17 Setembro 2022
Bíblia e psicanálise: Massimo Recalcati relê alguns episódios do texto sagrado e ata os fios da Torá com os da disciplina fundada por Freud.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 11-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, trata-se "não tanto de uma leitura psicanalítica da Bíblia, mas uma interpretação bíblica da psicanálise".
É árduo, no limite das linhas destas duas colunas [no jornal impresso], apenas indicar as reações despertadas em um biblista pela análise dos escritos de Recalcati. Paradoxalmente, seu programa é simples e até lapidar: “Através da leitura de algumas cenas capitais do texto bíblico, vão se entrelaçando os fios de dois discursos, o da Torá e o da psicanálise, considerados historicamente heterogêneos e radicalmente alternativos”.
O autor conduz esse processo de bordado percorrendo o cume pontiagudo de onde se ramificam os dois lados da página bíblica e da trama psicanalítica, sobretudo lacaniana, ambos ligados por um perfil comum, a celebração da palavra. O itinerário de Recalcati se confia a uma seleção textual emblemática, marcada por um gênero literário comum, o “sapiencial”, uma espécie de teologia narrativo-simbólica.
Assim são os capítulos “adâmicos” do Gênesis, uma etiologia antropológica meta-histórica; assim são os relatos emocionantes do Monte Moriá e do rio Jaboc; explicitamente sapienciais são a obra-prima dramática de Jó e o pensamento gélido mas trêmulo do Eclesiastes, assim como o primaveril e festivo Cântico dos Cânticos; uma parábola sapiencial universalista é também a viva história que tem como protagonista um profeta relutante como Jonas.
O que torna ainda mais difícil dar conta da leitura do comentário de Recalcati são vários fatores, a começar por um dado requintadamente pessoal: os escritos bíblicos antologizados são os mais amados e estudados por mim, de modo a fazer florescer múltiplas ressonâncias, consonâncias, dissonâncias.
Além disso, o procedimento do autor segue mapas ramificados nos quais cada caminho pode esconder várias iridescências temáticas. Ao avançar, o leitor se depara, por isso, com surpresas e às vezes pode até se perder e esperar que certas páginas sequem.
No entanto, a abordagem adotada permanece fascinante, não totalmente inédita (pensemos apenas no Moisés de Freud ou no Jó de Jung ou nos Evangelhos de Drewermann), mas original no processo hermenêutico que subverte os outros métodos: não é tanto uma leitura psicanalítica da Bíblia, mas uma interpretação bíblica da psicanálise.
Certamente, é fundamental a sequência dos capítulos dedicados às primeiras 11 páginas maiúsculas do Gênesis, a partir do ha-‘adam, “o Homem”, e da sua “costela” Eva (na verdade, em hebraico, o termo indica o “lado” e portanto já supõe uma paridade, expressada no ser kenegdô da mulher, ou seja, “como que de frente”), que seria “o mito da origem do desejo humano”.
Mas igualmente relevante é a etapa posterior do pecado radical (“original”), ou seja, “deificar a própria natureza, rejeitar a própria finitude, negar a própria insuficiência e falta”; e a tentação satânica de “ser como Deus, conhecedores do bem e do mal” árbitros da moral.
Igualmente decisivos são o fratricídio de Caim, aquele que não tolera não ser o único e rejeita a alteridade, o evento traumático do dilúvio e “o delírio das babélicos” com seu “imperialismo linguístico”.
Alguns resenhistas pararam criticamente apenas na análise do “primeiro corte” (e, suspeitamos, sem prosseguir na galeria dos retratos subsequentes): Deus, ao criar, separa-se isolando-se da história, confiada agora apenas à gestão humana. É uma releitura livre da conhecida tese judaica do zim-zum, do “retirar-se” de Deus para deixar espaço para a criação e sobretudo para a liberdade humana. Na verdade, todos os emblemas bíblicos subsequentes são a demonstração da constante presença atorial divina, mesmo no seu silêncio paradoxal.
De fato, a estrutura temática da Bíblia privilegia a história como sede teofânica, introduzindo um Deus “patético”, muito diferente do Motor imóvel aristotélico ou de um certo transcendentalismo islâmico. É por isso que são imperdíveis as cenas selecionadas por Recalcati com o seu olhar muitas vezes inesperado, que transforma, por exemplo, o paradigma supremo da crença de Abraão, pronto para levantar a faca sobre Isaac, em sinal de renúncia à propriedade sobre o filho, reconhecendo-lhe sua liberdade.
Ou a luta noturna de Jacó com o ser misterioso, que agora se torna – mediante a retomada contextual do conflito fraterno com Esaú – a descoberta do próximo não mais rival, mas assimilado ao rosto irredutível de Deus. O rosto do outro se torna o rosto do Outro, e isso não é uma tautologia.
O tema da fraternidade ressurgirá na escuta da voz desconcertante do Eclesiastes: ela, porém, é projetada em uma dimensão não de sangue, mas transcendente, depois que o sábio arrasou ao chão “o fantasma idólatra do ser”.
E, novamente, eis o livro requintadamente teológico, mais do que antropológico, de Jó, muito amado por Recalcati. A lâmina do sofrimento que atravessa a carne e a alma do protagonista fazem-se grito e advertem que "a teologia da pergunta supera toda teologia da resposta”, especialmente a “retributiva” dos amigos teólogos, mas certamente não a réplica de Deus feita de silêncio e de epifania (“agora os meus olhos te veem”, exclama Jó no fim).
Paremos por aqui, marginalizando outras duas joias bíblicas caras a ambos, ao autor e ao seu leitor, o já mencionado Eclesiastes e as extraordinárias 1.250 palavras hebraicas do Cântico dos Cânticos, todas impregnadas da “alegria do amor”. Assim, confirma-se o oráculo profético de Jeremias: “Minha palavra não é como fogo, ou como um martelo que tritura a pedra?” (23,29).
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Caim e Abraão no divã. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU