Uma mesa da sinodalidade em cada realidade eclesial

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18 Outubro 2022

 

"O objetivo da publicação, Sinodalmente. Forma e riforma di una Chiesa sinodale, é resgatar a teologia e a prática da sinodalidade, como dimensão constitutiva e constituinte da vida e missão da Igreja; explicitar a revisão a partir de uma perspectiva sinodal de estilos de vida, de práticas de discernimento e de estruturas de governo eclesial; repensar as relações de autoridade e de igualdade passando para um novo modo de proceder eclesial fundado numa base que inclui todos os fiéis que compõem o povo de Deus". 

 

O comentário é de Andrea Lebra, leigo católico italiano, em artigo publicado por Settimana News, 14-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Um estudo sobre a sinodalidade de uma teóloga e de um teólogo unidos pela condição laical, pelo apego à Igreja e pelo compromisso profissional de se colocar a serviço de suas Igrejas locais "para apoiá-las no testemunho que devem dar em seus respectivos continentes e sociedades” (p. 9).

 

São eles a italiana Serena Noceti (professora de Teologia Sistemática no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Florença) e o venezuelano Rafael Luciani (professor doutor na Universidade Católica de Caracas): ambos professores extraordinários na Boston College School of Theology and Ministry (Massachusetts).

 

O título já é um programa: Sinodalmente. Forma e riforma di una Chiesa sinodale. (Sinodalmente. Forma e reforma de uma Igreja sinodal, em tradução livre). Um livro em que "entram em diálogo as reflexões teológicas e as experiências eclesiais da América Latina e da Europa, especialmente da Itália" (p.17). É publicado pela editora florentina Nerbini (2022) e é dedicado "com gratidão" a Severino Dianich, um dos mais respeitados teólogos italianos que dedicou sua pesquisa ao tema da Igreja.

 

Reprodução da capa de Sinodalmente. Forma e riforma di una Chiesa sinodale

 

Estrutura e propósito do ensaio

 

O prefácio esclarecedor de Alphonse Borras (pp. 7-12), canonista na Universidade Católica de Louvain, e a introdução assinada pelo autor e autora (pp. 13-18) apresentam a estrutura fundamental do livro que, aliás, já pode ser deduzido no relativo subtítulo Forma e reforma de uma Igreja sinodal.

 

Uma primeira parte (capítulos I, II e III), organizada por Rafael Luciani e intitulada A emergência de uma eclesiologia sinodal - Uma definição mais completa de Igreja, identifica na "forma" de sinodalidade "uma definição mais completa de Igreja", como estreitamente ligada a uma recepção mais orgânica e ampla da eclesiologia do povo de Deus e da reconfiguração teológico-cultural das Igrejas locais prevista pelo Concílio Vaticano II.

 

Uma segunda parte (capítulos IV, V e VI), organizada por Serena Noceti e intitulada Caminhos de uma reforma na perspectiva sinodal, oferece indicações precisas para que a Igreja, consciente de que deve ser semper reformanda, se dote de um modelo institucional que estimule e apoie sua sinodalização global, a partir da Igreja local e da vida paroquial.

 

A "conclusão" de cada uma das duas partes retoma os conceitos fundamentais desenvolvidos nos três capítulos relativos.

 

Objetivo da publicação: resgatar a teologia e a prática da sinodalidade, como dimensão constitutiva e constituinte da vida e missão da Igreja; explicitar a revisão a partir de uma perspectiva sinodal de estilos de vida, de práticas de discernimento e de estruturas de governo eclesial; repensar as relações de autoridade e de igualdade passando para um novo modo de proceder eclesial fundado numa base que inclui todos os fiéis que compõem o povo de Deus (p. 15); superar "o modelo piramidal e clerical de uma Igreja que ensina e uma Igreja que aprende e segue" (p. 14). Para talvez projetar o modelo eclesial que responde ao que Paulo VI, em 29 de setembro de 1963, em seu discurso de abertura da segunda sessão do Vaticano II, chamou de uma "definição mais completa da Igreja" (pp. 13, 18, 98, 108 e 144).[1]

 

O clericalismo, perversão da Igreja

 

Nas duas partes do volume algumas páginas são apropriadamente reservadas para a denúncia do que o Papa Francisco considera "uma verdadeira perversão da Igreja":[2] o clericalismo.

 

Para estigmatizar o fenômeno, Rafael Luciani cita três estudos (p. 23): o Relatório sobre os abusos sexuais contra menores por padres, diáconos e religiosos de sexo masculino na área da Conferência Episcopal Alemã entre 1940 e 2014, realizado pela Conferência episcopal alemã e publicado em setembro de 2018; o Relatório Final da Royal Comssion sobre Respostas Institucionais aos Abusos Sexuais contra Menores do governo australiano para estudar o período 1950-2017 e publicado em 2017; um estudo publicado pelo Centro de Investigación y Formación Interdisciplinar para la Protección del Menor (CEPROM) da Pontifícia Universidade da Cidade do México.[3]

 

O primeiro reconhece que "o clericalismo denota um sistema hierárquico-autoritário que pode levar o padre a adotar uma atitude de domínio sobre as pessoas não ordenadas nas interações, pois ocupa uma posição superior em virtude de seu ministério e de sua ordenação" (p. 25).

 

O segundo afirma que "o clericalismo é um vírus que infectou a Igreja, ou qualquer Igreja, pelo qual se acredita que as pessoas da Igreja, padres e bispos são, de alguma maneira ou forma, sagrados e acima das pessoas comuns e, por causa dessa sacralidade e de sua importância, deveriam ser considerados mais importantes e protegidos” (p. 23).

 

O terceiro considera que, na atual crise institucional da Igreja, "o clericalismo é um elemento importante a ser considerado na distorção do poder exercido pelo clero para com aqueles chamados a servir e, no plano institucional, da hierarquia para o povo de Deus" (p. 25).

 

Para Serena Noceti "o coração do clericalismo está na ainda não realizada superação de uma visão piramidal da Igreja e de uma leitura hierárquico-sacral do ministério ordenado, tanto por padres como por leigos, bem como na falta de recepção da teologia do povo e da renovação da compreensão do ministério de bispos, presbíteros e diáconos entregue pelo Concílio” (p. 198).

 

"Essa cultura é gerada e mantida pelo chamamento a uma visão da Igreja e do ministério com a qual se justifica a especial consagração de alguns em relação aos demais fiéis, e se desenvolve por meio de práticas pastorais, liturgias, símbolos, cerimônias, linguagens, modos de falar, estilos de comportamento, expectativas que exaltam demais o clero em detrimento de outros. Não raramente se casa com lógicas patriarcais e androcêntricas” (p. 199). Com a consequência de que "nenhuma reforma em perspectiva sinodal é possível sem uma conversão interior que supere o clericalismo e sem viver experiências sinodais e participativas que possam ser ocasiões de desconstrução da mentalidade clerical" (p. 199).

 

Mais ainda: “superar o clericalismo - escreve a prof. Noceti – comporta, em primeiro lugar, pensar diferente, desconstruir um imaginário falso ou parcialmente errôneo sobre o sentido do ministério ordenado, interromper usos sacros que nada têm a ver com o seguimento de Jesus, abandonar a lógica da elite e da carreira eclesiástica, superar a cultura do segredo e as formas de corporativismo clerical (quando não de casta). Devemos questionarmo-nos sem medo qual é a imagem de padre que é entregue no seminário; existe um sistema que regula as relações intraeclesiais composto por símbolos, linguagens, vestimentas, formas de vida que querem destacar a distinção (e separação) mais que o serviço humilde ao e no povo de Deus” (pp. 199-200).

 

Emersão e consolidação de uma eclesiologia em chave sinodal

 

Alguns elementos relevantes podem ser lembrados da contribuição particularmente rica oferecida por Rafael Luciani nos três primeiros capítulos.

 

O professor. Luciani, profundo conhecedor da realidade eclesial latino-americana, acredita, como muitos outros teólogos, que, com a eleição a bispo de Roma de Francisco, pastor latino-americano, iniciou-se uma nova fase na recepção do Concílio Vaticano II, antecipada de alguma forma pelo CELAM, o órgão da Igreja Católica que congrega os bispos da América Latina e do Caribe, e pelas relativas Conferências, a começar por aquela de Medellín (1968) até àquela de Aparecida (2007).

 

Trata-se de uma fase caracterizada por dois elementos.

 

Em primeiro lugar, a partir da recuperação da categoria povo de Deus (p. 51) que estrutura a Lumen gentium, um dos documentos mais importantes do Concílio Vaticano II, e que havia sofrido um processo de desafecção na pesquisa eclesiológica pós-conciliar.

 

E também pelo desenvolvimento da eclesiologia conciliar das Igrejas locais que iniciou um processo de transição de uma Igreja ocidentalizada e monocultural, centrada em Roma e no primado, para uma Igreja global e intercultural, abrindo caminho para o reconhecimento da autoridade própria das Igrejas locais [4] (p. 37), na consciência de que a Igreja local, embora não seja a Igreja inteira, é, no entanto, uma Igreja completa (p. 106).

 

Aliás, o caminho sinodal bienal (de 2021 a 2023) programado pelo Papa Francisco para discernir um novo modelo eclesial para o terceiro milênio pode - segundo o teólogo venezuelano - ser o evento eclesiológico mais importante da atual fase de recepção do Concílio Vaticano II inspirado justamente na eclesiologia do povo de Deus à luz de um modelo de Igreja de Igrejas (p. 102).

 

Como dimensão constitutiva e constituinte da vida eclesial, a sinodalidade não pode ser identificada com um evento específico nem reduzida a um método. É mais do que um concílio, um sínodo ou um conselho (p. 39). “Falar de sinodalidade não é uma questão de entender e modificar simples modalidades de funcionamento ou métodos que permitam aos sujeitos eclesiais interagir melhor entre si e com o mundo. Trata-se, antes, de reconhecer um novo modo de ser e de fazer Igreja, uma eclesiogênese, em que os modos eclesiais de proceder - espirituais pastorais, institucionais - possibilitam múltiplos e diversos modelos teológico-culturais-institucionais e constituem assim a Igreja de acordo com cada época e cultura” (pp. 97-98). "O desafio é sinodalizar toda a Igreja e criar novas estruturas e instituições para esse processo" (p. 138).

 

Uma reforma eclesial em perspectiva sinodal

 

Serena Noceti, uma das teólogas italianas mais apreciadas e autora de textos particularmente significativos sobre o tema da teologia dos ministérios, concentra-se nos conteúdos de uma reforma da Igreja em perspectiva sinodal.

 

Para a teóloga, uma Igreja que se reconheça e viva de forma sinodal comporta uma reconfiguração real e exigente da ministerialidade eclesial (cap. 4), exige uma redefinição do exercício do poder na Igreja à luz do princípio de que "o que diz respeito a todos, deve ser tratado e aprovado por todos” (cap. 5) e pressupõe uma profunda reforma do ordenamento canônico para passar de uma sinodalidade consultiva para uma sinodalidade deliberativa (cap. 6).

 

Parece-me de grande importância o que a autora escreve sobre a necessidade de reconfigurar a ministerialidade numa Igreja de estilo sinodal.

 

Vou listar algumas "coisas" a fazer:

 

- adquirir a consciência de que, na Igreja, "todos os christifideles têm igual dignidade e são sujeitos coconstitutivos do 'Nós eclesial', apesar da assimetria que o ministério ordenado aporta às relações intraeclesiais" e "todos, na pluralidade de carismas e ministérios, são corresponsáveis pela única missão messiânica" (pp. 148-149);

 

- construir uma Igreja inteiramente ministerial em que todos e todas assumam pequenas ou grandes tarefas "para a edificação eclesial, conforme indicado em Ef 4, 7-16" (p. 162);

 

- garantir condições e espaços para que a palavra competente, pública e de autoridade das mulheres possa ressoar e ser acolhida como palavra essencial e constitutiva para fazer Igreja, superando a cultura clerical-machista e a estrutura patriarcal (pp. 173-174);

 

- valorizar a ministerialidade dos casais escutando a sua voz, "em particular quando se quer construir consenso valorizando as diferenças existentes, quando se quer abrir o caminho pastoral aos espaços de uma vida cotidiana já marcada pela presença do Deus de vida que, porém, as categorias tradicionais da teologia e da pregação clerical não conseguem reconhecer” (p. 178);

 

- superar o modelo gregoriano-tridentino de Igreja, "centrado na sacramentalização, estruturado em torno do ministério do sacerdote e da cura animarum que o vê como protagonista, estático porque foi concebido para salvaguardar a fé sem que isso comporte mudanças, a não ser lentas" (pp. 180-181);

 

- ter, na Igreja, "novas figuras de bispos e presbíteros, menos sagrados e mais capazes de responder positivamente às instâncias que advêm do contexto da secularização tardia" (p. 180);

 

- repensar as especificidades do presbiterado, superando suas insistentes leituras sobre o poder sagrado, o caráter, a lógica sacerdotal de mediadores entre Deus e o povo, de alter Christus, codificadas pelo concílio de Trento e alimentadas pelos documentos pontifícios até Pio XII (p. 187).

 

Alimento nutritivo para uma mesa de sinodalidade

 

Iniciar uma verdadeira temporada de sinodalidade, que é uma temporada de oração e de pensamento, uma temporada de leitura dos sinais dos tempos e de discernimento, uma temporada de escuta do Espírito e de decisões necessárias. Nas comunidades, portanto, não deveria faltar ao lado daquelas da Palavra, da Eucaristia e da caridade, a mesa da Sinodalidade”. "A [...] modulação do caminho preparatório para a XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que será celebrada em outubro de 2023, poderia ser a ocasião propícia para dar forma e vida a uma mesa estável da Sinodalidade em cada paróquia".

 

Essa é a primeira das "dez coisas que podem ser feitas imediatamente" que Armando Matteo, professor de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma e novo secretário da Seção Doutrinária do Dicastério para a Doutrina da Fé, assinala na parte conclusiva de seu ensaio com o intrigante título Converter Peter Pan. O destino da fé na sociedade da eterna juventude, publicado no ano passado pela editora milanesa Àncora.[5]

 

 

Aquela de dar forma e vida a estáveis "mesas da sinodalidade" em cada realidade eclesial parece-me uma proposta inteligente e de extraordinária importância para evitar o grande risco de fazer da sinodalidade uma nova palavra mágica que durará o tempo de uma rosa [6] ou "uma palavra sazonal que é inventada para relançar as pastorais deprimidas que perderam o coração e a alma".[7]

 

A "mesa da sinodalidade" poderia ser uma fórmula eficaz para tomar ciência do rico e inovador magistério do Papa Francisco sobre a sinodalidade, para refletir sobre o conteúdo do documento da Comissão Teológica Internacional A Sinodalidade na Vida e Missão da Igreja, para promover grupos de leitura de algum texto de teologia.

 

Um ensaio teológico sobre a sinodalidade que é decididamente muito útil e ao alcance de todos é Sinodalmente. Forma e reforma de uma Igreja sinodal, escrito por uma teóloga e um teólogo que não só discutem sobre sinodalidade com competência em nível acadêmico, mas que tentam contribuir para a sinodalidade a fim de afirmá-la nos fatos, cientes de que todos, no papel que cada um tem na Igreja, somos chamados a construí-la não ocasionalmente, mas estruturalmente, [8] promovendo-a em todos os níveis eclesiais.[9]

 

Quem tiver a oportunidade de participar de alguma “mesa da sinodalidade” encontrará no livro de Rafael Luciani e Serena Noceti um excelente “prato” contendo “alimentos” decididamente nutritivos.

 

Notas: 

 

[1] Neste memorável discurso, Paulo VI auspiciava, de parte do Concílio, uma definição da Igreja que seja "completa" (n. 4.1), "específica" e "suficientemente completa" (n. 4.1), "mais precisa" (n. 4.2), "compatível com a linguagem humana" (n. 4.7).

[2] Assim Francisco definiu o clericalismo durante o diálogo de 5 de setembro de 2019 com os jesuítas de Moçambique e Madagascar.

[3] Daniel Portillo (coordenador), Tolerancia Cero. Estudio interdisciplinar sobre la prevención de los abusos en la iglesia, PPC Editorial, 2022. Deve-se dizer que o relatório francês da Ciase (Comission Indépendent sur les abus sexuels dans l'Église), criada em 2018 para investigar os abusos cometidos na França por membros do clero nos últimos setenta anos (1950-2020), identifica no excesso de sacralidade despejada sobre a figura do padre, o estabelecimento de uma verdadeira cultura de abuso: o relatório do Ciase foi tornado público em 5 de outubro de 2021.

[4] Evangelii gaudium n. 32.

[5] Permito-me remeter a Cristianesimo alla Peter Pan, de Andrea Lebra, in SettimanaNews de 22 de outbro de 2021. A citação pode ser encontrada na p. 111 do volume citato.

[6] Gilles Routhier, La sinodalità: dimensione costitutiva della Chiesa ed espressione del vangelo, in Concilium, n. 2 de 2021, p. 112.

[7] Michele Giulio Masciarelli, Un popolo sinodale. Camminare insieme, Tau Editrice, Todi (Pg) 2016, p. 187.

[8] Francisco, Momento de reflexão para o início do percurso sinodal (9 de outubro de 2021).

[9] Francisco, Discurso aos participantes da plenária da Congregação para a doutrina dla fé (29 de janeiro de 2016).

 

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