27 Mai 2022
A partir daquilo que a Tradição da Igreja conhece como o Concílio de Jerusalém até chegar ao Concílio Vaticano II, a autoconsciência da Igreja é clara: a Igreja é chamada a se imaginar e a se produzir como aquele sujeito histórico comunial em que, no seguimento a Jesus e à escuta do Espírito, ocorre como “gérmen e início” o Reino de Deus a serviço da família humana.
A opinião é de Piero Coda, teólogo e padre italiano, ex-reitor do Instituto Universitário Sophia, de Loppiano, Itália, e membro da Comissão Teológica Internacional. O artigo foi publicado por Settimana News, 25-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Povo de Deus é convocado a um processo sinodal que nos vê engajados em todos os níveis, na vida da Igreja e em todo o mundo. Trata-se, sem dúvida, de uma grande oportunidade.
Não de uma ruptura com o passado, nem de uma aventura incauta destinada a subverter a identidade e a missão da Igreja – que é, hoje como sempre, a de testemunhar com grande impulso, com humildade e responsabilidade, o amor libertador e confraternizante de Deus em Jesus –, mas para incentivar com fidelidade, criatividade, perseverança o caminho da fé neste nosso hoje desafiador. Sinodalidade, portanto, como “processo” e como abertura ao futuro à escuta do Espírito.
Nesse contexto, o pequeno, mas estimulante livreto que temos em mãos [1] oferece uma ponderada contribuição de reflexão e proposta amadurecida a partir da experiência, da meditação e do sentir eclesial do cardeal Francesco Coccopalmerio.
A proposta – com clareza expositiva e sabedoria pedagógica conjugada nestas páginas – tem o seu foco no convite a transitar com razão, com coragem e com serena determinação, a partir do reconhecimento canônico vigente do valor simplesmente consultivo dos organismos expressivos da sinodalidade eclesiais ao reconhecimento da sua capacidade propriamente deliberativa.
A proposta – digo-o com convicção – encontra o meu consenso: tanto por causa da razão teológica da qual emana e da qual quer ser expressão, quanto pela modalidade canônica e pastoral em que é configurada concretamente.
Entre outras coisas, convidando-nos a levar em consideração – com o realismo de quem tem os pés no chão e não pretende cair na ênfase retórica fácil, mas em última análise improdutiva e contraproducente – o fato de que, se é verdade que a sinodalidade define o modus vivendi et operandi que qualifica a Igreja, ela indica, porém, ao mesmo tempo, uma realidade específica e uma atividade precisa na missão da Igreja: ”Buscar, conhecer, decidir em prol do bem da Igreja” (p. 14), por meio das diversas estruturas de sinodalidade (do Concílio Ecumênico ao Conselho Paroquial) revisadas pelo direito canônico e presentes na práxis eclesial.
Mas passemos à razão teológica, que torna pertinente e, eu diria, necessária hoje a implementação da estrutura da sinodalidade eclesial como expressão qualificadora do “sujeito comunial deliberativo” – eis a dicção proposta – que exprime adequadamente (na medida do possível às coisas humanas) a identidade e a missão do Povo de Deus.
A partir daquilo que a Tradição da Igreja conhece como o Concílio de Jerusalém até chegar ao Concílio Vaticano II, a autoconsciência da Igreja – apesar de mil idas e vindas – é clara: a Igreja, por graça e com responsabilidade, é chamada a se imaginar e a se produzir como aquele sujeito histórico comunial em que, no seguimento a Jesus e à escuta do Espírito, ocorre como “gérmen e início” o Reino de Deus a serviço da família humana.
Mas o que isso significa? Significa que, no modo de se configurar e de caminhar desse sujeito comunial, o regime é o da graça de Cristo: isto é, concretamente, o compromisso ao seguimento d’Ele no discernimento comunitário dos passos a serem dados juntos.
“Pareceu bem [eu explicitaria o grego bíblico, usado aqui por Lucas nos Atos dos Apóstolos, édoxen, traduzindo-o como: “Julgamos e decidimos”] ao Espírito e a nós...” (At 15,28). Assim é comunicada a deliberação da assembleia de Jerusalém: o “nós” diz o sujeito comunial que discerne e decide, a referência ao Espírito diz a sua identidade específica no seguimento de Cristo, que prometeu: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles” (Mt 18,20). Daí decorrem duas consequências.
A primeira: como o cardeal Coccopalmerio ressalta várias vezes e com vigor, há um caráter peculiar de encontro em Cristo entre o que é de Deus e o que é humano e histórico, que qualifica a assembleia do Povo de Deus: não só na celebração litúrgica do mistério do Senhor, a eucaristia; mas também, de forma análoga e decorrente da sua própria natureza eucarística, na assembleia que o vê reunido para discernir o caminho de seguimento e de missão e para tomar as respectivas decisões.
A segunda consequência: o sujeito comunial que é assim convocado e enviado pelo Senhor não é um sujeito uniforme e amorfo. É – segundo a conhecida metáfora paulina, derivada precisamente do contexto eucarístico – um Corpo com muitos e diversos membros. Cuja igualdade radical deriva do fato de que cada um dos membros deste Corpo e, portanto, cada um dos membros dessa assembleia é – nas palavras de Paulo – revestido pelo mesmo Cristo, isto é, tem a sua mesma dignidade e capacidade filial (conferida pelo batismo) diante de Deus e diante dos irmãos e das irmãs; e cuja diversidade é fruto do dom de Cristo e do seu Espírito, com a ativação, por meio de diversos carismas e ministérios, de diversas competências e funções: tudo para o bem comum e a serviço da sua promoção, que em uma palavra é a missão entregue por Jesus à sua Igreja.
Daí também a tarefa de quem, no seio da assembleia do Povo de Deus – e não fora ou acima dela – é chamado e capacitado por uma graça específica – conferida sacramentalmente – a exercer o ministério da orientação, não imperativa, mas comunial: em conformidade com a natureza e a missão da assembleia eclesial, em nome e em transparência do único Senhor e Mestre.
Essa é a razão teológica pela qual se deve falar da Igreja como sujeito comunial e se deve reconhecer a tal sujeito comunial a capacidade (em sentido canônico) da deliberação: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós...”.
Mas de que modo? De acordo com qual práxis?
A legislação canônica hoje em vigor – sabemos – qualifica como voto “tantum consultivum” a contribuição que os membros dos vários organizamos sinodais podem ou, melhor, devem oferecer à deliberação que está reservada a quem preside tais organismos. Mas com uma exceção: a do Concílio Ecumênico, cujas decisões são tomadas com base na maioria dos votos, que devem conter o voto concordante do bispo de Roma, o papa, livremente expressado por ele na sua qualidade de chefe do Colégio dos Bispos, sem o qual o Colégio como tal não existe (cf. cân. 341 § 1).
Esse modelo – na verdade, na sua substância teologal, tão antigo quanto a Igreja – expressa adequadamente, também no nível da deliberação, a identidade específica daquele sujeito comunial que a Igreja é precisamente no seguimento de Cristo à escuta do seu Espírito.
Mas no caso dos outros organismos expressivos da sinodalidade não é assim. Por quê? O cardeal Coccopalmerio formula a esse respeito aquela que ele define como uma “estranha ideia”, que na verdade, a meu ver, não é estranha, mas vai à raiz do problema: “[A ideia é] que o legislador canônico sinta um espontâneo medo de adotar o esquema do deliberativo [em referência aos organismos sinodais que não são o Concílio Ecumênico] e por tal motivo opte por se ater ao do consultivo para evitar que as estruturas de sinodalidade procedem sem o pastor. Se, de fato, se optasse por adotar o voto deliberativo, seria muito fácil interpretá-lo de modo civilístico, ou seja, de tal modo que, para tomar uma decisão válida, seria suficiente a maioria dos votos, mesmo que esta maioria não contivesse o voto concordante do pastor” (p. 80).
Cipriano de Cartago, no século III, já convidava ao respeito pela natureza comunial específica, em Cristo, da Igreja com um tríplice “nihil sine”: “Nada sem o bispo, nada sem o conselho dos presbíteros, nada sem o consentimento do povo” (Ep. 14,4). Onde se rompe essa lógica do “nihil sine”, rompe-se a identidade específica e a missão da Igreja. De fato, é um exercício de comunhão ordenada e de exigente discernimento e orientação comunitária aquele que, com o tríplice “nihil sine”, é exigido como expressão de obediência à graça de Cristo.
Em última análise, a questão é dupla: por um lado, amadurecer a consciência, no rastro do Vaticano II, da subjetividade de todos na Igreja ao compor um único e articulado sujeito comunial; por outro lado, especificar e normatizar a práxis de deliberação de tal sujeito segundo uma modalidade que seja uma expressão específica e qualificada da eclesialidade.
Assim explica o cardeal Coccopalmerio: “No deliberativo eclesial, cada fiel de um sujeito comunial deliberante realiza um ato de vontade e o expressa por meio de um voto, calcula-se a maioria dos votos, mas, neste ponto, para que haja efetivamente a decisão do sujeito comunial, não é suficiente que haja a maioria dos votos (tal seria o deliberativo civilístico), mas é requisito essencial que, na maioria dos votos, esteja contido o voto concordante do pastor, livremente expressado por ele na sua qualidade de chefe (tal é o deliberativo eclesial)”. (pág. 78)
Concordo que chegou a hora de dar esse passo. Sem esquecer o que diz o Papa Francisco: “Sínodo é o que Deus espera da Igreja no terceiro milênio”.
Não nos próximos dois anos… mas em um caminho que é aberto ao futuro. Um caminho longo e exigente, sem dúvida, que, por isso, deve ser percorrido com confiança e com um bom ritmo: para que amadureçam essa consciência e essa figura da Igreja, é necessário empenhar-se em uma formação adequada e renovada de todos, na Igreja, ao seguimento e ao discernimento comunitário do pensamento de Cristo. A começar por quem é chamado a presidir na caridade e em espírito de serviço.
1. F. Coccopalmerio. Sinodalità ecclesiale “a responsabilità limitata” o dal consultivo al deliberativo? A colloquio con padre Lorenzo Prezzi e nel ricordo del cardinale Carlo Maria Martini. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2021.
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Sinodalidade: a necessidade de um sujeito comunial deliberativo. Artigo de Piero Coda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU