Francisco: a narrativa, esse tecido que nos une

Foto: ModaFMU

28 Mai 2022

 

Torna-se um livro o debate desenvolvido no Osservatore Romano a partir da mensagem para o Dia Mundial das Comunicações de 2020. As reflexões conclusivas do Papa.

 

A mensagem do Papa para o Dia mundial das comunicações sociais 2020 foi o ponto de partida para um amplo diálogo sobre o tema de “contar histórias” que se desenvolveu ao longo de 2020 nas colunas do “Osservatore Romano” dirigido por Andrea Monda, e que envolveu dezenas de intelectuais de todo o mundo. Agora aquele diálogo flui para o volume La tessitura del mondo. Dialogo a più voci con i grandi protagonisti della cultura sul racconto come via di salvezza (A tecedura do mundo. Diálogo a várias vozes com os grandes protagonistas da cultura sobre a narrativa como via de salvação, em tradução livre) que chega às livrarias hoje em coedição Salani / Libreria Editrice Vaticana (págs. 234, € 16,00).

 

A coletânea, editada pelo próprio Monda, é enriquecida por um inédito posfácio Sobre a narrativa do Papa Francisco, que antecipamos na íntegra nesta página e que já remete a algumas das contribuições para a reflexão coletiva.

 

O texto é publicado por Avvenire, 26-05-2022.

 

Eis o posfácio. 

 

"As histórias que contamos e recontamos e transmitimos uns aos outros são tendas sob as quais nos reunimos, estandartes a seguir na batalha, cordas indestrutíveis para conectar os vivos e os mortos, e o entrelaçamento dessas vastas tramas através dos séculos e das culturas nos liga fortemente uns aos outros e à história, guiando-nos através das gerações”. Assim escreve Donna Tartt depois de ter lido essa obra que reúne as reflexões de quarenta e quatro escritores, artistas, teólogos, jornalistas sobre o tema da narrativa. A romancista estadunidense capta com acuidade um dos pontos para onde convergem muitos dos autores desse livro: a narrativa como "tecido", feito de "cordas indestrutíveis" que conecta tudo e todos, presente e passado, e permite abrir-se para o futuro com sentimentos de confiança e esperança.

 

Este aspecto do textum (em latim para indicar "tecido" do qual o italiano e o português "texto") foi o centro da minha Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações para o ano de 2020, que foi como a centelha que gerou todas as outras reflexões aqui reunidas. De fato, de fevereiro a outubro de 2020, foram publicados nas páginas do "L'Osservatore Romano" esses textos "provocados" pela leitura daquela minha Mensagem. Pediram-me então para acrescentar uma conclusão ao final a essa rica e bela série que eu já havia lido com muito prazer à medida que era publicada ao longo dos meses. Portanto, aceitei de bom grado, desde que não fosse considerada como um "final" porque, como diz Frodo, o protagonista de O Senhor dos Anéis, de Tolkien, "os contos nunca terminam" e também porque um aspecto muito positivo desse livro é precisamente o sentido de abertura, de circularidade, de diálogo. Antes de retomar o tema do "conteúdo", de fato, gostaria de me deter brevemente no "método" desse volume: no início há uma mensagem que é lançada; essa mensagem é partilhada e oferecida à atenção de algumas pessoas que se deixam interrogar e enriquecem a mensagem com a sua contribuição; o autor da mensagem lê todas essas contribuições e relança uma nova reflexão, mais rica que a inicial, graças à contribuição de todos; finalmente, o leitor do livro entrará nesse diálogo e o acompanhará em sua vida cotidiana.

 

Aqui estão as "tendas sob as quais se reunir" de que fala Tartt, aqui está o entrelaçamento que "nos une fortemente uns aos outros" inclusive através das gerações. Tudo isso diz muito. E diz em particular que nas histórias o que conta é obviamente o falar, mas talvez ainda mais o ouvir. Esse livro é o relato de um diálogo que não termina na última página e, como diálogo, tem seu coração na escuta. Até mesmo silenciosa. Nestas páginas sobre a narrativa, percebe-se, fortemente, a presença do silêncio. Deste ponto de vista é importante que haja também um ensaio, refiro-me ao texto Tu parli anche quando taci [Você fala mesmo quando fica calado] de Massimo Grilli, dedicado diretamente ao silêncio. Quase um contraponto, um contracanto, tão essencial quanto o tema principal interpretado pelo resto da orquestra. Palavra e silêncio, juntos. E aqui quero retornar aos aspectos de conteúdo para destacar, entre os muitos possíveis (a coletânea tem sua beleza justamente na liberdade e variedade de abordagens e pontos de vista), três temas que me parecem os mais recorrentes: já ressaltei o primeiro, contar histórias como “tecedura”; o segundo está escondido na referência ao silêncio e é o tema do "mistério"; o terceiro é o tema da "compaixão".

 

O primeiro, como já disse, a tecedura, talvez seja o aspecto sobre o qual a maioria dos autores se debruça, alguns enfatizando o papel das mulheres, como Marcelo Figueroa, outros evidenciando a "flexibilidade" da tecedura das histórias "capaz de acolher em si situações sempre novas e destinatários sempre novos" (Jean-Pierre Soneto), enquanto outros como Antonella Lumini se detêm sobre a consistência "magmática" das histórias que, no entanto, "existem", têm um "consistência" e um andamento, “como as águas da nascente de um rio que depois desaguam no mar”. O tema do mistério, explicitado como sentido do limite, mas também como "magia" que intervém no momento da inspiração poética, está presente desde o primeiro texto, aquele do arquiteto Renzo Piano para o qual "nós, seres humanos, estamos todos unidos por esta consciência de um mistério que nos sobrevoa, nos supera. Isso também tem a ver com a poesia”.

 

"O que não sei, posso cantar", diz uma letra do cantor e compositor romano Francesco De Gregori entrevistado na coletânea, e os artistas, acrescenta Judith Thurman, com profunda intuição, "devem escrever não tanto sobre o que sabem, mas sobre o que não sabiam que sabiam até que o resgataram da escuridão”. O sentido do mistério abre-se para o transcendente, para uma dimensão inconfundivelmente espiritual, religiosa. Donna Tartt observa que “talvez, mais propriamente, as histórias sejam telas para velas que içamos para captar um sopro do divino. Os pensamentos de outras pessoas adquirem uma estranha vida em nós, e é por isso que a literatura é a arte mais espiritual de todas e certamente a mais transformadora. Como nenhuma outra forma de comunicação, uma história pode mudar a forma como pensamos, para melhor ou para pior [...] as culturas antigas e modernas sempre consideraram as histórias mágicas - e perigosas - por uma razão: porque se pode ouvir uma história e, ao final, virar uma pessoa totalmente diferente”.

 

E isso leva ao terceiro aspecto, a compaixão, também presente em diversos textos reunidos no volume. Em particular, a escritora Marilynne Robinson, relembrando as histórias e as canções que sua mãe lia para ela, reflete sobre a compaixão que em seu sentido mais amplo é, segundo ela, "na vida da alma, o equivalente humano da graça divina" e depois acrescenta que: "a história mostra como as narrativas são importantes para as comunidades." A literatura está, portanto, ligada à compaixão e isso leva à transformação que ocorre em toda experiência de escrita e leitura, e se dá de forma ambígua, ambivalente e, portanto, arriscada: a narrativa também pode liberar uma força negativa, manipuladora, destrutiva. A compaixão, como repito muitas vezes nos meus discursos, é uma das três características do estilo de Deus, juntamente com a proximidade e a ternura. É, portanto, uma força poderosa, e não pode ser reduzida apenas a um aspecto interior, íntimo, porque possui também uma dimensão evidentemente pública, social, de forma que a narrativa se revela como uma força da memória, portanto guardiã do passado, mas também, precisamente por isso, um fermento de transformação para o futuro. A compaixão encontra o ícone mais representativo na figura do Bom Samaritano contada no capítulo 10 do Evangelho de Lucas. Este homem tem compaixão pelo homem ferido e oferece-lhe não só cuidados e curas, mas com elas também uma outra história da sua vida que com o seu gesto "resgatou das trevas".

 

A compaixão transforma a vida dos dois protagonistas, e isso vale para cada pessoa e para cada comunidade. Essa dimensão, se preferirmos, “política” da narrativa também está muito presente nos quarenta e quatro textos do livro. Penso na reflexão de Alessandro Zaccuri que fala de Jesus como o “Messias narrador”, aparentemente desarmado, mas na realidade dotado da poderosa arma da narrativa. Assim como o romancista irlandês Colum McC-Cann que vê na narrativa “um dos meios mais poderosos que temos para mudar o nosso mundo. […] A narração é a nossa grande democracia. É aquele algo a que todos nós temos acesso. Contamos nossas histórias porque precisamos ser ouvidos. E ouvimos histórias porque precisamos pertencer. A narrativa atravessa fronteiras. Ultrapassa os limites. Estilhaça os estereótipos. E dá-nos acesso ao pleno florescimento do coração humano”. Aquela a que McCann alude é a conclusão a que chega Daniel Mendelsohn quando afirma que “A palavra é uma ponte […] através da narrativa podemos diminuir a distância que nos separa e penso que isso hoje seja mais necessário do que nunca”. Mendelsohn se refere à época em que esses textos foram escritos, sua contribuição é de abril de 2020, e indica uma referência literária precisa: o Decameron de Boccaccio, ambientado em um tempo de pestilência. Também esse livro com seus quarenta e quatro textos foi composto em tempo de pandemia e sentimos a importância, a urgência de retornar à atividade mais antiga e humana: a arte de contar histórias, ou seja, de construir pontes que possam “conectar os vivos e os mortos "para nos guiar, através dos séculos e das gerações, para um futuro a ser construído, tecido, juntos.

 

Capa do Livro: La Tessitura del Mondo. (Foto: divulgação | Vatican News)

 

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