10 Outubro 2022
"Somente os sonâmbulos ainda podem permanecer cegos diante do perigo atômico destas horas. Nunca teríamos imaginado que teria cabido justamente a nós a experiência do abismo", escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana e professora de Filosofia Teórica na Universidade de Roma La Sapienza, em artigo publicado il Fatto Quotidiano, 08-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vejo ao meu redor pessoas que trabalham, ensinam, estudam – aparentemente como se nada estivesse acontecendo. Mas olhando mais de perto não é difícil apreender aquela angústia sutil e irreprimível que já permeia a existência de todos. A remoção, por mais efetiva que seja, não pode esconder a enormidade do que somos obrigados a viver. A ameaça nuclear paira sobre nós todos os dias, materializa-se nas palavras dos maiores líderes mundiais, toma forma nas imagens das operações preparatórias, assume concretude nas projeções dos cientistas, que são também advertências. Os riscos se agravam, os avisos devem ser levados a sério.
Gostemos ou não, aquela guerra distante, nas fronteiras do Donbass, da qual poucos tinham ouvido falar, chegou até nós, sem ninguém que a detivesse, invadiu nossas casas, promete mudar nosso modo de vida e, por fim, aniquilar as nossas existências.
Somente os sonâmbulos ainda podem permanecer cegos diante do perigo atômico destas horas. Nunca teríamos imaginado que teria cabido justamente a nós a experiência do abismo.
Nesse cenário destrutivo, e mesmo diante da escalada, não há uma única voz na União Europeia que se levante para pronunciar a palavra “paz”, para delinear pelo mesmo a possibilidade de uma negociação. Pelo contrário, o empenho se traduz a cada vez em novas sanções.
Tudo isso assumiria o aspecto de uma farsa, se não fosse uma tragédia para nós. O cinismo desta liderança, que desde o início desistiu de qualquer iniciativa, é uma vergonha para a Europa. E, como tal, passará para a história. Os movimentos e gestos de Ursula von der Leyen são uma mistura de miopia e imprudência, arrogância e mediocridade. Não é uma política aberta, flexível e perspicaz, mas exatamente o oposto. Em que mãos estamos? Quem nos representa? Em quem podemos confiar?
Esse mainstream, que com uma reviravolta se definiu como “atlantista”, traindo todos os valores europeus e aceitando a guerra como um fato inelutável, nos últimos meses não fez nada além de atacar as vozes contrárias. Nunca antes havia se visto tal campanha difamatória contra quem só ousasse mencionar a paz. As palavras foram dobradas para indicar o contrário, os significados foram distorcidos em uma propaganda sem precedentes que com violência impôs a militarização dos alinhamentos. Os pacifistas foram zombados, ridicularizados, expostos à chacota pública. Como aconteceu na Itália, também durante a campanha eleitoral, foram tachados de serem espiões, traidores, fantoches, peões conscientes ou inconscientes de Putin. Ainda agora acontece de ler ataques patéticos daqueles que convidam os chamados "pró-putinianos", diante das vitórias ucranianas, a se emendar, a reconhecer seus erros.
Nunca nos rendemos e não nos renderemos a essa lógica de guerra. Ser pela paz não significa ser contra a Ucrânia, ser pela paz não significa ser a favor da Rússia. Aqueles que buscam a paz são movidos apenas pelo bom senso. E é realmente surpreendente que grande parte da liderança europeia siga servilmente o ditado estadunidense, aproximando-nos cada vez mais do abismo. Nenhuma alternativa é prospectada. A palavra "vitória" ainda faz sentido em um cenário nuclear? Qual é o objetivo?
Nunca como agora a nossa impotência nos pareceu insuperável. Não sabemos mais o que fazer, a quem recorrer. No entanto, o apelo do Papa Francisco, por mais dramático que seja, infunde confiança e coragem.
É tempo de parar a escalada da loucura, é tempo de construir uma política de convivência. Ir além significaria aceitar a autodestruição. Precisamente por isso é necessário reagir. A desagregação e o isolamento, longe de serem casuais, são o resultado da política bélica. Precisamos sair às ruas, manifestar a nossa reprovação, o nosso protesto. Fora das cercas, sem flâmulas e bandeiras, apenas com a palavra "paz". Essa manifestação serve – serve para nos reencontrarmos, para não acreditarmos que somos os únicos a sentir angústia, os únicos a ainda abrigar esperança. Mas é especialmente importante como sinal político, tanto aqui como fora.
Para que se entenda que existe uma parte da Itália – a maioria? – que não está patrioticamente disposta a seguir a liderança europeia rumo à catástrofe. Esse será talvez um sinal para os outros, para os irlandeses, para os gregos, para os espanhóis, para os eslovenos e para todos aqueles que são mais afetados pelas repercussões das sanções e das ameaças desta guerra. Deve ficar finalmente claro que as trabalhadoras e os trabalhadores da Europa, os mais pobres, os mais vulneráveis, têm tudo a perder nesta guerra e nada a ganhar.
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Manifestar-se pela paz e parar essa loucura. Artigo de Donatella Di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU