12 Outubro 2022
As edições 334, 336 e 342 dos Cadernos IHU Ideias compartilham memórias afetivas e caras, relatadas por pessoas que ajudaram a concretizar a caminhada do grupo de Emaús. Mais que um registro histórico, conseguem expressar juntas a riqueza de uma jornada fecunda e inspiradora, forjada no amálgama da resistência, da profecia e da fé libertadora.
O grupo de Emaús teve início no ano de 1974, quando Frei Betto, Frei Fernando de Brito e Ivo Lesbaupin – que acabavam de sair da prisão – decidiram formar um grupo capaz de “articular a reflexão teológica com o método marxista de análise da realidade”, nas palavras de Frei Betto. Isso porque, sem uma análise crítica da injusta situação da América Latina, a fé cristã não se faz boa nova para os pobres e sofredores, perde sua capacidade de fermentar a transformação das estruturas injustas da sociedade e tende a deixar atrofiar a intrínseca dimensão libertadora do Reino de Deus. Convidaram então Carlos Mesters, Leonardo Boff, e João Batista Libanio, para uma primeira reunião, que se realizou no Convento Madre Regina, em Petrópolis, e da qual participaram também, por uma única vez, Frei Eliseu Lopes e Frei Mateus Rocha.
Em uma época de violenta repressão, em plena ditadura, era importante que tal objetivo não ficasse explícito; mantinha-se um certo sigilo e o motivo oficial da reunião seria escrever artigos de catequese para a Revista Vozes... “O grupo não tinha nome, nem devia ter. Alguns o chamavam de ‘grupo zero’, que não existia”, relata Carlos Mesters.
À reunião inicial seguiu-se uma segunda, no mesmo local; e já então se uniram ao grupo Pedro de Assis Ribeiro de Oliveira, Orestes Stragliotto e Antônio Cecchin, assim como Paulo Ayres e Jether Ramalho, garantindo a dimensão ecumênica. A partir de então, as reuniões passaram a se realizar duas vezes por ano. Outras pessoas foram sendo convidadas e se agregaram ao grupo; aos teólogos e pastoralistas – como José Oscar Beozzo, Marcelo Barros, Clodovis Boff, Manfredo de Oliveira, Benedito Ferraro, Faustino Teixeira – vieram somar-se cientistas sociais como Luiz Alberto Gomez de Souza e Luiz Eduardo Wanderley.
No início eram só homens, na sua maioria presbíteros e religiosos. Mas em 1976 (ou 1977?) entrou a primeira mulher, Maria José Rosado Nunes – a Zeca, como é conhecida. A ela se seguiram várias outras: Maria Clara Bingemer, Lucília Ramalho, Maria Helena Arrochellas, Lucia Ribeiro, Tereza Cavalcanti, Márcia Miranda, Mariangela Belfiore, Maria Teresa Bustamante.
Algumas vieram sós, outras vieram junto com seus companheiros: no caso dos casais, o grupo se abre também para receber os cônjuges. Assim, teólogas mulheres trouxeram os maridos: Ekke Bingemer e Teófilo Cavalcanti. Cientistas sociais e teólogos leigos vieram trazendo as mulheres. Algumas se integraram realmente, como membros do grupo, outras não.
Ao mesmo tempo, foram convidados e se integraram ao grupo outros evangélicos, como Milton e Rosileny Schwantes, Julio e Violaine de Santa Ana, e, mais recentemente Edson Fernando, Claudio de Oliveira Ribeiro, Magali Cunha e Romi Bencke, garantindo maior abertura e concretização da dimensão ecumênica.
Na primeira etapa, havia uma grande coesão de pensamento e um certo consenso ideológico no grupo, embora, desde o início a diversidade de opiniões fosse respeitada. Entretanto, no início dos anos 90, o contexto social mudou: a crise do socialismo real e a derrota sandinista na Nicarágua, por um lado, e, por outro, um contexto eclesial mais fechado – “a volta à grande disciplina”, expressão consagrada na análise teológica de Libanio, ou a chegada do “inverno na Igreja”, nas palavras de Maria Clara, levaram a uma certa crise dos setores de esquerda, que se refletiu no grupo. Em 1993, em uma reunião em Juiz de Fora, por ocasião dos 50 anos de Pedro Ribeiro de Oliveira, este chegou a sugerir que o grupo terminasse, e vários o apoiaram. Outros, porém, reagiram, temendo perder um espaço precioso de reflexão, de troca de experiências e de convívio fraterno e lutaram pela sua “refundação”. Um ano depois, na reunião em Goiás - Go, celebrando o aniversário de Marcelo Barros, o grupo renascia, agora com o novo nome de “Grupo de Emaús”.
Desde então, a diversificação e a pluralidade se intensificaram, alimentando a reflexão e a troca de ideias e de experiências. Novas pessoas vieram se integrando, ao longo do tempo: Afonso Murad, Edward Guimarães, Alessandro Molon, Sinivaldo Tavares, Luiz Carlos Susin, Francisco Aquino Junior, Tereza Sartorio, Rosemary Costa, Celso Carias, Fernando Altemeyer, Leu Cruz, Sarah Telles e recentemente Cesar Kuzma, Chico Alencar, Chico Pinheiro, Lusmarina Garcia e Maurício Abdala.
Houve também pessoas que participaram apenas de 1 ou 2 reuniões, mas não chegaram a fazer parte do grupo como Ivone Gebara, Zwinglio Dias, Rubem Alves e Frei Claudio von Ballen. Finalmente, alguns vieram como convidados, uma única vez: Herbet de Souza (Betinho), Boaventura de Souza Santos, Michael Löwy, Luiz Dulci, Gilberto Carvalho.
Para Leonardo Boff, o grupo “é uma comunidade de destino, onde prática, reflexão e oração estão ligadas”. O grupo não tem nenhuma relação oficial com qualquer instituição eclesial e não tem pretensão de poder nem na Igreja nem na política. “É um grupo de serviço à Igreja da Libertação”, define Pedro Ribeiro.
Ao longo dos anos, o grupo produziu frutos consistentes: assessorias às Comunidades Eclesiais de Base e a seus encontros nacionais, denominados intereclesiais; curso anual de atualização teológica para bispos da América Latina; criação do Movimento Fé e Política, do CESEEP (Centro Ecumênico de Serviço à Evangelização e Educação Popular), e do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), do Curso de Verão (em várias capitais, destinados a militantes de pastorais sociais, grupos de base e movimentos populares). O grupo incentivou também a edição da coleção “Teologia da Libertação”, pela editora Vozes, e alguns de seus membros deram assessoria às Campanhas da Fraternidade, promovidas anualmente pela CNBB e, algumas vezes, com o CONIC, assim como à realização dos Encontros de Espiritualidade para Jovens. O grupo mantém ainda um projeto de publicações de cartilhas: o primeiro número, sobre “Ideologia de gênero”, elaborado por Frei Betto, foi publicado em 2018.
O grupo alimenta uma reflexão coletiva, que se reflete nas diversas atividades de seus membros: assessorias, palestras, publicações, participação em outras organizações, como CEHILA, Teologia Feminista, ou o antigo grupo de Mulher e Teologia (ISER). Tem também um impacto nas igrejas cristãs. “Nas nossas andanças teológicas, o grupo Emaús está sempre presente, como referência, como apoio, como lugar de pertença”, afirma Maria Clara.
Além do cultivo da amizade e da cumplicidade, a dinâmica consagrada pelo grupo se concretiza através de reuniões que se realizam duas vezes por ano, em um fim de semana. O programa inclui troca de experiências – que chamamos “Cosa Nostra” – uma análise da conjuntura social e eclesial, um tema de estudo – cujo conteúdo varia muito – e, no domingo, a Celebração Eucarística, cuidadosamente preparada, em um clima de muita liberdade e participação de todos e todas. Além das refeições compartilhadas, há também tempo dedicado ao lazer e à convivência fratersororal.
No início o grupo se reunia em Petrópolis, mas algumas vezes se reuniu em outros lugares (São Paulo, Juiz de Fora, Goiás); ultimamente se divide entre Corrêas (Casa Santo Inácio) e o convento Madre Regina, em Petrópolis.
Finalmente, não podemos esquecer os que partiram definitivamente: “O Grupo de Emaús tem parte na comunhão dos santos. Alguns atravessaram a tênue fímbria que separa o tempo da eternidade” lembra Leonardo. Assim, Orestes Stragliotto, Milton Schwantes, João Batista Libanio, Antônio Cecchin, Lucília Ramalho, Olinto Pegoraro, Fernando de Brito e Luiz Alberto Gómez de Souza continuam, de forma misteriosa, mas muito real, presentes entre nós.
Apresentamos, a seguir, os testemunhos de alguns dos participantes do Grupo de Emaús. Estes possibilitam conhecer, através de perspectivas pessoais, a riqueza coletiva de uma caminhada que já ultrapassou o marco dos 40 anos de fé e coragem, resistência e luta, esperança e amizade fraterna.
Cada relato recupera uma memória própria, e, ao mesmo tempo, traduz as experiências e os questionamentos pessoais e coletivos. Neste sentido, pode-se dizer que as memórias do grupo Emaús são grávidas de vida e profecia. Desejamos que elas mobilizem e interpelem os leitores e as leitoras para a participação comprometida na construção diária de “outra sociedade possível” e, ao mesmo tempo, de “outra Igreja possível”.
Leia na íntegra as edições "Grupo Emaús. 48 anos de resistência e fé libertadora".
Edward Guimarães, Lúcia Ribeiro e Tereza Pompeia
(Organizadores)
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Resistência e fé libertadora. Edições dos Cadernos IHU Ideias contemplam a trajetória do Grupo Emaús - Instituto Humanitas Unisinos - IHU