"Numa palavra, o que está em jogo é que, na configuração de uma nova sociabilidade, a economia deve estar a serviço da satisfação das necessidades reais das pessoas na busca de efetivação de relações integralmente humanas o que pressupõe gestão coletiva do sistema econômico por cidadãos livremente associados, ou seja, de uma economia sob controle social que 'estriba as relações entre os sujeitos, nos valores da cooperação, da partilha, da reciprocidade, da complementariedade e da solidariedade'”, escreve Manfredo de Oliveira, doutor em Filosofia pela Universität München Ludwig Maximilian de Munique, Alemanha, e professor da Universidade Federal do Ceará – UFC.
A liberdade humana só é liberdade efetiva, enquanto liberdade no mundo da natureza e da sociabilidade, ou seja, quando ela se faz o fundamento que alicerça a relação com a natureza e a vida comum dos sujeitos entre si, portanto, só é efetiva enquanto história da luta pela produção de obras. Assim, a liberdade encontra seu grau supremo de efetivação na conquista da subjetividade dos sujeitos no mundo das relações sóciopolíticas construído pelo ser humano, sua tarefa ética suprema. Isto é alcançado na medida em que os sujeitos superam qualquer forma de coisificação, de alienação, e se reconhecem mutuamente como entes fundamentalmente iguais e livres. Foi este o grande passo teórico de Hegel: retornando aos gregos, ele recupera o que denomina a “dimensão objetiva” da liberdade que é o conjunto de instituições e comunidades através de que a liberdade se efetiva no mundo da cultura, criado pelo ser humano (OLIVEIRA M.A de, Hegel: Normatividade e Eticidade, 2015, 198 e ss.). Ser ente humano significa, então, conquistar-se como ser livre e o caminho para chegar aí é a construção de uma sociabilidade simétrica que seja síntese da identidade (todos sejam considerados como fins em si mesmos) e da diferença (todos sejam reconhecidos nas diferenças que não destroem a igualdade básica). Assim, ali onde o humano se divide em senhor e escravo não é possível emergir a liberdade verdadeira.
O ser humano é aquele ente que, porque coextensivo ao ser em seu todo, é “ponto de referência do universo”, que é uma rede relacional em que qualquer entidade tem a ver com tudo. Assim, o ser humano, enquanto tal, não pode ser reduzido a puro meio, não é, pois, simplesmente um objeto entre outros objetos. Se toda entidade é portadora de um valor em si mesma, que corresponde à sua constituição ontológica específica, todo ser humano, enquanto ser inteligente e livre que, em consciência e liberdade, possui a si mesmo, é portador de uma dignidade incondicional, que o faz portador no mundo do valor intrínseco supremo. Daí a exigência ética fundamental da dignificação do ser pessoal, fim em si mesmo. Isso é afirmado de todo e qualquer ser humano, o que fundamenta a “igualdade essencial de todos os seres humanos”. Dessa forma, todos são iguais porque livres e isso legitima um tratamento de acordo com esta dignidade fontal, o que conduz a uma ética estritamente universalista.
Que o ser humano não seja tratado como fim em si mesmo, por exemplo, tratado como simples meio para valorização do capital, é uma degradação de seu ser. Ora, é a dimensão do valor da constituição de cada ente, peculiar a cada ente, que é a base do valor propriamente ético de qualquer realidade. Por isto, a capacidade humana de captar as coisas como elas são em si mesmas, de exprimir sua inteligibilidade, é o que torna possível à vontade humana afirmar o valor do ser de uma realidade como valor ético.
No caráter de ser ente de corpo/vida, inteligência, vontade/liberdade, autoconsciência se situa o fundamento de seus direitos fundamentais, que são exigências nas diversas esferas de sua vida. Aqui precisamente os direitos elementares constituem a base normativa de suas ações, de modo especial, das leis e das instituições, um critério normativo para o julgamento dos sistemas jurídicos, políticos e econômicos, que configuram a vida coletiva. Os direitos são direitos da pessoa, enquanto pessoa, que é, em primeiro lugar, um ser singular já que seu processo de individuação é positivo e interior: ele se fundamenta na liberdade enquanto aquela relação em que o ser humano se possui a si mesmo na forma da tarefa indeclinável de configurar seu próprio ser.
Por outro lado, na base de sua espiritualidade, a pessoa é mais aberta do que qualquer outro ente e sua auto efetivação ocorre na construção de obras comuns na história. Desta forma, a comunidade política é uma decorrência da própria constituição ontológica do ser pessoal e por isto existe para obter um fim comum, a efetivação dos direitos fundamentais e inalienáveis de todos os seus membros.
A gênese da liberdade implica, dessa forma, a gestação de uma sociabilidade solidária, enquanto reconhecimento mútuo de liberdades, uma configuração social radicada na justiça e na solidariedade universal. Liberdade efetiva é liberdade concretizada em instituições, que, assim, se manifestam como mediações históricas irrecusáveis no processo de sua conquista nas diferentes épocas históricas. Neste sentido, liberdade é “imaginação criativa”, que é, em princípio, inexaurível. É enquanto ser pessoal que o ser humano é portador de direitos inalienáveis, mas porque o ente pessoal é constitutivamente um ente histórico, os direitos constituem sempre uma tarefa a se efetivar na história. A consequência disto é que há sempre novos direitos a serem positivados e efetivados a partir dos desafios específicos da situação histórica. A partir deste horizonte, compreende-se a tensão possível entre o sistema de direito positivo vigente e a situação de vida daqueles que, no interior deste sistema, não possuem direitos. Isto faz com que a história humana se manifeste normativamente como o espaço de luta pela efetivação de direitos, ou seja, pela criação de instituições que reconheçam, garantam e positivem direitos, o que exige, portanto, o enfrentamento de todo tipo de desigualdade e servidão.
A construção, então, de uma sociedade igualitária, acolhedora das diferenças, que não negam a igualdade de dignidade e a criatividade, constitui a exigência suprema que deve servir de referência fundamental das lutas históricas. O objetivo básico é, então, gestar os requisitos de um mundo autenticamente humano, em que o respeito a cada ser humano e ao ser próprio da natureza constitui o horizonte que direciona a vida. O ser humano jamais poderá ser verdadeiramente ser humano, enquanto for dependente e oprimido, em qualquer dimensão de sua vida. Por isso, a efetivação de direitos é a condição irrecusável para eliminar todo tipo de opressão histórica que ameaça sua vida. Numa palavra, uma ordenação excludente da vida coletiva em que são naturalizadas as desigualdades econômicas, sociais e culturais é inconciliável com este horizonte normativo que exige relações sociais igualitárias e participativas, o que implica politicamente a superação de toda forma de totalitarismo.
O desafio fundamental de nosso engajamento no mundo hoje tem, portanto, como pressuposto básico a fundamentação de um horizonte ético universal de bens e valores, ou seja, a superação da redução da ética à esfera do privado e arbitrário, através da fundamentação racional de uma ética universalista, capaz de enfrentar os desafios específicos da nossa época. O primeiro pressuposto: o ser humano é parte da natureza o que tem consequências importantes muito especificamente para o enfrentamento de um dos grandes problemas de nossa época: a relação “ser humano _ natureza” (OLIVEIRA M.A.de, Ecologia, ética e libertação, 1996,173-202 ). Daí uma primeira consideração básica: o ser humano e a natureza são formas diferenciadas de participação no ser e de sua manifestação, o que implica dizer que o ser humano não é o único ser que possui valor intrínseco. Assim, os entes da natureza devem ser reconhecidos em seu ser próprio, constituindo uma esfera não redutível à esfera do ser humano.
Essa visão ontológica nova abre o espaço para uma nova postura ética, cujo imperativo fundamental é: respeita cada ente em seu grau próprio de ser, portanto, também a natureza, enquanto manifestação específica do ser. A grandeza ontológica de um ente se mede pela abrangência de sua estrutura. Ora, como vimos, pertence à estrutura do ente espiritual a co-extensividade à totalidade do ser, portanto, uma abrangência irrestrita. A exigência fundamental de uma ética fundamentada neste horizonte é o do respeito a todo ente em sua forma de ser, de tal modo que se garanta a conectividade universal. que constitui a estrutura básica do universo.
Isso exige a superação de toda ordem social radicada na exploração e na injustiça social e ecológica, fundada no objetivo único de um crescimento sem limites. Isso conduz ao enriquecimento de poucos à custa da suprema exploração da natureza e da indiferença frente à pobreza e à miséria da humanidade, aumentando, assim, a riqueza material e aprofundando a desigualdade. Por esta razão, uma sociedade alternativa é aquela que não só reduz a pobreza, mas tem como objetivo fundamental a redução da desigualdade social (LESBAUPIN I., Por novas concepções de desenvolvimento, 2012, 42).
A configuração que temos hoje é a de um sistema baseado em novas tecnologias capazes de aumentar expressivamente a produtividade, mas cada vez menos capazes de garantirem emprego, aprofundando a desigualdade e com efeitos extremamente negativos para o meio ambiente. As grandes cidades brasileiras tornam visível o elevado índice de desigualdade social, porque se dividem claramente em regiões em que parece que estamos em pleno mundo desenvolvido, o que contrasta com a ampla população favelada e empobrecida. “A cara de país rico que os sucessivos governos tentam dar ao Brasil fica toldada pela precariedade dos serviços públicos essenciais, como saúde, educação, saneamento básico, que dão ao rico Brasil a substância de país pobre e carente das condições básicas para o bem viver de todos” (ARRUDA M., Desenvolvimento Integral, 2012, 20).
Daí Dowbor considerar um desafio fundamental hoje garantir o acesso a um trabalho decente e socialmente útil. Ter um emprego é muito mais do que simplesmente ter dinheiro no bolso, é ter um lugar na sociedade. Temos, na verdade, tanto recursos como conhecimentos técnicos e organizacionais para assegurar isso, como nos mostram muitas experiências no mundo. Neste contexto, é muito importante a redução da jornada de trabalho capaz inclusive de deslocar mão de obra subutilizada para novos setores mais focados em tempo livre, com mais atividades de cultura, economia criativa e lazer. É fundamental aqui generalizar as dimensões informativas dos meios de comunicação, pois os noticiários focam na sensação da criminalidade, quando mais do que nunca a população precisa conhecer os grandes desafios que precisamos enfrentar (DOWBOR L., A era do capital improdutivo, 2017, 282- 284).
Este horizonte ético abre o espaço para uma militância no mundo que tem como tarefa básica restabelecer os vínculos rompidos com a natureza por nossa civilização técnico-científica e reconstruir as comunidades humanas de tal forma que se estabeleçam relações simétricas entre todos os seres humanos, nos diferentes níveis de organização de sua vida. Isso exige “um desenvolvimento que não seja apenas economicamente viável, mas também socialmente justo e ambientalmente sustentável” (DOWBOR L., A era do capital improdutivo, 2017, 280). Aqui a exigência ética suprema é a construção de uma intersubjetividade simétrica e transitiva (OLIVEIRA M.A. de - Desafios éticos da globalização, 2008, p. 120 e ss.), que significa a exigência de humanização da sociedade e de suas instituições.
Daqui se segue um segundo critério ético para o engajamento do ser humano no mundo: primazia entre os diferentes fins contingentes, que se oferecem à sua ação têm os que efetivam o respeito à vida humana e à vida dos outros entes vivos, o que implica pôr em primeiro lugar as necessidades materiais básicas que se referem à manutenção e reprodução da vida humana. Isso se contrapõe radicalmente à forma de organização hegemônica da economia centrada no lucro. Essas necessidades, precisamente na medida em que afastam obstáculos fundamentais para a posse de liberdades essenciais da vida humana (SEN A., Desenvolvimento como liberdade, 2000, 27). Têm prioridade em relação a qualquer outro tipo de necessidade, no sentido do mínimo exigido. Isto implica, por sua vez, como consequência, uma exigência ética em relação à economia: ela não é fim em si mesma, mas é apenas o pressuposto material do desenvolvimento integral do ser humano. Por isto, deve estar a serviço das necessidades básicas, em última instância, a serviço da liberdade (SEN A., Desenvolvimento como liberdade, 2000, 52 e ss.), e não simplesmente do crescimento econômico. Este, consequentemente se revela como meio e não como fim último da atividade econômica (OLIVEIRA M. A de, Ética e Economia, 1995, p. 67 e ss.), como ocorre no horizonte “liberal” em que o objetivo último é maximizar o próprio interesse corporativo, subordinando coisas e pessoas, reduzidas a simples fatores de produção numa contextualização em que o capital é o sujeito de todo o processo e por isto toda a produção é voltada apenas para a geração de lucros.
Isso se mostra com clareza no processo de financeirização da economia, sem qualquer mecanismo de regulação do setor que se torna fim de toda atividade econômica (DOWBOR L., A era do capital improdutivo, 2017, 284-285). A renda global se concentra cada vez mais, enormemente. Por essa razão, como diz M. Arruda, não se pode mais esperar que “a redução e a erradicação da pobreza e as metas do desenvolvimento sustentável derivem do crescimento econômico. Elas têm que vir da redistribuição da renda e da riqueza e isso só acontecerá com uma transformação do sistema do poder político” (ARRUDA M., Desenvolvimento Integral, 2012, 21).
Isto implica que a economia não deve ser entregue a um sistema espontâneo, sem planejamento, participação dos cidadãos e regulação, a não ser a competição de entidades isoladas ou simplesmente ao comando central de uma burocracia administrativa. Condição indispensável para superar desigualdades e assimetrias em todas as relações da vida é uma radicalização da democracia. Isso significa que “trazer os sujeitos que vivem tais relações para arena política, segundo regras democráticas com voz e poder para todos e todas, é a condição da transformação delas mesmas. Isso se dá pela participação cidadã” (GRZYBOWSKI C., Cidadania ativa, democratização e crise civilizatória, 2012, 50).
Para Piketty, para enfrentar esse tipo de capitalismo duas instituições fundamentais inventadas no século XX devem desempenhar um papel central no futuro: o Estado Social e o Imposto Progressivo sobre a renda, mas também se faz necessário inventar novos mecanismos. O instrumento ideal para Piketty seria um imposto mundial e progressivo sobre o capital vinculado a uma grande transparência financeira internacional. O mérito fundamental dessa instituição seria a possibilidade de evitar uma espiral de desigualdade sem fim e de regular eficazmente a dinâmica inquietante da concentração mundial da riqueza.
Condição indispensável para a participação efetiva da população na configuração do sistema econômico contemporâneo é para Dowbor um sistema eficaz de acesso público e gratuito às informações necessárias a fim de que as comunidades possam efetivamente se tornar sujeito do próprio desenvolvimento. Faz-se necessário, por exemplo, garantir o acesso às tecnologias digitais que, em princípio, permitem acesso direto à informação. O impacto produtivo é imenso para os pequenos produtores que assim podem ter acesso aos diversos mercados, escapando dos atravessadores comerciais e financeiros. Essa inclusão digital faz-se um elemento indispensável na construção da configuração da vida social, precisamente na nova lógica de organização econômica que se gesta atualmente na sociedade do conhecimento, cujo o principal fator de produção é o conhecimento. É perfeitamente viável hoje uma informação inteligente e gratuita para todo o planeta e isto é certamente uma contribuição fundamental para a gestação de uma nova cultura. Os gigantes corporativos da comunicação produzem uma sociedade desinformada e insegura. A descentralização e a democratização da mídia podem liberar os imensos potenciais regionais e locais de criatividade eliminando a pasteurização generalizada hegemônica hoje (DOWBOR L., O Capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais, 2020, 105 e ss.).
No horizonte alternativo de uma economia orientada na construção histórica do ser racional e livre, todo o processo deve ocorrer não só tendo o desenvolvimento humano integral como objetivo. Isto significa, em primeiro lugar, investir na melhoria das condições de vida das pessoas, mas igualmente reforçar os laços com os outros entes vivos e os demais entes da natureza, de tal modo que sejam conservados, ou seja, que eles não sejam destruídos sem necessidade, antes se procure preservar as fontes de energia, o ar, a água potável e todos os fatores indispensáveis ao equilíbrio ambiental, o que significa a construção de uma harmonia entre sociedade humana e natureza. Trata-se hoje de superar também uma polarização nova, ou seja, a ideologia do crescimento econômico ilimitado, centrado na grande empresa capitalista ou no Estado autocrático e o projeto histórico do desenvolvimento integral do ser humano em harmonia com o meio natural (ARRUDA M., Desenvolvimento Integral, 2012, 24).
Para M. Löwy, a lógica produtivista e mercantilista da civilização capitalista/industrial nos leva a um desastre ecológico de proporções incalculáveis. Aqui se encontram socialismo e ecologia, que perseguem objetivos comuns: questionar a autonomização da economia do reino da quantificação, da produção, como um objetivo em si mesmo. Neste contexto, emerge a questão ecológica como o grande desafio que exige uma ruptura radical com a ideologia do progresso linear e com o paradigma tecnológico e econômico da civilização industrial moderna. Isto implica que se compreenda que o aparelho produtivo atual não é neutro, mas está a serviço da acumulação do capital e da expansão ilimitada do mercado. Fazem-se necessárias uma revolução deste aparelho e uma revolução energética.
Temos de pensar, então, numa profunda mudança, não só nas relações de produção, mas do próprio aparelho produtivo que é incompatível com as exigências de preservação da natureza e do padrão de consumo. A continuação do progresso capitalista e a expansão da civilização fundada na economia de mercado ameaçam diretamente a sobrevivência da espécie humana e de todo ser vivo no planeta (LÖWY M., Ecosocialismo, 2012, 12 e ss.). Como diz I. Lesbaupin, “a saída da crise mundial não pode ser a retomada do crescimento econômico anterior, apoiado na lógica “produtivista-consumista”: a saída é romper com o modelo econômico baseado na exploração e no lucro e estabelecer um modelo de sociedade baseado em uma economia solidária e ecológica”... (LESBAUPIN I., Por novas concepções de desenvolvimento, 2012, 39).
Numa palavra, o que está em jogo é que, na configuração de uma nova sociabilidade, a economia deve estar a serviço da satisfação das necessidades reais das pessoas na busca de efetivação de relações integralmente humanas o que pressupõe gestão coletiva do sistema econômico por cidadãos livremente associados, ou seja, de uma economia sob controle social que “estriba as relações entre os sujeitos, nos valores da cooperação, da partilha, da reciprocidade, da complementariedade e da solidariedade” (ARRUDA M./BOFF, Globalização: Desafios socioeconômicos éticos e educativos, 2001, 164).
Um passo importante na perspectiva do esforço de caminhar para esta nova configuração da vida social é para Dowbor a exigência de uma renda básica: “A pobreza crítica é o drama maior...Tirar os pobres da miséria constitui custos ridículos, quando se considera os trilhões transferidos para grupos econômicos financeiros. O benefício ético é imenso, pois é inaceitável morrerem de causas ridículas milhões de crianças por ano. O benefício é grande..., na medida em que os recursos direcionados à base da pirâmide dinamizam imediatamente a micro e a pequena produção, agindo como processo anticíclico”... (DOWBOR L., A era do capital improdutivo, 2017, 281).
Tal postura pressupõe, contudo, a superação do fundamento antropológico que subjaz à atual forma de organizar a vida humana em que é, como diz M. Arruda, um “eu-sem-nós”, ou seja, uma absolutização do indivíduo nas diversas esferas da vida humana. Neste contexto, o outro é sempre visto como competidor, adversário ou inimigo que preciso vencer, subordinar ou mesmo eliminar. Por isso, “se o desenvolvimento não é integral, _abrangendo todos os aspectos e dimensões do ser humano_ e se não é harmonioso, ele dá lugar a um organismo com deformidades, desequilíbrios e insanidades” (ARRUDA M., Desenvolvimento Integral, 2012, 23).
É importante acentuar que não se trata aqui de eliminar nem o Mercado, nem o Estado, mas antes de repensá-los enquanto formas de relações sociais. A questão fundamental é a da reconfiguração do mercado e do Estado através do controle dos cidadãos a fim de que, através de novas instituições, se tornem sujeitos da política e da economia. Desta forma, Mercado e Estado assumem uma nova configuração, por se tornarem instrumentos do desenvolvimento humano, numa estratégia participativa e igualitária, garantindo a participação de todos na gestão das instituições configuradoras do todo social: o mercado sob o controle da sociedade e um Estado articulado como regulador e fiscalizador do interesse comum e subordinado à supervisão e às decisões da sociedade democraticamente organizada em todas as suas instâncias. Trata-se aqui, como diz Dowbor, de recuperar o planejamento como um instrumento necessário, só que agora pensado, como planejamento democrático, econômico, social e ambiental, no seio de um novo pacto social para o bem comum. Ele aponta para inúmeras inciativas no mundo atual no plano das tecnologias, dos sistemas de gestão local, dos movimentos sociais organizados, da economia solidária, da democratização do conhecimento através da internet, da descoberta de novas formas de produção menos agressivas, etc. (DOWBOR L., A era do capital improdutivo, 2017, 291-292).
Projetar e transformar sua própria realidade individual e social, como algo específico de um ser inteligente e livre, significa na economia, que os cidadãos associados possam reger conscientemente seu relacionamento com a natureza e submeter todo o processo a um controle social na ótica de uma responsabilidade socioecológica. “Em contraposição, portanto, à sociabilidade capitalista, na qual a associação é mediada pelas coisas, aqui a socialização é orientada na interação” (OLIVEIRA M. A. de - Ética e Sociabilidade, 2015, 278).
Desta forma, o mercado deixa de ser um mecanismo inconsciente de regulação da vida humana de acordo com uma lógica estrutural autônoma, cuja “ética é a compra e venda de qualquer coisa, inclusive do que não devia ser comercializado, como trabalho humano, terra, dinheiro, água e outros bens comuns à humanidade” (ARRUDA M., Desenvolvimento Integral, 2012, 27), e se transforma numa estrutura de relações entre agentes sociais conscientes e que tem seu espaço limitado, a partir da referência aos interesses públicos. Ele sugere dois tipos de estruturas de democratização: comunidades de trabalhadoras e trabalhadores associados nos espaços de trabalho e famílias e pessoas compartilhando sua vida num território local determinado, para gerir de forma auto gestionária seu próprio desenvolvimento, “articuladas entre si em sistemas de redes colaborativas e de cadeias produtivas solidárias. Aqui a competição é substituída pela colaboração (op. cit.,32).
Isso é que se pode chamar de “democracia plena” que “implica no envolvimento de cada pessoa, cidadã e cidadão, na ação de planejar e implementar o desenvolvimento de todos os aspectos e dimensões de sua existência” (ARRUDA M., Desenvolvimento Integral, 2012, 25), ou seja, desenvolvimento se faz, assim, um processo de melhora das condições de vida das pessoas através de planejamento e gestão participativa, portanto, tem a ver com a qualidade e a sustentabilidade da vida. Neste horizonte, M. Arruda, diante da tese que vê no decrescimento uma alternativa a um sistema de mercado que é um fator de destruição dos ecossistemas e uma ameaça crescente à vida (S. Latouche, por exemplo), elabora uma proposta geral: “decrescimento para os países ricos, em particular para as classes abastadas dos dois hemisférios, de crescimento planejado democraticamente para os países em via de desenvolvimento e as classes carentes, que são majoritárias” (ARRUDA M., Desenvolvimento Integral, 2012, 29).
O grande mérito deste tipo de configuração da vida social está no fato de que assim, os seres humanos abrem o espaço de efetivação de suas potencialidades essenciais, enquanto se fazem, de fato, sujeitos da vida social. Isto significa dizer que, nesta configuração da vida coletiva, a sociedade civil se torna o elemento central o que implica que o comunitário e o social se façam o eixo estruturador da vida coletiva das sociedades e da comunidade mundial. A partir deste pano de fundo ético, podemos compreender uma afirmação central de Dowbor: “somos tecnologicamente poderosos, mas politicamente incapazes de gerar uma sociedade civilizada” (DOWBOR L., A era do capital improdutivo, 2017, 277) e seu esforço em desenhar traços que nos possam conduzir a uma alternativa. Assim, em nosso contexto histórico, um primeiro passo é a necessidade de reduzir a capacidade das corporações de comandarem as regras do jogo, de implementarem projetos que reduzem impostos das transações financeiras e o poder de regulação do Banco Central, numa palavra, a exigência central aqui é a recuperação do poder regulador do Estado o que só é possível na medida em que a política é apropriada pela cidadania (DOWBOR L., A era do capital improdutivo, 2017, 279-280).
Esta ética e seu fundamento metafísico desembocam num questionamento radical dos fins estabelecidos para a vida humana pela cultura moderna: a vida humana é centrada no desejo e na acumulação de bens, por se pressupor um apetite ilimitado de consumir, o que leva a pôr no consumo de bens materiais o sentido da existência humana. A sociabilidade hoje vigente significa uma inversão radical na vida humana uma vez que, nesse tipo de economia, a riqueza se transformou no fim último da existência humana. Assim, acumular e consumir constituem agora o sentido último da vida humana. ”A existência humana foi dessacralizada e, no seu lugar se ergueu a cultura do materialismo vulgar e, com ele, todas as violências contra o ser humano, os povos e a vida passaram a ter justificativa... Dinheiro, prestígio e poder foram convertidos em fins e deformaram o próprio sentido da existência humana” (ARRUDA M., Desenvolvimento Integral, 2012, 22).
Na medida em que a própria atividade econômica se transforma em meio enquanto fundamento material do desenvolvimento, então ela precisa ser radicalmente repensada para eliminar toda produção do supérfluo e do excessivo e isto abrirá um novo horizonte emancipatório para a humanidade. Para Diefenbacher (DIEFENBACHER H., Gerechtigkeit und Nachhaltigkeit, 2001, p. 59), isto exigirá uma vinculação entre o “princípio da justiça” e o “princípio da sustentabilidade”.
O princípio da diferença de Rawls reza que as desigualdades sociais e econômicas só podem ser aceitas se proporcionarem o maior benefício aos membros menos favorecidos da sociedade. Este princípio pode e deve ser alargado na medida em que se considera também a participação no meio-ambiente e com isto no potencial de desenvolvimento dentro dos “limites do crescimento”. Nesta perspectiva, o grau de justiça de uma sociedade depende de como ela regra o acesso aos recursos renováveis e não-renováveis e de como ela permite à sua população a participação no direito de eliminar os elementos ameaçadores da vida de toda e qualquer espécie. Compete, então, ao Estado garantir aos indivíduos as liberdades e os direitos fundamentais. Nesta perspectiva os direitos têm primazia frente aos bens (KESSELRING Th., Ethik der Entwicklungspolitik, 2003, 193). Numa palavra, esta ética exige repensar os valores e os estilos de vida de nossa civilização técnico-científica o que implica uma profunda mudança de visão de mundo e de atitudes em relação aos seres humanos e a todo o cosmos (ARRUDA M., Desenvolvimento Integral, 2012, 33-34).
Para L. Dowbor (DOWBOR L., O Capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais, 2020, 105-106), estamos hoje diante de uma excelente oportunidade para construir um mundo novo a partir das possibilidades de uma grande prosperidade planetária. Sua tese básica é que o principal fator de produção no deslocamento que experimentos hoje no capitalismo é um fator de produção, cujo uso não reduz o estoque, um fator de produção imaterial que pode ser estocado, analisado transmitido e generalizado em volumes praticamente infinitos e sem custos adicionais. O conhecimento pode ser generalizado por toda a população independentemente do nível de renda e por todas as empresas através de aparelhos simples e baratos o que significa que todo o conhecimento acumulado pela humanidade está em princípio a serviço de todos. A grande questão aqui é que as corporações e os rentistas barram esse acesso sob a alegação de propriedade intelectual. Daí porque o conceito de propriedade necessita de uma revisão urgente.
O segundo eixo de destravamento é a possibilidade de regatar nossa capacidade de nos reapropriarmos de nossos recursos financeiros que hoje também fazem parte da economia imaterial, conjunto de sinais magnéticos que são apenas meios. O exemplo para isso nos vem dos alemães: quando eles põem suas poupanças nas caixas econômicas de suas cidades ou comunidades e as usam para o desenvolvimento de sua região, essas poupanças voltam a ser produtivas ao invés de alimentar as especulações ou os paraísos fiscais. Esses dois eixos - a abertura geral do acesso ao conhecimento e a reorientação dos recursos para o financiamento das necessidades - nos estão conduzindo a um repensamento da economia. Esses dois eixos são essenciais para que cada pessoa ou grupo de pessoas, em qualquer parte do planeta, possa tomar iniciativas em prol de seu próprio progresso e sua comunidade na direção da construção de uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável.
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