A reforma da Cúria em perspectiva histórica. Artigo de Massimo Faggioli

Foto: Vatican Media

30 Março 2022

 

Não há nenhuma revolução de Francisco na nova arquitetura da Cúria Romana. Fiel a si mesmo, o papa jesuíta acredita mais em reformas que não dependam de mudanças estruturais e institucionais.

 

A análise é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por La Croix International, 29-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Segundo ele, "a nova constituição apostólica é um dos atos legislativos mais importantes que Francisco realizou desde a sua eleição em 2013. Mas é cedo para dizer se ela mudará fundamentalmente a Cúria Romana como as reformas de 1588 (depois de Trento), de 1908 (depois da queda dos Estados Papais) e de 1967 (depois do Vaticano II)".

 

"A Praedicate Evangelium chega em um momento que lembra aquele período de transição na primeira metade do século XIX - recorda o historiador. Ele se seguiu à tempestade da Revolução Francesa e à ocupação final de Roma por Napoleão (1849) e durou até 1870, com a queda dos Estados Papais, que na história da Cúria foi uma mudança ainda mais cheia de consequências do que o Vaticano II".

 

E assegura:

 

"Mas não há dúvida de que a Praedicate Evangelium é uma reforma da Cúria Romana típica da Igreja pós-Vaticano II".

 

Eis o texto.

 

Nos últimos dois séculos, especialmente desde a era das revoluções políticas iniciadas no fim de 1800, o papado tem sido submetido a vários tipos de pressões sociais e culturais para se reformar. E isso inclui a reforma da Cúria Romana.

 

No preâmbulo da sua nova constituição apostólica, Praedicate Evangelium, o Papa Francisco menciona as datas mais importantes da história da Cúria Romana: a sua fundação na dispensação moderna em 1588 e as reformas que se seguiram desde então – por Pio X em 1908, Paulo VI em 1967 e João Paulo II em 1988.

 

A última reforma que Francisco acaba de realizar só pode ser entendida nessa perspectiva histórica.

 

Em primeiro lugar, deve-se notar que a estrutura básica da Cúria Romana que é explicitada na Praedicate Evangelium é notavelmente semelhante à que Sisto V criou no século XVI após o Concílio de Trento (1545-1563).

 

Uma mudança é que não há mais um dicastério superior a todos os outros. Era o Santo Ofício no século XVI, depois tornou-se a Congregação Consistorial (para a nomeação dos bispos) depois de 1908, enquanto Paulo VI colocou a Secretaria de Estado no topo do organograma.

 

Agora, existe uma igualdade declarada entre todos os dicastérios.

 

Falar de “revolução” é prematuro

 

Mas não há nenhuma revolução de Francisco na arquitetura da Cúria Romana.

 

Fiel a si mesmo, o papa jesuíta acredita mais em reformas que não dependam de mudanças estruturais e institucionais. Há uma mudança de nomes de congregações para dicastérios, mas ainda é uma estrutura centrada no sistema das chamadas congregações permanentes.

 

É diferente do modelo das congregações ad hoc que era dominante antes de 1588 e foi substituído pelo sistema atual, mas que sobreviveu em algumas formas até o século XIX.

 

Essa transição para departamentos permanentes, cada um liderado por um cardeal ou um bispo, solidificou-se entre o fim do século XIX e o início do século XX com o desaparecimento do sistema das congregações ad hoc.

 

A Praedicate Evangelium continua nessa trajetória, levando a uma profissionalização das elites administrativas, mas também dando menos espaço para consultas colegiais entre os cardeais em Roma.

 

Apesar da intenção declarada de reduzir o número de dicastérios, a expansão da burocracia vaticana continua.

 

Veremos os efeitos no número total de empregados somente após a nova constituição entrar em vigor no dia 5 de junho de 2022 e após os departamentos permanentes – que são mais do que antes – serem oficialmente criados.

 

A Praedicate Evangelium lista 28 departamentos permanentes – desde dicastérios, tribunais, escritórios e unidades de atividades econômicas e financeiras. A Pastor bonus, de João Paulo II, de 1988, elencava 24 entidades. O aumento do número não é uma surpresa.

 

Da defesa da doutrina à pregação do Evangelho

 

É interessante ver que o primeiro dicastério da lista não é mais o escritório encarregado da ortodoxia – o Dicastério (não mais Congregação) para a Doutrina da Fé. O Santo Ofício, como era chamado anteriormente, era considerado como a principal entidade da Cúria Romana desde o século XVI.

 

Mas o número um da lista agora é o Dicastério para a Evangelização. Isso ocorre exatamente 400 anos depois de a sua antecessora – a Congregação da Propaganda Fide – ter sido fundada em 1622 e logo se tornar um dos escritórios mais poderosos da história da Cúria Romana.

 

A Praedicate Evangelium também estabelece um novo Dicastério para o Serviço da Caridade. Não havia nenhum paralelo a isso até agora.

 

O que não é novo é o nome e a função das entidades financeiras: nesse sentido, a reforma da Cúria de Francisco é uma reforma gradual, que tem sido feita passo a passo ao longo dos últimos anos, sem seguir nenhum tipo de plano diretor.

 

Mas é importante notar que a Secretaria para a Economia não está entre os dicastérios de primeira classe: esse é um dos efeitos e uma das respostas às tentativas fracassadas do cardeal George Pell de elevar essa secretaria ao nível da Secretaria de Estado.

 

A maior mudança, e que tem sido saudada (às vezes ingenuamente) como revolucionária pela grande mídia, diz respeito à possibilidade de ver mais leigos e leigas em postos-chave no Vaticano.

 

São necessárias algumas palavras de cautela aqui.

 

Realismo com as expectativas

 

A primeira palavra de cautela: uma das maiores novidades da reforma de Paulo VI em 1967 foi a internacionalização da Cúria Romana. Isto é, trazer mais pessoal não italiano em um sistema que os italianos dominavam há séculos.

 

À sua maneira, era um pedido proveniente do Vaticano II e dificilmente poderia ter sido evitado. Sabemos que, no último meio século, a internacionalização nos trouxe resultados mistos.

 

Agora, uma das maiores novidades da reforma da Cúria de Francisco é a possibilidade de ter leigos e especialmente mulheres no comando dos dicastérios. Isso é potencialmente revolucionário. Mas as leituras ideológicas disso podem gerar expectativas injustificadas.

 

Será interessante ver como será aplicado o critério da competência, mencionado especialmente no parágrafo 129 sobre os leigos e leigas: competência sobre o que e comparada a quem?

 

Para muitos dicastérios, fica claro que as pessoas mais competentes do ponto de vista profissional seriam homens e mulheres leigos, mas há uma questão de equilíbrio entre as identidades laical e clerical que não pode ser resolvida em termos tecnocráticos de mérito.

 

A contratação de empregados e administradores leigos nas universidades pontifícias de Roma e nas universidades católicas dos Estados Unidos é um exemplo interessante.

 

Além disso, a Praedicate Evangelium não indica nenhum padrão de compensação para especialistas nomeados para funções administrativas do Vaticano.

 

A contratação de leigos e leigas que trabalham na administração eclesiástica também significa um custo mais alto de pessoal em comparação com aqueles de status clerical, que recebem uma renda suplementar de suas dioceses ou ordens religiosas.

 

Poderia haver outros problemas, por exemplo, se os membros ou líderes da Cúria Romana leigos e leigas viessem dos novos movimentos católicos com sede em Roma.

 

Eles poderiam fornecer leigos e leigas católicos competentes, mas não exatamente representativos do católico médio na Igreja global.

 

O fato é que o termo “católico leigo” hoje significa coisas muito diferentes do tempo do Vaticano II.

 

O risco de uma burocracia subserviente

 

Uma segunda palavra de cautela: durante a coletiva de imprensa de apresentação da Praedicate Evangelium, um dos principais canonistas de Roma, Gianfranco Ghirlanda SJ, disse que ter leigos e mulheres em papéis-chave na Cúria Romana é possível por meio de uma reinterpretação do cânone 129 do Código de Direito Canônico.

 

Esse cânone permite que apenas padres, aqueles que foram ordenados sacramentalmente ao presbiterado, exerçam o poder de jurisdição na Igreja.

 

Mas a Praedicate Evangelium diz que tal jurisdição é exercida após receber a “missão canônica” das autoridades da Igreja, e não a partir da ordenação sacramental.

 

Essa pode ser uma mudança positiva, mas também traz riscos. Ocupar uma determinada posição por causa do poder que vem do sacramento dá também alguma independência em relação à Igreja institucional (há séculos de debates sobre isso, também no Vaticano II, sobre a natureza do episcopado).

 

O resultado perverso das novas interpretações poderia ser um pessoal da Cúria Romana formado por leigos e leigas, mas dentro de um sistema eclesiástico de fidelidade e obediência típico de uma burocracia mais subserviente, e não menos.

 

A Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores não está mais presa no limbo institucional em relação à Cúria Romana em que estava desde 2014, quando Francisco a criou.

 

Agora, ela faz parte do Dicastério para a Doutrina da Fé. Teremos que esperar para ver se essa mudança ajuda ou não a autoridade e a independência da comissão.

 

Mudanças no papel e na função da Secretaria de Estado

 

Um ponto-chave será o papel da Secretaria de Estado. Parece que Francisco optou por reduzir o seu papel em comparação com a proeminência absoluta que Paulo VI lhe deu em 1967.

 

Todos os dicastérios estão agora no mesmo nível, e a função tradicional da Secretaria de Estado como “diretora de trânsito” ou o seu papel de filtro se perderam ou se enfraqueceram. Não está claro se isso vai agilizar o trabalho da Cúria ou não.

 

Além disso, de acordo com a Praedicate Evangelium, o secretário de Estado não precisa ser cardeal e nem mesmo padre.

 

Mas é difícil imaginar um secretário de Estado leigo ou leiga, porque ele ou ela teria que lidar, em nome do papa, com bispos e cardeais a partir de uma posição de inferioridade hierárquica.

 

O fato é que a figura do secretário de Estado do Vaticano não tem nada de semelhante com as chancelarias das outras Igrejas cristãs, particularmente na Ortodoxia oriental.

 

A Secretaria de Estado representa uma das características do governo da Igreja Católica, a mais global e “política” de todas as Igrejas.

 

Quando o papado perdeu o seu poder temporal em 1870 com a queda dos Estados Papais, ele não abriu mão de todas as suas instituições de estilo estatal. E uma outra questão importante obviamente não abordada pela constituição apostólica é até que ponto a Secretaria de Estado continuará sendo italiana.

 

Por mais impopular que isso possa parecer, ser italiano ajudou os secretários de Estado a navegarem nas águas turbulentas da política intravaticana, eclesiástica e secular. Mas também os tornou mais sujeitos a uma interpretação paroquial do seu papel (veja-se o caso do cardeal Tarcisio Bertone, 2006-2013).

 

Experiências recentes de não italianos no comando da Secretaria de Estado faziam mais sentido com um papa italiano (veja-se o cardeal Jean-Marie Villot, 1969-1979). Mas é muito mais provável que haja mais secretários de Estado não italianos em vez de leigos.

 

O exercício do primado papal

 

Uma das maiores surpresas é que a Praedicate Evangelium nunca menciona o “Conselho de Cardeais”, órgão que Francisco criou em abril de 2013, exatamente quatro semanas após a sua eleição.

 

A decisão de não incluir o “conselho privado” na nova constituição apostólica garantiu à velha guarda do Vaticano que o papa implementou uma reforma, e não uma revolução.

 

Criar um papel permanente para um “Conselho de Cardeais” que ajuda o papa a governar a Igreja e a Cúria estaria mais perto de uma mudança revolucionária.

 

Também teria sido uma forma de ser fiel a um dos pedidos formulados durante o Vaticano II, que Paulo VI interpretou, mas de certa forma traiu com a sua decisão de criar o Sínodo dos Bispos em 1965.

 

Isso também significa que Francisco concedeu a seu(s) sucessor(es) a liberdade de decidir se continua ou não havendo o “Conselho de Cardeais”.

 

Em geral, a relação entre o papa, os cardeais e a Cúria tem sido historicamente complexa.

 

Tanto a Cúria Romana quanto o Sínodo dos Bispos são extensões do primado papal. Ainda não está claro como a relação entre a Cúria e o Sínodo pode mudar com a Praedicate Evangelium.

 

Será especialmente importante observar as etapas seguintes e finais do processo sinodal que levará à assembleia do Sínodo dos Bispos de outubro de 2023. O objetivo declarado do papa ao introduzir esse processo é fazer da sinodalidade uma nova forma de ser Igreja.

 

Há também um ponto de interrogação semelhante sobre a relação entre as reuniões de todos os prefeitos da Cúria, o secretário de Estado e o Consistório de todos os cardeais do mundo, que o papa pode convocar (Francisco o fez apenas uma vez, em 2014) para discutir particularmente questões importantes (cf. Praedicate Evangelium, parágrafos 34-35).

 

Finalmente, será interessante saber como a nova Cúria responderá às demandas por uma forma mais sinodal de preparar as visitas “ad limina” dos bispos diocesanos a Roma uma vez a cada cinco anos e as nomeações episcopais.

 

Os australianos, por exemplo, pediram isso no contexto do Concílio Plenário que está sendo celebrado em seu país. Resta saber como a aplicação da Praedicate Evangelium responderá a essas propostas.

 

Reforma em um tempo de transição

 

Em conclusão, a nova constituição apostólica é um dos atos legislativos mais importantes que Francisco realizou desde a sua eleição em 2013.

 

Mas é cedo para dizer se ela mudará fundamentalmente a Cúria Romana como as reformas de 1588 (depois de Trento), de 1908 (depois da queda dos Estados Papais) e de 1967 (depois do Vaticano II).

 

Muito dependerá dos estatutos dos dicastérios individuais e das pessoas que serão contratadas para trabalhar em todos os níveis. Também dependerá do tipo de bispos que serão nomeados em todo o mundo e que terão que interagir com a Cúria a partir de suas dioceses e conferências episcopais.

 

A Praedicate Evangelium chega em um momento que lembra aquele período de transição na primeira metade do século XIX.

 

Ele se seguiu à tempestade da Revolução Francesa e à ocupação final de Roma por Napoleão (1849) e durou até 1870, com a queda dos Estados Papais, que na história da Cúria foi uma mudança ainda mais cheia de consequências do que o Vaticano II.

 

Mas não há dúvida de que a Praedicate Evangelium é uma reforma da Cúria Romana típica da Igreja pós-Vaticano II.

 

Ela abrange todas as incertezas da teologia católica sobre as instituições, que ainda tenta encontrar um equilíbrio entre urbs e orbis, primado e episcopado, burocracia e carisma.

 

É interessante notar que essa reforma foi publicada no meio do “processo sinodal”, e não depois. Mas evidentemente também era uma prioridade publicar a constituição apostólica antes do fim do pontificado e do próximo conclave.

 

Sinodalidade com uma Cúria mais papal

 

Existem algumas tensões positivas e algumas possíveis contradições. A sinodalidade é um conceito-chave para o pontificado de Francisco, mas a Cúria Romana se baseia em um “sistema consistorial” – que estava em vigor antes do conceito moderno baseado nas Congregações ou dicastérios.

 

Ela era mais “sinodal” do que a que veio depois de 1588, na qual todos prestam contas ao papa, mas em um sistema de silos.

 

A Cúria que é imaginada e mapeada pela Praedicate Evangelium pode se tornar menos romana e menos clerical, mas certamente será uma Cúria mais papal.

 

Lembremos que esta reforma ocorreu e deve funcionar no contexto de um Colégio de Cardeais que é globalmente mais diversificado do que nunca.

 

Individualmente, os cardeais de hoje estão mais próximos de Francisco, mas também estão mais distantes física e culturalmente de Roma. Isso terá um impacto na forma como a Cúria Romana se comporta em relação à Igreja das “periferias”.

 

A Cúria mudou ao longo da história, mas muitas dessas mudanças ocorreram não apenas por causa de ideias teológicas ou de lutas de poder na Igreja.

 

Elas ocorreram também por causa de eventos mundiais: guerras (na Europa no século XIX), crises financeiras (por exemplo, a grande depressão de 1929), descolonização (não menos influente do que o Vaticano II).

 

Nesse sentido, é interessante que a possível diminuição do papel do secretário de Estado ocorra em um momento em que, por causa da guerra na Ucrânia, seu papel de coordenação e de ajuda ao papa é mais importante do que oito anos atrás, quando começaram as discussões sobre uma nova constituição apostólica.

 

Uma lição da história

 

Muito ainda está para ser visto. Mas pode ser útil voltar novamente à história.

 

O ano era 1814, e um padre romano chamado Mons. Giuseppe Antonio Sala enviou um memorando sobre a reforma curial ao Papa Pio VII.

 

Sala era especialista na administração do Vaticano e ofereceu ao papa uma leitura pragmática do pós-Revolução Francesa como um modo de reformar a Cúria Romana com base em princípios modernos de governo e administração.

 

“O público acreditava, e os bons esperavam com impaciência, que, depois das duras lições recebidas no decurso da Democracia, começaria uma nova ordem de coisas tanto no sistema religioso, quanto no sistema político”, disse ele.

 

“Uns e outros, porém, ficaram desiludidos. Exceto por algumas reformas mais aparentes do que substanciais, mais econômicas do que eclesiásticas, pulularam imediatamente de novo as antigas desordens, e se acrescentaram novas ainda”, observou Sala.

 

As mudanças radicais que ele e outros esperavam se materializaram apenas muitas décadas depois, e principalmente na forma de consequências não intencionais por causa da queda dos Estados Papais em 1870.

 

Somente com o passar do tempo é que conseguiremos ver se os efeitos reais da Praedicate Evangelium corresponderão às nossas expectativas de uma nova ordem de coisas na Praedicate Evangelium.

 

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