Cada novo livro da eslovena Renata Salecl pode ser lido como o elo de uma cadeia mais longa relacionada aos dilemas contemporâneos. Por isso, em Pasión por la ignorancia (Ediciones Godot) retoma ideias já levantadas em La tiranía de la elección para analisar a maneira como gerimos, ou acreditamos gerir, nossa informação.
Paradoxalmente, em um mundo onde o conhecimento parece estar disponível para todos, as pessoas se isolam em bolhas de informação e parecem dispostas a afirmar o que já acreditavam. E embora esta lógica não se esgote no consumo dos meios de comunicação tradicionais ou nas formas como os conteúdos são criados e distribuídos nas redes sociais, são estes os espaços privilegiados para dar conta dela.
Nesse sentido, a pandemia e tudo o que está relacionado ao vírus da covid permitiu, como poucos fenômenos, evidenciar as crenças, opiniões e fantasias de uma época.
A reportagem-entrevista é de Ingrid Sarchman, publicada por Clarín-Revista Ñ, 12-08-2022. A tradução é do Cepat.
“No início da pandemia, escrevi um pequeno livro em esloveno”, diz Salecl, nesta entrevista em Buenos Aires, poucos dias antes de sua participação na FED 2022.
“O título, que traduzido para o espanhol seria El hombre es un virus para el hombre, é um jogo de palavras e uma alusão à clássica frase de Thomas Hobbes de que o homem é um lobo para o homem. Comecei perguntando-me como o vírus havia mudado as relações interpessoais, como havia modificado a nós mesmos.
Se no início da pandemia existia uma fantasia relacionada à ideia de que estávamos todos no mesmo barco, que diante do vírus éramos todos iguais, isto rapidamente ruiu. Era óbvio que os pobres e as minorias raciais sofriam muito mais do que a classe média. Também não era a mesma coisa poder trabalhar de sua casa, ficar em um apartamento confortável ou ter uma casa disponível no campo que se isolar em um lugar superlotado.
Mas junto com essas desigualdades, comecei a notar um tipo de violência muito específica relacionada ao vírus. Não só porque muitos não acreditaram nele, de forma que colocavam em risco o restante – sobretudo os mais vulneráveis –, mas porque começou a surgir um tipo de agressão muito específica: pessoas que, intencionalmente, tentavam contagiar outras, tossindo sobre elas, quando sabiam que estavam infectadas, ou contaminando os alimentos.
Isso também pode estar relacionado aos assassinatos de seguranças em shopping centers, quando solicitavam que as pessoas usassem máscara para permanecerem em locais fechados. Também abordei um tipo de violência relacionada à compulsão.
Um exemplo foi a obsessão das pessoas, no início da pandemia, em comprar papel higiênico. Em termos psicanalíticos, foi interessante para mim perguntar: O que está acontecendo? Que tipo de experiência traumática estamos passando? Que tipo de informação gerimos e que tipo de informação buscamos ou negamos para sobreviver?”
Chama a atenção essa forma de agressão, que não vimos aqui em nossa região. Sim, houve manifestações contra o confinamento, mas não uma forma de agressão tão “cara a cara”.
É verdade que chama a atenção. Mas na China, por exemplo, ficou muito popular um vídeo de dois empresários que cuspiam um no outro buscando o contágio. O interessante é que depois se soube que esse vídeo tinha três anos, ou seja, não era atual, nem estava relacionado com a covid. Ou seja, as pessoas começaram a circulá-lo para agitar os ânimos.
Falamos sobre essa forma de violência. Ou seja, embora a violência não seja física, há um modus operandi acerca da forma como a circulação de determinada notícia ou imagem pode ativar um tipo de violência, porque certas pessoas decidem acreditar nela, embora essa decisão não seja totalmente consciente.
E este é o contexto perfeito para a proliferação de fake news. Que forma de ignorância ativam?
Definitivamente, nesse contexto, as fakes news se intensificam, principalmente as relacionadas às vacinas. Na Europa, assistimos a uma proliferação de movimentos antivacinas, juntamente com um crescente neoliberalismo, especialmente relacionados a pessoas ligadas a movimentos saudáveis, os fanáticos do fitness. Como sustentam que seu corpo é o seu templo, acreditam que podem decidir o que é bom ou o que é ruim para eles.
O problema é que, se tudo o que está relacionado a seu corpo é uma escolha sua e você é totalmente o responsável, se fica doente é porque tomou as decisões erradas, a culpa é sua. Se você internalizou a ideia de que pode escolher tudo o que está relacionado ao seu corpo, as vacinas passam a ser uma decisão individual. Essa ideia de individualismo extremo é intensificada pela descrença na política e a desconfiança nos políticos.
São processos diferentes, mas solidários entre si. Nesse contexto, a pergunta pela verdade, a verdade científica, tem que competir com as opiniões destes influencers ou supostos gurus que incentivam que as pessoas decidam por conta própria sobre questões de saúde, mas a saúde não deixa de ser um problema social que afeta a todos. Na Eslovênia, essa posição acabou afetando especialmente os filhos dos grupos antivacinas porque ficaram expostas ao vírus sem poder decidir por si mesmas.
Isso pode estar relacionado ao que no livro é apresentado como a ikeação do mundo?
Sim, claro. Minha ideia nesse capítulo é que a ikeação (em referência à Ikea, a rede multinacional holandesa que vende uma linha de móveis na caixa com instruções para que cada cliente faça a montagem por conta própria) consiste em insistir que as pessoas podem prover seu próprio conhecimento. Cada indivíduo pode decidir sobre coisas importantes, seu corpo, vacinas etc.
Uso o termo no sentido de que mais e mais trabalhadores se identificam com essa ideia de que o trabalho, cada vez mais, depende de si mesmo. Do it your self (faça você mesmo) é repetido como um mantra para que, quando as coisas caminham mal, seja você mesmo e somente você o responsável. Não há Estado, não há governo, não há nada além de si mesmo.
Não há um paradoxo entre a proliferação de fake news, o mandato de não aceitar qualquer grande verdade geral e a compulsão em buscar constantemente informações na web?
Não acredito. As estatísticas sobre a internet mostram que cada vez mais as pessoas vivem em uma bolha onde consomem um tipo específico de informação com a qual concordam. Nesse sentido, seria interessante pensar o que aconteceria se as pessoas começassem a ler coisas diferentes. Mudariam de opinião?
Mudar de opinião e expressá-la não parece ser o sinal de nossos tempos. Nesse sentido, no livro destaca que cada época está marcada por sua própria ignorância, que tipo de ignorância é a do nosso presente?
Como destaco, nossa ignorância está relacionada aos saberes que dominam nosso tempo: a genética, as neurociências e o big data criam a fantasia de que podemos saber coisas sobre nós mesmos, sobre o nosso corpo, e assim não percebemos que isso não é o suficiente para definir a verdade sobre quem somos. Os próprios geneticistas nos alertam para o perigo de ter muita informação sobre nossos organismos.
Saber que somos portadores deste ou daquele gene, que não sabemos como podem afetar – se chegar ou não a se expressar – só provoca incerteza, angústia e dilemas quanto ao futuro, por exemplo, o medo de transmiti-lo a nossos filhos. O mesmo acontece com o big data. Se ficássemos o tempo todo atentos ao que acontece quando nos conectamos, às informações que são coletadas sobre nós, teríamos um grande problema.
Como sobreviveríamos? Como gerenciaríamos a certeza constante de que somos rastreáveis o tempo todo? Essa forma de ignorância é diferente da que destacávamos antes a respeito das fake news ou da negação de temas ambientais relacionados, por exemplo, ao aquecimento global e outros desastres de nosso planeta.
Existe uma boa ignorância? Uma desejável?
Sim. O amor precisa de certa dose de ignorância. Reservo um capítulo inteiro do livro para falar a respeito desse tipo de ignorância, quando idealizamos a outra pessoa, optamos por não ver determinadas coisas.
Existe também um tipo de negação que ajuda a sobreviver quando não podemos lidar com uma doença. O mesmo acontece com pessoas que viveram uma experiência traumática como a guerra.
Em todos os casos, esquecer, mesmo que por um tempo, não ver ou ignorar, de forma consciente ou não, é uma forma de sobreviver. Todos estamos sobrevivendo.