"Uma mulher também foi divinizada. Assim chegamos a um perfeito equilíbrio humano-divino. O masculino através de Jesus e o feminino através de Miriam fazem parte do mistério de Deus. Não poderemos mais falar de Deus sem falar do homem e da mulher. Não poderemos mais falar do homem e da mulher sem falar de Deus", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
É convicção de fé dos cristãos de que o Filho de Deus-Pai se encarnou no homem Jesus de Nazaré. Assim que a encarnação, bem representada na festa do Natal, significa uma das celebrações principais da cristandade.
Quase nunca pensamos na “encarnação” do Espírito Santo. Ao contrário, concentramo-nos mais na festa de Pentecostes recordando a vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos reunidos no cenáculo. Sobre todos que estavam com eles, de várias procedências e falando as mais diversas línguas, desceu sobre suas cabeças uma espécie de língua de fogo. Todos entenderam a mesma mensagem como se tivesse sido dita na língua de cada um.
Esta festa de Pentecostes nos oferece a oportunidade de aprofundarmos o significado do Espírito na humanidade e na criação.
Se bem pensarmos, o Espírito sempre estava no mundo. O primeiro capítulo do Gênesis refere que o Espírito pairava sobre o deserto, o vazio e as trevas primordiais (touwaboú em hebraico) e deu origem e ordenou todas as coisas criadas. O amor, a bondade, a solidariedade, a compaixão e todas as outras virtudes tem a ver com o Espírito Santo. Estas realidades se encontram em todos os povos da Terra. Por isso se diz que o Espírito Santo chega antes do missionário. Este encontra já a presença do Espírito naquelas realidade tão humanas. O evangelho vem confirmá-las e consolidá-las.
Eis que surge a pergunta: um homem, Jesus de Nazaré, foi divinizado pela encarnação do Filho eterno mas como fica a mulher? Para o equilíbrio da própria autocomunicação de Deus (revelação), não seria conveniente também divinizar a mulher? Assim o masculino e o feminino (o animus e a anima), a totalidade do fenômeno humano, começaria a pertencer ao próprio Deus. A humanidade inteira seria entronizada na Suprema Realidade.
Essa reflexão possui certa atualidade, pois, vivemos sob a eventual ameaça do desaparecimento da espécie humana devido à nossa própria irresponsabilidade, por termos destruído as condições físico-químicas-ecológicas que sustentam a nossa vida. Se porventura isso vier a ocorrer, podemos dizer que algo nosso, o masculino e feminino, já estão eternizados e teríamos alcançado o ponto Ômega da antropogênese. Portanto, algo nosso jamais desaparecerá o que funda a esperança de que não iremos também desaparecer.
Retomando o tema, podemos dizer que uma mulher, Miriam de Nazaré, também foi elevada à altura da divindade. Não sou eu que o diz mas o próprio evangelista São Lucas, quando lido com olhos não patriarcais. De fato ele diz: “O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo armará sua tenda sobre ti e é por isso que o Santo que nascerá de ti, será chamado Filho de Deus” (1,35).
Temos que ler o texto em seu original grego para entender a mensagem aí revelada. Então nos damos conta de que o evangelista Lucas usa a mesma palavra com referência à Miriam que o outro evangelista João também usa concernente a Jesus. Ambos usam a expressão “tenda” (skené em grego) para expressar a morada permanente, não fugaz, seja do Filho, seja do Espírito Santo.
Lucas dirá que o Espírito Santo “armará sua tenda” (episkiásei: 1,35) sobre Maria. João dirá também que o Logos (Filho) “armou sua tenda entre nós” (eskénosen: Jo 1,14). Como se depreende, a esses verbos subjaz a mesma expressão skené: morada permanente, pessoal e duradoura das divinas Pessoas seja sobre o homem Jesus seja sobre a mulher Miriam. “Por isso” (diò kaì) o que nascerá dela é “Filho de Deus”. Só é Filho de Deus quem nasceu de alguém que foi elevado à altura de Deus. Foi o que ocorreu com Miriam de Nazaré. Só é possível a vinda do Filho de Deus-Pai e se encarnado em Jesus se antes não tivesse ocorrido a vinda do Espírito que assumiu a mulher, Miriam, que gestou o Filho de Deus-Pai. Daí que a primeira pessoa divina a vir a este mundo não foi o Filho mas o Espírito Santo.
Disso tudo nos é concedido afirmar que uma mulher também foi divinizada. Assim chegamos a um perfeito equilíbrio humano-divino. O masculino através de Jesus e o feminino através de Miriam fazem parte do mistério de Deus. Não poderemos mais falar de Deus sem falar do homem e da mulher. Não poderemos mais falar do homem e da mulher sem falar de Deus.
Escapa-nos o que significa, em sua última radicalidade, essa imbricação divino-humana, masculino-feminino e as duas divinas Pessoas. São mistérios que remetem a outros mistérios, mistérios não como limite da razão mas como o ilimitado da razão, mistérios que não metem medo quais abismos aterradores mas que extasiam quais píncaros de montanhas. No fundo se trata de um único Mistério de comunhão e de doação, de ternura e de amor no qual Deus e seres humanos estão indissoluvelmente envolvidos.
Sei que há feministas que não aceitam esse tipo de reflexão e alegam não precisarem da divinização para serem plenamente mulheres. Eu apenas pondero: "estou lhe mostrando uma estrela; se você não a vê, não é um problema da estrela, mas de seus olhos". A oferta de sentido continua sendo válida.
O Espírito não restringe sua presença apenas no feminino a começar por Miriam de Nazaré mas, de certa forma, tem uma presença cósmica. Diz um dito antigo: “O Espírito dorme na pedra, sonha na flor, acorda nos animais e sente e sabe que esta acordado no ser humano.”
Desta forma, a história do mundo e do universo é a história da ação criativa e sempre dinâmica do Espírito rumo à uma plenitude sempre ansiada e que um dia, assim esperamos, irá se realizar.