02 Novembro 2022
Estou profundamente convencido de que o voto mais consciente, mesmo nestas eleições, foi o voto das minorias indígenas e camponesas, o voto das mulheres, dos homoafetivos, dos negros, das minorias abraâmicas que lutam cotidianamente com seus corpos e seus territórios contra a violência e a mentira, mostrando espiritualidade e caminhos para salvar o planeta do suicídio.
A opinião é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O artigo foi publicado por Settimana News, 01-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "as ameaças da extrema direita continuam presentes no mundo ocidental, na Europa assim como na América Latina: exigem esforços de análises críticas – cada vez mais difíceis – e posições radicais para defender existencial e politicamente aquilo que resta de uma humanidade fraterna, compassiva, justa, não violenta e amante da verdade".
No Brasil, este ano, as ameaças de subversão contra o que resta do estado de direito conseguiram contagiar o povo brasileiro.
Não se tratou apenas do aumento exponencial do ódio e da violência política, semeados pela extrema-direita e pelas Forças Armadas, mas também de uma verdadeira perturbação generalizada gerada pelo estresse eleitoral: preocupações, temores, alarmismos, cansaço.
Terminado o segundo turno das eleições presidenciais, metade dos brasileiros supera o estresse com a alegria de quem sabe desde sempre o que é o carnaval, ou seja, o que significa dançar com alegria para pisotear a dor e a tristeza. Mas a outra metade chora e talvez busca revanches a qualquer preço. Em suma, as emoções são as protagonistas dessa política, que se transformou em um ringue, no qual se é chamado a torcer por um dos competidores contra seu adversário.
São as emoções que, mais fortes do que as atitudes críticas, marcam também o meu íntimo neste tempo. Até o domingo à noite, 30 de outubro, predominavam a minha angústia e a minha preocupação.
De fato, depois de vencer no primeiro turno – na Câmara dos Deputados, no Senado e na maioria dos governos estaduais –, Bolsonaro poderia sair vitorioso do segundo turno. Terminados os escrutínios, os dados revelaram que, por um punhado de votos, Lula estava em primeiro lugar. Alívio, porque eu realmente temia que pudesse ser pior!
Compartilho, portanto, as emoções da melhor parte da sociedade brasileira, porque, apesar de a conjuntura continuar dramática e preocupante, evitamos a catástrofe.
As ameaças da extrema direita, porém, continuam presentes no mundo ocidental, na Europa assim como na América Latina: exigem esforços de análises críticas – cada vez mais difíceis – e posições radicais para defender existencial e politicamente aquilo que resta de uma humanidade fraterna, compassiva, justa, não violenta e amante da verdade.
Por toda parte, o neofascismo se apresenta como inimigo da igualdade: liberticida, colonialista, racista, misógino, homofóbico, defensor dos privilégios e inimigo dos pobres, ligado a religiosidades que pregam o ódio e a guerra. Por toda parte, ele se apresenta artificialmente como antissistêmico, quando na verdade apoia o capitalismo totalmente desregulado e desumano.
No Brasil, ao contrário do que ocorreu recentemente na Itália, a centro-esquerda de Lula consegue propiciar uma ampla aliança de forças políticas, que, por razões diversas, se opõem ao bolsonarismo. O Partido dos Trabalhadores confirma, assim, sua vocação de defensor do sistema, do status quo de uma democracia formal que, ao mesmo tempo, é agredida por forças subversivas, mas não consegue arranhar o poder da elite secularmente privilegiada, desatenta às condições precárias da maioria dos brasileiros e sempre opressora e violenta em relação aos mais fracos.
Veremos se, mais uma vez, Lula e seus novos aliados conseguirão dar continuidade à estratégia do mandato presidencial anterior: o apoio irrestrito ao parasitismo de renda, ao capitalismo do agronegócio e às mineradoras, junto com políticas compensatórias populares: combate à fome, aumento do salário mínimo, carteira de trabalho em tempos de uberização acelerada, saúde, educação etc.
Lula também chega com promessas de defesa da Amazônia e de seus povos, mas ignora – em um tributo prévio ao capitalismo da soja, do eucalipto e da cana-de-açúcar – a situação do Cerrado devastado e moribundo e de sua gente: indígenas, quilombolas e agricultores tradicionais, perseguidos e expulsos pelo Estado e pelas milícias dos empresários.
A savana brasileira, mãe de todos os rios e da água doce, o segundo bioma brasileiro em extensão, presente em nada menos do que 11 estados da União, é perenemente ignorada pela política e pela opinião pública mundial, por países que se calam porque se beneficiam do papel brasileiro como Arábia Saudita verde.
Estou profundamente convencido de que o voto mais consciente, mesmo nestas eleições, foi o voto das minorias indígenas e camponesas, o voto das mulheres, dos homoafetivos, dos negros, das minorias abraâmicas que lutam cotidianamente com seus corpos e seus territórios contra a violência e a mentira, mostrando espiritualidade e caminhos para salvar o planeta do suicídio.
Esperam tudo da sua luta e não da benevolência do Estado, “fiel garçom do capitalismo”, como diria o Subcomandante Marcos.
Infelizmente, o Brasil – assim como os demais BRICs – ainda vive a fase predatória do capitalismo. Esperamos que Lula – mal menor – saiba se livrar do torpor voluntário das esquerdas ocidentais. Tratar-se-ia – sem assustar os blocos sociais médios – de introduzir um reformismo decisivo e substancial visando à implementação cada vez melhor de uma economia de mercado social e sustentável. Quanto à referência ao neofascismo, se a referência é àquele fenômeno que as esquerdas definem como “populismo”, bem, não compartilho a definição. Os neofascismos – na acepção conhecida – são aqueles movimentos ou grupos que elogiam os fascismos históricos, defendendo seu retorno: na Itália, o Casapound ou a Forza Nuova; na Grécia, a Aurora Dourada. Fora dessas formações, parece-me que o rótulo de “fascismo” é mais um desconhecimento – operado pela extrema esquerda – do outro diferente de si, a quem não se reconhece direito à existência. Esse desconhecimento – os Estados Unidos de Trump mostraram isto – só leva a exasperar o ódio político a ponto de subverter as instituições democráticas livres. Obviamente, se o objetivo é a “revolución”, o desconhecimento do adversário político cai muito bem.
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Lula, o menos pior. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU