trabalhador/a. Nem empregador, nem Tribunal Superior do Trabalho, que facultou o início de tal experimentação, estão preocupados com a saúde de quem trabalha sem descanso.
e) O trabalho intermitente precariza as condições de trabalho pelos infinitos tempos de espera.
f) O teletrabalho e o trabalho segundo a modalidade das plataformas retiram limites da jornada, tornando-a um elemento sem sentido porquanto as horas à disposição do trabalho não são remuneradas.
g) A nova legislação “reformista” promove ataques aos intervalos de descanso.
h) Permite partilhar as férias o que afeta seu papel principal de recuperação do/a trabalhador/a.
Ademais, ao estabelecer sua legalidade, a “contrarreforma” de Michel Temer não define a duração da jornada de teletrabalho, de modo que prevalecem a flexibilização na distribuição dos tempos de trabalho, as jornadas com duração extensa para além da duração legalmente estabelecida e a intensificação do labor. A intensificação é propiciada pela introdução de moderníssimas tecnologias nos mais diversos contextos do trabalho, desde o trabalho rural e a extração mineral, passando pelo campo industrial, comercial e de serviços e terminando no setor que mais usa tecnologia, o setor financeiro.
Os impactos das mudanças são tão profundos e violentos que o próprio conceito de jornada é abalado em inovações que substituem as jornadas historicamente definidas. A exemplo, a modalidade de trabalho, chamada de Zero Hour Work (ZHW), que é trabalho inseguro na avaliação de pesquisadores ingleses (FELSTEAD et al., 2020) pode ser entendida ainda como jornada, uma vez que as horas de trabalho são diferentes a cada dia que passa?
Veja-se, como outro exemplo, o significado da aprovação da Proposição 22 no referendo popular do Estado da Califórnia em 2020. Prevaleceu a noção de que a relação entre contratadores independentes e empresas de plataformas não representava um contrato de trabalho assalariado. Os contratadores seriam agentes independentes e não trabalhadores assalariados. Com isso trabalham o quanto quiserem e o quanto puderem. Isto é jornada, embora os tempos de trabalho não se repitam? Uma hora é jornada? Doze horas é jornada? Dezoito horas trabalhadas no mesmo dia é jornada? O mesmo argumento e as mesmas perguntas aplicam-se ao trabalho dos contratados por meio de plataformas, no Brasil. São tidos como empreendedores independentes (MEIs) e não assalariados, portanto, sem controle sobre os tempos de trabalho, muito embora legislação mais recente tenha incorporado a exigência de contratação de seguro pelas empresas.
Eleito paradoxalmente com formidável apoio sindical, uma das primeiras decisões tomadas pelo presidente golpista Jair Bolsonaro foi promover a chamada “Reforma Sindical” pela qual dificultava a dedução da contribuição sindical compulsória de toda a categoria reconhecendo apenas o recolhimento de recursos com a devida autorização do contribuinte.
O Governo de Jair Bolsonaro liberou, ainda, com apoio do Congresso Nacional, o trabalho aos finais de semana, o trabalho noturno, abrindo espaço para que o labor seja realizado em qualquer momento do dia ou da noite. Ora, o trabalho em domingos, sábados, feriados, o trabalho noturno, são medidas que jogam ao chão conquistas feitas pelos trabalhadores durante muitas décadas de lutas.
Mais recentemente, o governo investiu novamente contra o teletrabalho e contra os/as trabalhadores/as que vivem de tais atividades por meio das Medidas Provisórias n. 1108/2022 e n. 1109/2022, num esforço para excluir o número máximo possível de trabalhadores da contagem do tempo de trabalho e do pagamento de jornadas e de horas extras de tal forma que as empresas possam acumular mais.
É fato que as jornadas de trabalho foram reduzidas pelo menos duas vezes na história do trabalho brasileiro, por ação dos próprios trabalhadores/as, e com respaldo de algum setor do Estado, Legislativo, Executivo ou Judiciário. Mesmo assim a duração da jornada de trabalho continuou enorme: a legislação em vigor estabelece que o trabalho no setor privado é de 44 horas semanais, um padrão muito maior do que outros países do mundo. Lutas pela jornada de 40 horas semanais ocorreram durante o Congresso Constituinte de 1986-88 e durante a realização da Campanha pela Redução da Jornada de Trabalho, sem redução de salários, entre os anos de 2003-2011. Durante os seis últimos anos, sob os governos de extrema direita, a Legislação Trabalhista foi reformada de tal maneira a favorecer os empregadores.
Nos dois últimos anos, a pandemia da covid-19 forçou os governos a tomarem medidas pelas quais trabalhadores/as deixaram de cumprir suas jornadas laborais usuais embora uns recebendo salários integrais e outros parcelas deles. Inclusive trabalhadores não assalariados foram beneficiados com apoios sociais. Não há ainda como avaliar o impacto de decisões tomadas em função do combate à pandemia sobre a organização da vida cotidiana de trabalhadores/as. Trabalhadoras e trabalhadores, assalariados ou não, entraram em contato com outras formas de organizar as horas laborais, na maioria dos países do mundo. Alguns com horas para mais, como no caso de trabalhadores por plataformas, outros para menos. Por isso começaram a aparecer reivindicações que colocam em xeque os parâmetros de trabalho anteriores à covid-19. Deriva daí a iniciativa de organizar lutas por jornadas laborais com duração menor, com salários preservados e com maior grau de igualdade de gênero e de raça/cor.
A história da jornada de trabalho fornece esclarecimentos que jamais podem ser esquecidos: que a redução da jornada é viável. Alcançar jornadas com menor duração ou jornadas menos intensas depende de lutas sociais. Lutas contínuas, não passageiras. Organizar uma ação pela redução da jornada de trabalho depende basicamente de quem trabalha. A base dos trabalhadores e das trabalhadoras, não está envolvida ainda. A campanha começa por aqui. Pois, a bandeira da redução da jornada de trabalho é dos trabalhadores e das trabalhadoras.
BRASIL. Lei n. 13.467/2017. Brasília, 2017.
BRASIL. Medida Provisória n. 1108/2022. Brasília, 2022a.
BRASIL. Medida Provisória n. 1109/2022. Brasília, 2022a.
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