03 Novembro 2022
"A forma como Francisco decidir se relacionar com a agenda de extrema direita de Meloni não é apenas uma questão italiana, mas também global. Se a nova primeira-ministra conseguir liderar sua coalizão, ela poderá se tornar um modelo para os católicos da guerra cultural estadunidenses e europeus – ainda mais do que Orban ou Le Pen. O apoio ao governo de Meloni por parte de muitos católicos na Itália e no Vaticano pode abafar a voz do Papa Francisco contra o nacionalismo e a xenofobia. E isso pode mudar a forma como a história eventualmente vê seu pontificado".
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado em La Croix International, 11-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O modo como os papas se relacionaram com a política italiana sempre lançou uma luz sobre a visão de mundo do bispo de Roma.
O Papa Francisco é um papa muito “político”. Basta lembrar as tensões entre o Vaticano e os Estados Unidos durante a presidência de Donald Trump e o envolvimento do papa com questões sociais globais como a imigração e o ambiente. Mas a relação entre o atual pontificado e a política italiana permaneceu oculta ou adormecida durante os nove anos e meio de mandato de Francisco.
Nesse período de tempo – 2013-2022 – a Itália foi governada por cinco primeiros-ministros diferentes (cujo título oficial é “presidente do Conselho de Ministros”). Eles eram ou tecnocratas respeitados (como Mario Draghi) ou políticos (Giuseppe Conte, Matteo Renzi, Enrico Letta e Paolo Gentiloni). Cada um desses homens governou com o apoio de fortes maiorias políticas no Parlamento durante uma situação de emergência (estabilidade financeira do país e depois a Covid-19).
Suas administrações não tinham uma narrativa política clara sobre o papel da religião na sociedade italiana, além de manter um padrão de secularismo brando em um sistema eclesiástico estabelecido que foi criado pela Concordata que Benito Mussolini e Pio XI assinaram em 1929 e que seus sucessores atualizaram em 1984.
Na última década, nenhum primeiro-ministro italiano mostrou interesse em uma mudança revanchista e em um retorno militante dos valores cristãos na sociedade italiana. Pelo contrário, as medidas anti-Covid postas em prática pelo governo Conte em 2020 deixaram alguns católicos proeminentes (bispos, mas também intelectuais) com a impressão de que o papel social e espiritual da Igreja não era mais respeitado na Itália.
A situação mudou agora com a chegada de Giorgia Meloni, a primeira primeira-ministra da história italiana e líder do governo mais direitista do país desde 1945. Seu partido Irmãos da Itália (Fratelli d’Italia) fez a campanha com o slogan “Deus, família e pátria”, e ganhou votos suficientes nas eleições gerais de setembro passado para tomar posse em 22 de outubro.
Meloni tem uma visão do papel da religião na sociedade italiana que difere de seus antecessores tecnocratas e centristas. Mas também é uma visão que contrasta com as visões libertinas do bilionário e ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, um aliado-chave na coalizão de governo de Meloni.
A nova primeira-ministra da Itália é mais uma “cristã cultural” do que uma católica praticante. Sua vitória eleitoral deveu-se, em parte, à globalização das “guerras culturais” estadunidenses. Ela protestou contra a teoria ou ideologia de gênero e se manifestou a favor da “família tradicional” e de uma presença mais robusta da cultura e dos símbolos cristãos em praça pública. Ela mencionou muitas vezes a profunda impressão que João Paulo II deixou nela, por exemplo, pelo seu (fracassado) esforço para que a Constituição europeia incluísse uma referência às raízes cristãs do Velho Continente.
Meloni publicou uma autobiografia em 2021 chamada “Io sono Giorgia” (Eu sou Giorgia). Ela continha uma crítica velada ao Papa Francisco e à sua abertura a diferentes formas de encarnar o Evangelho. Ela admitiu que é uma daquelas católicas que estão “confusas” com o atual papa, dizendo que espera entendê-lo um dia. Foi uma forma inteligente de proteger suas apostas e evitar um confronto aberto com o papa jesuíta.
Meloni evoluiu como política desde a adolescência, quando era um membro radicalizado da Alleanza Nazionale, herdeira de extrema-direita do partido neofascista Movimento Sociale Italiano. E, nos últimos anos, ela se opôs aos esquerdistas italianos que tentaram importar uma agenda progressista ao estilo estadunidense (vejam-se as polêmicas nas mídias sociais sobre os pronomes pessoais).
Ela também se capitalizou com o conservadorismo inato da sociedade e da cultura italianas e conseguiu se esquivar da hipocrisia e das incongruências entre suas posições públicas e sua vida privada, algo que se tornou típico dos defensores pós-modernos de um papel mais forte do catolicismo na política. Os guerreiros culturais que apoiam o movimento Trump até a convidaram para falar na Convenção da Conservative Political Action Conference (CPAC) em fevereiro passado na Flórida.
Meloni fez uma aliança ideológica com lideranças políticas semelhantes na Europa, como Viktor Orban, o homem forte da Hungria; Marine Le Pen, o ícone da extrema direita da França; e líderes do partido ultradireitista espanhol Vox. Ela também sabe que há prelados no Vaticano e um um certo número de católicos influentes na Itália que estão felizes – alguns abertamente, outros mais discretamente – em vê-la no poder. E, assim como o Papa Francisco, ela tem um grande talento para entender os impulsos de uma sociedade moralmente desorientada.
Esse lado da imagem é claro. Mas o que ainda não está claro é como Francisco se relacionará com essa mudança epocal na política italiana. Não há dúvida de que ele vê a relação entre a Igreja e a política de uma forma muito diferente de Orban, digamos.
Francisco, que nasceu na Argentina em uma família de imigrantes italianos, está claramente preocupado com a ascensão do nacionalismo na Europa e as consequentes mudanças que isso está causando nas políticas de imigração. Ele também está ciente de que as tentativas contínuas dentro da Igreja de desfazer a visão do Concílio Vaticano II (1962-1965) não criaram apenas uma crise litúrgica, mas estão também ameaçando a legitimidade da teologia pós-Vaticano II e do pensamento social católico.
No entanto, Francisco está se movendo agora de uma maneira diferente em relação à política do que em 2016 ou 2017, quando as divergências entre seu pontificado e Trump eram gritantes. Nos últimos meses, o Vaticano e lideranças da Igreja Católica na Itália têm sido extremamente cautelosos em relação às eleições italianas.
As vozes que criticaram duramente o trumpismo em 2016 e 2017 – como a revista La Civiltà Cattolica, dirigida pelos jesuítas e aprovada pelo Vaticano – permaneceram em silêncio durante a campanha eleitoral da Itália, na qual os partidos de direita, cujo histórico sobre a imigração é claramente problemático do ponto de vista do ponto de vista do ensino da Igreja, apresentavam-se como os defensores do cristianismo.
Francisco, por outro lado, continuou defendendo os direitos dos imigrantes – e de forma contundente. Mas, durante as eleições italianas, ele teve o cuidado de não dar a impressão de que a Igreja estava tomando partido. Aliás, ele chegou até a telefonar ao novo presidente da Câmara dos Deputados, Lorenzo Fontana, para agradecer ao político por ter mencionado o seu nome (do papa) no primeiro discurso do presidente aos deputados. Fontana é conhecido por ser um extremista que sustenta visões teológicas tradicionalistas e posições políticas reacionárias.
Houve pistas nos últimos meses que podem ajudar a explicar as complexidades da relação do papa com a política, até mesmo além das fronteiras da Itália. Primeiro, é ingênuo e delirante vê-lo como um esquerdista liberal disposto e capaz de liderar uma oposição ao governo de extrema direita de Meloni – ou a qualquer governo de direita. Isso simplesmente não é possível, e não apenas por razões diplomáticas.
Entre a tradição do “catolicismo social” e os movimentos e partidos políticos de direita tem havido convergências (a família e as questões da vida, o antielitismo e o anti-intelectualismo) desde o fim do século XIX, que continuam surpreendendo alguns dos ingênuos defensores progressistas desse pontificado em igrejas e sociedades polarizadas como nos Estados Unidos.
Isso vale para todos os papas. Mas talvez seja ainda mais complicado para Francisco, um católico influenciado pelo peronismo de sua Argentina natal. Juan Perón se inspirou nas lideranças católicas politizadas de seu país sul-americano nos anos 1930. Curiosamente, há algo de peronista na plataforma ideológica de Giorgia Meloni: um revanchismo que afirma falar pelos oprimidos do país, uma reação contra os liberais e as elites pós-marxistas e uma interpretação nacionalista ou “soberanista” do capitalismo.
(Não se deve esquecer que, no fim dos anos 1920 e 1930, muitos católicos italianos e autoridades vaticanas viam a agenda socioeconômica de Mussolini com simpatia, o que foi fundamental para criar o consenso para o regime fascista que durou até a Segunda Guerra Mundial.)
Em segundo lugar, os católicos progressistas não podem esperar que o papa faça apenas aquilo que os católicos leigos deveriam fazer na política. O problema é que os católicos progressistas do Vaticano II na Itália (mas não apenas) adotaram uma estratégia de abandonar a política nas instituições em favor de uma estratégia da sociedade civil.
O resultado é que, se pensarmos nos católicos italianos que são ativos na praça pública e nas instituições públicas, não há muita coisa além do movimento Comunhão e Libertação e da Comunidade de Santo Egídio. Esses são dois movimentos eclesiais muito vívidos, com paixões e interesses políticos, mas pouco representativos do catolicismo italiano em sua totalidade.
O Partido Democrata-Cristão (Democrazia Cristiana) se foi desde 1994, assim como todos os outros grupos e movimentos católicos, dos quais talvez reste apenas uma sombra daquilo que costumavam ser. Enquanto isso, os católicos conservadores ou reacionários são representados na política hoje de maneiras com as quais os católicos progressistas só poderiam sonhar.
Finalmente, a forma como Francisco decidir se relacionar com a agenda de extrema direita de Meloni não é apenas uma questão italiana, mas também global. Se a nova primeira-ministra conseguir liderar sua coalizão, ela poderá se tornar um modelo para os católicos da guerra cultural estadunidenses e europeus – ainda mais do que Orban ou Le Pen. O apoio ao governo de Meloni por parte de muitos católicos na Itália e no Vaticano pode abafar a voz do Papa Francisco contra o nacionalismo e a xenofobia. E isso pode mudar a forma como a história eventualmente vê seu pontificado.
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Como o Papa Francisco lidará com o governo de extrema direita da Itália? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU