16 Mai 2022
Lavoura destinada à alimentação direta perde espaço para alimentação animal e commodities, acendendo alerta da desnutrição até 2030 em vários países; estudo aponta que, em vez de abrir mais áreas, é preciso investir em políticas públicas e em produtividade.
A reportagem é publicada por EcoDebate, 13-05-2022.
Em trabalho de cooperação internacional, a pesquisadora no IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) Andrea Garcia integra um grupo de cientistas que mapeou os 10 principais produtos agrícolas do mundo e sua destinação. A descoberta acende um sinal de alerta para a desnutrição em vários países, mostrando que plantações com uso direto de alimento são insuficientes para cumprir com o segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU (Organização das Nações Unidas). A meta diz respeito à segurança alimentar para todas as pessoas até 2030.
O estudo foi publicado nesta quinta, 12, pela revista científica Nature Food, em um contexto de acirramento de disputas pelo uso da terra e pelo uso de culturas no Brasil e no mundo. Entre os autores, além da brasileira, estão pesquisadores da Universidade de Minnesota, da Universidade de Delaware e do World Resources Institute, nos Estados Unidos, da Universidade Agrícola de Jiangxi e da Universidade de Pequim, na China.
Cevada, mandioca, milho, óleo de palma, canola, arroz, sorgo, soja, cana-de-açúcar e trigo são as dez principais culturas globais e representam atualmente mais de 80% de todas as calorias das culturas em colheita. Ocorre que nem todas essas calorias e nutrientes colhidos são usados para consumo direto de alimentos por pessoas.
Desde a década de 1960, mostram os mapas da pesquisa, a fração de culturas colhidas para consumo direto de alimentos diminuiu, enquanto a colheita para processamento (ração animal, xarope de milho rico em frutose, óleos hidrogenados), exportação e uso industrial (etanol, bioplásticos, produtos farmacêuticos) aumentou globalmente. Se a tendência continuar até 2030, apenas 26% das calorias globais colhidas poderão ser para consumo direto de alimentos.
A produção agrícola brasileira voltada à alimentação direta nos anos 60 ocorreu com maior proporção de terras destinadas a esse uso no interior do país – padrão que foi alterado no Brasil na década de 2010, para maior destinação de áreas agrícolas à indústria. Inversão que reflete a onda de commodities, apontam os autores, acompanhando um tipo de produção que antes só aparecia na costa do país. No Centro-Oeste, a lavoura que viraria comida passou a se voltar ao processamento e à exportação. Nas regiões Nordeste e Sudeste, a cultura se direcionou também ao processamento e à alimentação animal.
Em Mato Grosso, a cidade de Nova Ubiratã está em uma das regiões com significativa destinação da produção agrícola de consumo direto para exportação e para alimentação animal. Enquanto a produção de mandioca, item que tem no município 35% da produção destinada à alimentação direta, foi de 1.748 toneladas, a produção de soja, com 1% destinada à alimentação direta, foi de quase 1,5 milhões de toneladas em 2020.
“Nossa mensagem principal é que a expansão agrícola não é a solução para a segurança alimentar mundial. São necessárias políticas muito bem construídas para a intensificação da produção de alimentos e a destinação do que é produzido na agricultura, de forma a garantir a segurança alimentar das pessoas que vivem em todos os países”, diz Garcia.
O aumento da riqueza e a crescente demanda da classe média por alimentos processados, carne, laticínios e outras commodities estão criando uma pressão crescente para que produtores agrícolas se especializem em culturas de alto rendimento, cultivadas para outros usos que não o consumo direto de alimentos. Na medida em que o setor responde às expectativas de consumo, indica o estudo, populações sob insegurança alimentar seguem sendo negligenciadas – especialmente em áreas nas quais a pobreza também se faz presente na vida dessas pessoas, como regiões de África, América Central e Ásia.
A pesquisa estima que pelo menos 31 países provavelmente deixarão de atender às suas necessidades alimentares até 2030, mesmo que todas as calorias colhidas no país sejam destinadas para o consumo direto de alimentos. Entre eles estão África do Sul, Arábia Saudita, Haiti, Iraque e Taiwan. Outros 17 países não serão capazes de atender às demandas alimentares de seu crescimento populacional esperado no mesmo período, o que poderá piorar a insegurança alimentar em suas populações – como Chile, Espanha, Moçambique, Nova Zelândia e Portugal. O Brasil está fora das duas projeções, mantendo-se autossuficiente na produção de alimentos.
“Os mapas podem ser usados para primeiro entender por que fazemos colheitas em todo o mundo e ver como isso mudou e está mudando ainda mais”, comenta o pesquisador sênior na Universidade de Minnesota Deepak Ray, primeiro autor do artigo. “Com essas informações, podemos começar a criar políticas sólidas que atendam às necessidades de segurança alimentar em nível global e local, embora não seja fácil. Mas pelo menos agora temos um ponto de partida para ver a agricultura como ela realmente é”.
Pensar em soluções para a insegurança alimentar global pode envolver a proposta do uso de mais terra para a produção agrícola de alimentos, o que levaria a mais perdas de paisagens naturais e de seus serviços ecológicos e de sustentabilidade, trazendo para a pauta uma outra questão: a da produtividade das culturas.
“A área destinada para produção de comida segue mais alta que outros usos, mas, ao mesmo tempo, é uma tendência de declínio, enquanto outros usos têm tendência de expansão. É interessante olhar a produtividade, ou seja, o quanto se produz por hectare. Isso está relacionado às políticas públicas e ao setor privado. Os usos que não são diretamente para comida têm maior ampliação da produtividade, com indicativo de aumentar ainda mais, o que nos mostra quais são os modelos de produção prioritários aos investimentos hoje”, explica Garcia.
Mesmo que lavouras com uso para alimentação animal possam ter parte das calorias direcionadas à alimentação humana, há uma perda energética de 2,5 a 25 vezes nesse processo, se comparado à destinação direta da produção à alimentação humana. “Muitas dessas calorias destinadas à alimentação animal são transformadas e redestinadas como produtos alimentícios, porém, acompanhados de uma grande perda energética. Assim, não consideramos no estudo como uma destinação direta de alimento”. Garcia reforça a necessidade de revisão de políticas internas, tanto de destinação de produtos agrícolas, como de financiamento de pesquisas em produtividade agrícola de países produtores.
O estudo destaca países conforme o que é produzido em seus territórios e desconsidera dinâmicas de importação e exportação. “Países que são grandes produtores, como no caso do Brasil, têm uma taxa de importação que é relativamente baixa para apresentar algum impacto significativo nesses cálculos”, diz a pesquisadora. Contextos de guerra, como o vivenciado atualmente, alteram a produção e o comércio agrícola, colocando em posição sensível países que dependem mais de importações.
Diretor executivo no IPAM, André Guimarães projeta o potencial do Brasil no cenário global. “Com a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], universidades de Agronomia e outros centros de pesquisa, passamos de um país importador para sermos um dos maiores produtores e exportadores de commodities agrícolas do mundo, em 50 anos. Deveríamos estar usando essa capacidade científica para ampliar nossa produção de alimentos e posicionar o Brasil como parte da solução desse desafio futuro”.
Ray, D.K., Sloat, L.L., Garcia, A.S. et al. Crop harvests for direct food use insufficient to meet the UN’s food security goal. Nat Food (2022). Disponível aqui.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Lavoura destinada à alimentação direta perde espaço para commodities - Instituto Humanitas Unisinos - IHU