04 Março 2021
O Vaticano II foi realmente o início do diálogo com a cultura secular e com as outras religiões? Ou o Vaticano II simplesmente não percebeu as raízes do Islã radical e político? O Vaticano II abraçou a descolonização ou, na realidade, ajudou a estender a vida da teologia colonial?
As perguntas são de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor de Teologia e Estudos Religiosos na Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por Commonweal, 03-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco disse algumas coisas interessantes sobre o Vaticano II nas últimas semanas.
No dia 11 de janeiro, em uma carta ao cardeal prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, acompanhando seu motu proprio que permitiu que as mulheres se tornassem leitoras e acólitas, o papa descreveu a sua decisão no contexto do “horizonte de renovação traçado pelo Concílio Vaticano II” e “na linha do Concílio Vaticano II”.
Depois, vieram estas observações em seu discurso no dia 29 de janeiro ao Escritório Catequético Nacional da Conferência Episcopal Italiana:
“Isto é magistério: o Concílio é magistério da Igreja. Ou você está com a Igreja e portanto segue o Concílio, ou, se você não segue o Concílio ou o interpreta ao seu modo, como quiser, você não está com a Igreja. Nesse ponto, temos que ser exigentes, severos. O Concílio não deve ser negociado para ter mais destes... Não, o Concílio é assim! E este problema que nós estamos vivendo, da seletividade em relação ao Concílio, se repetiu ao longo da história com outros Concílios.”
Como acontece com todos os outros ensinamentos de Francisco, essas declarações falam de maneira particularmente direta ao catolicismo estadunidense.
Nos últimos meses, alguns bispos e clérigos tentaram apresentar uma interpretação conservadora teologicamente defensável do Vaticano II, algo para se opor às visões extremistas do arcebispo Carlo Maria Viganò e de um grupo de quase cismáticos que pensam da mesma maneira, os quais, além de rejeitarem o magistério “bergoliano”, assumiram uma posição difícil de distinguir da pura e simples rejeição dos ensinamentos do Concílio.
O bispo Robert Barron, por exemplo, falou dos ataques ao Vaticano II como de uma “tendência perturbadora”, e Thomas Weinandy, ex-diretor executivo do Secretariado para Doutrina e Práticas Pastorais da Conferência dos Bispos dos EUA, repreendeu Viganò por contestar a autenticidade do Concílio.
Mas há mais do que interpretações teológicas a se levar em consideração.
A aliança do catolicismo conservador estadunidense com o trumpismo também diz algo sobre a recepção do Vaticano II; o fascínio de alguns por uma liderança política quase à la César é um sintoma do fracasso do Concílio no país.
No entanto, mesmo que isso seja mais evidente entre as vozes extremistas do lado conservador do espectro, não é um problema unicamente conservador. Existem fenômenos sistêmicos mais amplos em jogo, que nos últimos anos também expuseram falhas no lado liberal progressista.
O primeiro é uma “interrupção” na tradição acadêmica de examinar o Vaticano II. Estudar o Concílio requer fluência em latim e em outras línguas, e um ecossistema intelectual no qual a teologia se baseia no debate com a história da Igreja e com a história da teologia, e não apenas nas ciências sociais.
Ainda não há consenso sobre a tradução para o inglês. A última delas já tem mais de 25 anos (Austin Flannery, 1996; esta foi precedida pela editada por Norman Tanner, SJ, em 1990, e pela de Walter Abbott, SJ, em 1966).
Existem estudos importantes sobre os EUA e o Vaticano II (como o que será lançado por Joseph Chinnici), mas a última história estadunidense do Vaticano II é “O que aconteceu no Vaticano II”, de John O’Malley, publicado em 2008, durante o pontificado de Bento XVI [no Brasil, o livro foi publicado em 2014, pelas Edições Loyola].
Um fator relacionado é o colapso da coexistência e da colaboração que costumavam caracterizar a “relação de trabalho” entre os teólogos profissionais, os leigos católicos e a Igreja institucional e hierárquica.
Isso é um resultado das perigosas tensões intracatólicas – eclesiais e políticas – que se desenvolveram no país ao longo dos anos desde a publicação de comentários em vários volumes sobre os documentos do Vaticano II (em 1967, editados por Herbert Vorgrimler; em 1987, editados por René Latourelle e publicados pela editora Paulist; e no início dos anos 2000, a série “Rediscovering Vatican II” da Paulist).
Outros países não experimentaram isso com o mesmo grau; nas últimas duas décadas, grandes redes de teólogos na Itália, Alemanha, Espanha e América Latina produziram volumes importantes de comentários sobre o Vaticano II.
A falta desse tipo de obra nos EUA tem consequências para os estadunidenses que desejam estudar o Concílio.
Agora, parece haver mais espaço na academia teológica católica para a teologia pré e anti-Vaticano II, de um lado, e para uma teologia pós-Vaticano II com menos compromissos eclesiais discerníveis, de outro lado.
O próprio Vaticano II está preso em uma espécie de terra de ninguém intelectual e eclesial.
Outro fator: esta era da raiva global. Os escândalos sexuais e financeiros geraram uma crise moral e legal, mas também teológica – que é mais profunda do que a provocada pela fase anterior do escândalo dos abusos sexuais no início dos anos 2000.
A raiva contra uma instituição considerada como indiferente (na melhor das hipóteses) em questões sociais fundamentais levou à ideia de que a Igreja perdeu todo o prestígio, e, portanto, o Vaticano II também; seus autores e líderes episcopais, as gerações dos seus intérpretes desde então e toda uma tradição de estudos são vistos como irrelevantes.
Há um sentimento de ressentimento, e não é apenas o reflexo de uma mentalidade anti-histórica. Em vez disso, isso surge a partir da crença de que o Vaticano II não se engajou com as questões de gênero e raça de uma forma tão radical quanto os tempos exigem agora e quanto as leituras do Evangelho exigem hoje.
Os debates no Vaticano II, assim como o debate histórico e hermenêutico pós-conciliar, foram dominados por homens brancos. Apenas alguns exemplos: a teologia do Vaticano II ainda funciona (embora com algumas limitações) contra o antissemitismo. Ela funciona com menos eficácia quando se trata do papel das mulheres na Igreja ou da questão do abuso (sexual, de autoridade e de poder).
O Vaticano II mostra as deficiências de uma teologia do início dos anos 1960 – desenvolvida em um nascente catolicismo pós-imperialista, que apenas começava a entender o mundo pós-colonial. Agora, a ruptura da ordem global revelou a inadequação dessa teologia, assim como dessa eclesiologia, que era muito centrada nos bispos.
O quarto fator é a mudança nas percepções sobre o ecumenismo e o diálogo inter-religioso entre a época do Concílio e agora, neste mundo pós-11 de setembro do século XXI.
Passamos de uma narrativa do encontro para uma narrativa do confronto e do conflito. Comparado com os anos 1960 e 1970, o catolicismo tem que se envolver com crenças mais assertivas (tanto religiosa quanto politicamente) em todo o mundo, assim como com um secularismo mais assertivo.
Isso coincidiu com um aumento de convertidos que trazem um conjunto diferente de expectativas para a sua compreensão da tradição da Igreja, o que dá maior ênfase aos Padres da Igreja, ao Catecismo e ao ensino papal do que à tradição conciliar, incluindo o Vaticano II.
E isso, por sua vez, introduz novas interpretações dos períodos históricos: o Vaticano II foi realmente o início do diálogo com a cultura secular e com as outras religiões? Ou o Vaticano II simplesmente não percebeu as raízes do Islã radical e político? O Vaticano II abraçou a descolonização ou, na realidade, ajudou a estender a vida da teologia colonial?
Devo observar que as percepções sobre a relevância ou irrelevância do Vaticano II variam de um lugar para outro. Na América Latina, por exemplo, o Vaticano II ainda é muito conceituado tanto na Igreja quanto na academia, enquanto nos EUA a opinião está mais dividida.
Mas isso só prova como o debate global sobre o Concílio é tenso; as tumultuadas mudanças eclesiológicas e culturais influenciam substancialmente na abordagem ao Vaticano II em todo o mundo.
Eu aprendi isso em primeira mão ao trabalhar como membro de uma equipe global para um novo comentário intercontinental de 12 volumes sobre o Vaticano II.
O que aconteceu nos últimos anos, tanto no nível institucional quanto intelectual, levanta questões sobre o papel histórico do Vaticano II na Igreja global. Ele foi o início de uma nova história católica, ou um parêntese dentro do parêntese mais amplo da ordem liberal no pós-guerra, que agora está em crise?
Uma retórica que postula o Vaticano II como o início da crise intelectual e moral do catolicismo (nostalgia do período pré-conciliar) se contrapõe à retórica do Vaticano II como o último suspiro de catolicidade (nostalgia da epopeia conciliar e do primeiro pós-Concílio).
O pontificado de Francisco está mostrando a contribuição-chave da teologia do Vaticano II para a transição de um catolicismo centrado na Europa para um catolicismo global.
Ao mesmo tempo, este momento de globalização da Igreja também está mostrando os limites do Vaticano II.
É verdade que a oposição ao Papa Francisco está enraizada na oposição ao Vaticano II, especialmente nos EUA. Também é verdade que a gama de posições a respeito de Francisco e do Vaticano II nos EUA nos ajuda a entender como os documentos conciliares podem não ser capazes de servir à Igreja hoje – e talvez aquilo que pode ser feito para melhorar a recepção e a aplicação desses documentos.
Mas parece haver limites para aquilo que a recepção fiel do Vaticano II por parte de Francisco pode realizar.
E, dada a divisão eclesial durante o pontificado de Francisco, é difícil imaginar a convocação de outro Concílio geral em breve.
Talvez haja motivos para esperar que o Vaticano II possa encontrar uma nova vida nas expressões locais e nacionais de sinodalidade, dando um salto de energia ao processo eclesial, enquanto, na barganha, se enfrentam algumas das lacunas deixadas pela teologia e pelos ensinamentos do Concílio.
Mas resta saber se esse tipo de sinodalidade é a sinodalidade que o Papa Francisco tem em mente.
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Aquilo que resta do Vaticano II. Por que a recepção do Concílio ainda é um problema? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU