A casa comum como portadora de direitos

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01 Julho 2022

 

"É preciso refletirmos filosoficamente, sobretudo acerca da história do humanismo. Esse conceito foi mote de uma relação de forças para lhe atribuir significado. Durante todo o tempo, houve lutas, conquistas, além de muita destruição e sangue em seu nome", escreve Adriano Versiani, advogado e mestrando em história e conexões atlânticas pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA.

 

Eis o artigo.

 

Estamos interligados, sem grau hierárquico, a todos os modos de vida do planeta. Ailton Krenak diz que vivemos uma “abstração civilizatória que suprime a diversidade” e “nega a pluralidade das formas de vida” existentes no planeta [1]. Vivendo em uma sociedade que prega o humanismo no sentido moderno do termo, tendemos a dar importância ao que chamamos de humanidade, esquecendo-nos, ainda lembrando Krenak que “Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza”, nós somos natureza [2]. Para o autor, essa humanidade não representa a totalidade do mundo, nem mesmo dos seres humanos. É um conceito que, na verdade, exclui.

 

O salmo 50, por sua vez, não deixa dúvida que “(...) são minhas todas as feras da selva, e os animais das montanhas, aos milhares” e ainda que “o mundo é meu, e o que nele existe” [3]. Habitamos o planeta criado por Deus, somos a ele interligados e iguais em grau de importância. Tal conclusão pode ser retirada até mesmo por meio da lógica, afinal, sem o mundo, a natureza, a biosfera, a própria mãe terra, sequer há vida humana.

 

No jornal The Guardian, o jornalista Patrick Brakham veiculou reportagem intitulada Os rios devem ter os mesmos direitos que as pessoas? [4], onde questiona se os rios podem ser sujeitos de direito no atual sistema jurídico. Ao mesmo tempo, o texto anuncia que, no Canadá, o rio Magpe foi considerado portador de personalidade jurídica e, por isso, portador de nove direitos. O autor traz entrevista de um líder indígena, membro da comunidade Innu, que afirmou ser o rio uma forma de cura para todos os indígenas que habitam o lugar [5].

 

A texto avança, afirmando que os pensadores jurídicos ocidentais começaram a vislumbrar que a visão capitaneada pelo iluminismo, de que a natureza é algo a ser explorado, está começando a ser revisada. Tudo teve início quando, na Nova Zelândia, o rio Whanganui também foi considerado portador de personalidade jurídica. A comunicação anuncia também que na Austrália essa mudança de rumos está em movimento [6].

 

Dentre os direitos garantidos pela legislação canadense ao rio Magpe estão os de fluir, de estar a salvo da poluição e de processar [7].

 

O artigo 72 da constituição do Equador, promulgada em 2008, quiçá pioneira sobre o tema, traz uma possibilidade importante de consideração da natureza perante a ordem jurídica [8]. Pela leitura da norma perceptível, sem deter conhecimento do sistema jurídico daquele país, que a natureza é considerada portadora de direitos, podendo inclusive processar.

 

 

Na exortação apostólica Querida Amazônia: ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade, o Papa Francisco diz que “Se o cuidado com as pessoas e o cuidado dos ecossistemas são inseparáveis, isso torna-se particularmente significativo” na floresta Amazônica [9].  O cuidado com as pessoas e com o ecossistema, portanto, são inseparáveis, pois devem ser pensados em conjunto. Um não pode existir sem o outro.

 

Sabe-se que o pensamento ecológico do Papa Francisco é dotado de um sistema integrativo, onde tudo está interligado, nos convocando a pensar, como ensina Robson Reis Souza “um novo humanismo que ocorre nas conexões entre o meio ambiente, e os distintos saberes” [10]. Sim, o Papa recomenda pensar o humanismo de uma forma diferente da que encaramos até hoje, buscando “maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos” [11].

 

 

Um detalhe importante que se extrai do texto é a relação do pensamento ecológico com outros saberes, afinal a proposta é abrir um diálogo sobre como estamos construindo o planeta e isso envolve também os seres humanos, a situação precária em que se encontra boa parte da humanidade, pois quase metade da população mundial vive com U$5,50 por dia, segundo o Banco Mundial [12]. Não há ambiente ecologicamente equilibrado diante de tamanha desigualdade social. É a própria encíclica Laudato Si que considera que “o ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social” [13].

 

Como todo ensinamento que provém do atual Papa, a encíclica Laudato Si é voltada para a prática. Por isso, ele nos conclama a vislumbrar que a consciência da importância da grave crise ecológica é relevante, mas deve ser acompanhada de novos hábitos. O estabelecimento de normas jurídicas não basta [14]. Precisamos educar para a ecologia.

 

 

Ora, mas no presente texto chamo a atenção para países que estão considerando a elementos da natureza como possuidores de personalidade jurídica, o que dizer, então? De fato, a encíclica é perfeita em sua constituição. A labuta jurídica sempre nos colocará diante de uma tarefa histórica inconclusa, de tal modo que a resistência reacionária sempre virá ao seu encontro, na tentativa ceifá-lo. O que digo com isso é que nossos direitos estarão sempre à mercê.

 

Mas, independentemente disso, ainda nos resta lutar para que direitos sejam resguardados. Só é preciso lembrar que tal luta é tarefa inconclusa. Portanto, imagino que seja importante lutar pelo direito à personalidade jurídica da mãe terra, reconhecendo-a como personalidade jurídica capaz de ser defendida por meio do sistema jurídico brasileiro, lembrando, com Leonardo Boff, que a terra é mãe e que, segundo São Francisco de Assis “abraçar o mundo é abraçar a Deus” [15].

 

João Batista Libânio tem belíssima lição sobre a questão, ocasião em que analisa a proposta de Treilhard de Chardin sobre a visão cósmica de Cristo. Segundo ele todas as coisas foram criadas por ele e para ele, sem exceção e “na fé, contemplamos a Cristo como centro físico de todo o mundo material” [16]. Ou seja, Cristo é o centro físico de todo o planeta. Não há como pensar em nada no planeta, sem pensar Nele.

 

É preciso refletirmos filosoficamente, sobretudo acerca da história do humanismo. Esse conceito foi mote de uma relação de forças para lhe atribuir significado. Durante todo o tempo, houve lutas, conquistas, além de muita destruição e sangue em seu nome.

 

Encerro com uma oração proposta pelo Papa na exortação Querida Amazônia, que também é um belíssimo poema de amor ao planeta:

 

Mãe da vida,

no vosso seio materno formou-Se Jesus,

que é o Senhor de tudo o que existe.

Ressuscitado, Ele transformou-Vos com a sua luz

e fez-Vos Rainha de toda a criação.

Por isso Vos pedimos que reineis, Maria,

no coração palpitante da Amazónia.

 

Mostrai-Vos como mãe de todas as criaturas,

na beleza das flores, dos rios,

do grande rio que a atravessa

e de tudo o que vibra nas suas florestas.

Protegei, com o vosso carinho, aquela explosão de beleza.

 

Pedi a Jesus que derrame todo o seu amor

nos homens e mulheres que moram lá,

para que saibam admirá-la e cuidar dela.

 

Fazei nascer vosso Filho nos seus corações

para que Ele brilhe na Amazónia,

nos seus povos e nas suas culturas,

com a luz da sua Palavra, com o conforto do seu amor,

com a sua mensagem de fraternidade e justiça.

 

Que, em cada Eucaristia,

se eleve também tanta maravilha

para a glória do Pai.

 

Mãe, olhai para os pobres da Amazónia,

porque o seu lar está a ser destruído

por interesses mesquinhos.

Quanta dor e quanta miséria,

quanto abandono e quanto atropelo

nesta terra bendita,

transbordante de vida!

 

Tocai a sensibilidade dos poderosos

porque, apesar de sentirmos que já é tarde,

Vós nos chamais a salvar

o que ainda vive.

 

Mãe do coração trespassado,

que sofreis nos vossos filhos ultrajados

e na natureza ferida,

reinai Vós na Amazónia

juntamente com vosso Filho.

Reinai, de modo que ninguém mais se sinta dono

da obra de Deus.

 

Em Vós confiamos, Mãe da vida!

Não nos abandoneis

nesta hora escura.

Amen.[17]

 

Referências

 

[1] KRENAK, Ailton. A vida não é útil. 1.ed. São Paulo: Companhia das letras, 2020, p.82.

[2] Id. p.83.

[3] Bíblia de Jerusalém. 14.ed. São Paulo: Paulus, 2020, p.914.

[4] Tradução livre para: Should rivers have the same rights as people?.

[5] BRAKHAM, Patrick. Should rivers have the same rights as people?. Acesso em 28 de junho de 2022.

[6] Id. Ibid.

[7] Id. Ibid.

[8] Art. 72.- La naturaleza tiene derecho a la restauración. Esta restauración será independiente de la obligación que tienen el Estado y las personas naturales o jurídicas de indemnizar a los individuos y colectivos que dependan de los sistemas naturales afectados.

En los casos de impacto ambiental grave o permanente, incluidos los ocasionados por la explotación de los recursos naturales no renovables, el Estado establecerá los mecanismos más eficaces para alcanzar la restauración, y adoptará las medidas adecuadas para eliminar o mitigar las consecuencias ambientales nocivas.

[9] BEROGLIO, Jorge (Papa Francisco). Querida Amazônia: ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade. 1.ed. Paulos: São Paulo, p.26.

[10] SOUZA, Robson Reis. In  O novo humanismo. São Paulo: Paulus, 2022, p.53.

[11] BEROGLIO, Jorge (Papa Francisco). Laudato Si: sobre o cuidado da casa comum. 2.ed. Paulus: São Paulo, 2019, p.15.

[12] Disponível aqui. Acesso em 26 de junho de 2022.

[13] Op. Cit. p.31.

[14] Id. p.120/121.

[15] BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis: Ternura e Vigor. 13.ed. Vozes:: Rio de Janeiro, 2012, p.14.

[16] LIBÂNIO, João Batista. Creio na trindade: a fé trinitária explicada aos catequistas. Paulus: São Paulo, 2021, p.84.

[17] Op. Cit. p.55/57.

 

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