Autodeterminação dos povos e responsabilidade global. Entrevista com Giannino Piana

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01 Junho 2022

 

O dilema liberdade-vida só pode ser resolvido em favor da vida, e isso ainda mais se considerarmos que a autoridade que decide a intervenção bélica envolve a vida de outros, que nem sempre concordam em pô-la em risco (ou perdê-la) por uma causa que talvez nem compartilhem.

 

A opinião é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas.

 

A entrevista foi concedida a Esodo, 18-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Quem é favorável ao envio de armas para a Ucrânia diz que, para a defesa da liberdade, é preciso arriscar perder a vida; entre a liberdade e a vida, o primado é da liberdade, como no caso do fim da vida. Você considera válida essa contraposição e acha legítima a comparação com o caso de suicídio assistido?

 

A liberdade certamente é um grande valor que não pode ser subestimado: está em jogo a própria identidade do sujeito humano. Entretanto, é preciso distinguir entre a liberdade pessoal e a de um povo, ou seja, o respeito pela sua autonomia territorial e de governo em nível socioeconômico e político.

 

No primeiro caso – o da liberdade pessoal – o indivíduo, quando lhe é negada a possibilidade de viver em fidelidade aos valores em que acredita, sendo, portanto, obrigado a ir contra a própria consciência ou constrangido a renunciar à própria fé religiosa, também pode pôr em risco a própria vida, a ponto de perdê-la. Não foi esse talvez o testemunho dos mártires cristãos?

 

Diferente e mais complexo é o discurso referente à defesa da liberdade por parte de uma nação injustamente invadida por outra nação. A reação a essa situação, dando origem a uma guerra de verdade, mesmo que defensiva (e consequentemente o fornecimento de armas por parte de outros países como está ocorrendo na Ucrânia), é eticamente inaceitável. Não existe guerra justa!

 

O dilema liberdade-vida, portanto, só pode ser resolvido em favor da vida, e isso ainda mais se considerarmos que a autoridade que decide a intervenção bélica envolve a vida de outros, que nem sempre concordam em pô-la em risco (ou perdê-la) por uma causa que talvez nem compartilhem.

 

Isso não significa que se deva ficar inerme diante de um atentado à própria liberdade nacional, mas é preciso escolher outras formas de defesa, que vão das operações de polícia internacionais – infelizmente hoje de difícil execução devido à inexistência de organismos internacionais adequados, incluindo a ONU – até a defesa não violenta e a mediação diplomática.

 

Por outro lado, o que explica a exasperação dos conflitos que levam à guerra – o caso da Rússia e da Ucrânia se encaixa nesse quadro – é o renascimento exasperado hoje dos nacionalismos e patriotismos, que representam uma forma de reação contra o declínio dos Estados-nação, cujo poder é cada vez mais limitado pelo avanço da globalização, por causa da qual os processos socioeconômicos e políticos ultrapassam continuamente as suas fronteiras.

 

Quanto à comparação com o suicídio assistido, não me parece haver as condições para uma comparação. No caso do suicídio assistido, trata-se de uma escolha do indivíduo, cuja legitimidade pela aplicação do princípio da autodeterminação não é entregue, mesmo por parte de quem a defende por motivações ético-religiosas – vejam-se as intervenções pontuais de Hans Küng e das Igrejas protestantes –, à arbitrariedade da decisão pessoal, mas envolve a verificação de condições objetivas específicas que não podem ser ignoradas.

 

O princípio de autonomia e de autodeterminação não é absoluto; deve fazer as contas na bioética com outros princípios – beneficência e justiça social – que limitam o seu exercício.

 

No caso da guerra atual, afirma-se o valor absoluto da liberdade e da autodeterminação do povo ucraniano: se levarmos esse princípio até o fim, além do risco nuclear, há consequências terríveis para as camadas mais pobres na Europa, mas sobretudo na África. Populações inteiras correm o risco da fome e da morte. Essa é uma consequência indireta, mas facilmente previsível, que deve ser levada em consideração em uma avaliação ética? Em um mundo interconectado, que peso têm as avaliações éticas de uma ação legítima e necessária com consequências negativas para a vida e a liberdade em outras regiões do mundo?

 

A autodeterminação (e a liberdade), também neste caso, assim como no da bioética, não pode ser considerada um princípio absoluto. As consequências terríveis ventiladas são realistas. O risco é desencadear uma verdadeira guerra mundial, com fortes repercussões negativas, sobretudo para as camadas mais pobres da população. E isso também porque o aumento cada vez mais consistente das desigualdades sociais e entre os povos – um aumento devido à persistência de um sistema econômico, que, apesar das muitas falhas não só de natureza ética, mas também produtiva (pensemos apenas no primado da economia financeira sobre a real) – impossibilita a realização de uma distribuição equitativa da riqueza e, graças à prevalência da lógica consumista, impede que se chegue a uma efetiva mudança dos estilos de vida, que se tornou necessária também pelas dimensões dramáticas assumidas pela questão ecológica.

 

A interconexão do mundo, em razão do já referido fenômeno da globalização, confere um peso determinante a escolhas como a aqui referida. A avaliação ética dos processos que são desencadeados em uma região circunscrita do planeta não pode se limitar a considerar os efeitos que são produzidos nessa região; deve assumir como referência a situação mundial. E isso também na presença de boas razões para considerar legítimos os processos que se pretende ativar, mas cujas consequências devem ser avaliadas em uma perspectiva universalista.

 

Putin é comparado a Hitler como o “mal absoluto”: a defesa da Ucrânia, portanto, é a defesa do Bem contra o Mal, dos valores absolutos contra os desvalores absolutos. Estamos em um novo “choque de civilizações”. Não há espaço, portanto, para a democracia e o acordo. Essa abordagem é correta, a partir de um ponto de vista ético? O que significa a distinção feita por João XXIII entre o pecado e o pecador?

 

A comparação entre Putin e Hitler é absolutamente inaceitável. Primeiro, pelo contexto histórico que mudou. Mas sobretudo pela gravidade diferente das intervenções. Certamente não se deve diminuir a responsabilidade de Putin em relação aos crimes hediondos, fruto de um regime autoritário, que se defende sem deixar espaço para a crítica e a dissidência, pelo contrário, anulando-as também por meio de operações de violência trágica. Assim como devemos condenar com força, sem hesitação, a sua invasão da Ucrânia.

 

No entanto, isso não deve levar à subestimação das responsabilidades do OcidenteEstados Unidos e Europa – que, com algumas posições tomadas, contribuíram para exasperar a tensão. A contraposição entre o Mal absoluto e o Bem absoluto não é plausível e contribui, se exagerada, a dar origem àquele deplorável “choque de civilizações”, que anula qualquer possibilidade de mediação diplomática.

 

A situação da guerra na Ucrânia certamente não pode encontrar um resultado positivo se – como infelizmente ocorre até agora – forem tomadas, por ambas as partes, posições de radical intransigência. A possibilidade de uma negociação efetiva está ligada, além do abandono de julgamentos drásticos como os mencionados, à vontade de encontrar um ponto de acordo, o que pressupõe a renúncia de algo por parte de ambos os lados.

 

A distinção proposta pelo Papa João XXIII entre o pecado e o pecador (ou entre o erro e o errante) reflete o “não julgueis” evangélico, que não diz respeito tanto à ação, que deve ser avaliada com rigor e cujo conteúdo negativo deve ser denunciado com força quando necessário, mas sim ao sujeito dela, do qual não é possível conhecer a fundo a intencionalidade profunda, pois a disposição interior permanece sempre e em todo o caso envolta no mistério.

 

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