22 Março 2022
"A reforma inaugura uma Cúria mais leve, marcada por uma "disposição vicária" em relação ao Papa, aos bispos diocesanos e suas conferências", escreve o historiador italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 21-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma das questões mais espinhosas para o Papa Francisco, que comemora nove anos de pontificado, é a administração do Vaticano. Antes do conclave de 2013, em que foi eleito, os cardeais criticaram a Cúria, especialmente a gestão da Secretaria de Estado. Bergoglio assumiu o "mandato" de reformá-la. O primeiro passo foi criar um conselho de cardeais para este trabalho e para discutir os problemas da Igreja. Já uma reforma: quase um sínodo permanente, endemousa – diz-se nas Igrejas orientais – para acompanhar o primaz no governo. Em vez disso, foi o lugar onde elaborar a Constituição sobre a Cúria, Praedicate Evangelium, publicada anteontem. Demorou nove anos (a reforma de Paulo VI, gerida por ele e por técnicos, levou dois anos). Francisco lembrou a brincadeira de Monsenhor de Mérode, ministro das armas de Pio IX e grande gestor imobiliário: "Fazer reformas em Roma é como limpar a Esfinge do Egito com uma escova de dentes".
A Cúria é a mais antiga instituição europeia, que tem suas raízes no governo papal bem antes do ano mil. Em 1588 Sisto V a reorganizou. No século XX houve três reformas: em 1908 com Pio X, com Paulo VI em 1967 depois do Concílio e, finalmente, com João Paulo II em 1988. Francisco teve que lidar com uma Cúria bastante cansada, como havia se perfilado nos últimos anos de Wojtyla, mas também com o esgotamento de uma classe dirigente ativa que surgiu entre o Concílio e o pós-Concílio, que contava com personalidades como o Cardeal Etchegaray, ator humanitário nas fronteiras do mundo ou grandes diplomatas como Casaroli e Silvestrini.
O problema não é só a reforma das instituições, mas também da classe dirigente, questão comum às classes políticas de hoje, mas em particular para os eclesiásticos, em um tempo em que o mundo religioso está se "desculturalizando". A cultura não é algo livresco, mas um sentido do mundo e da história. Francisco exorta a Igreja a "sair", o que significa confronto com a realidade: aqui sua polêmica contra o clericalismo. Em Buenos Aires, ecoando Wojtyla, insistia no "criar cultura": "Uma fé que não se torna cultura não é uma verdadeira fé". A cultura é um alfabeto necessário quando nos medimos com uma realidade global e diferenciada.
Uma forte inserção de leigos (preconizada pela reforma: "Qualquer fiel pode presidir um dicastério ou órgão", ainda que com limitações) pode introduzir novas competências. O texto insiste em seu papel em relação ao "Evangelho como fermento das realidades temporais" e ao "discernimento dos sinais dos tempos". Esta última é uma expressão conciliar que significa uma Igreja na história. De fato, em uma Europa onde se combate como nunca antes desde 1945, várias Igrejas estão experimentando uma introversão: a alemã, tomada por conflitos na "estrada sinodal" ou a francesa, sacudida pelos escândalos do clero, enquanto outras fazem ouvir alguns murmúrios.
Além da espiritualidade dos curiais, a reforma insiste no "profissionalismo", expressão nova no léxico curial. Além disso, a limitação do mandato a cinco anos (renováveis) para os eclesiásticos não favorece o acúmulo de experiência resultante de “carreiras” nas instituições. Basta pensar no cardeal Casaroli, que entrou para a Secretaria como arquivista em 1940 e saiu como secretário de Estado cinquenta anos depois, em 1990, sem nunca ter tido um cargo fora de Roma. Ainda assim, ele foi uma personalidade cuja experiência foi preciosa. Por outro lado, entende-se a vontade da reforma de evitar uma classe curial fechada.
Não é a Cúria de Paulo VI, na qual o antigo pró-secretário Montini atribuía uma função guia à Secretaria de Estado, quase uma presidência do Conselho. Enquanto a reunião dos chefes de dicastério perfilava um Conselho dos Ministros (posteriormente não implementado). Era um modelo semelhante ao presidencialismo francês. A reforma inaugura uma Cúria mais leve, marcada por uma "disposição vicária" em relação ao Papa, aos bispos diocesanos e suas conferências. Alerta-se: "A Cúria Romana não se coloca entre o Papa e os bispos, mas sim ao serviço de ambos...". Nas instituições coloca-se ao lado do impulso para a “convergência” na transversalidade e no debate interno para um “funcionamento disciplinado e eficaz”. Novidade é a criação de um dicastério para o serviço da caridade, que representa a iniciativa do Papa para com os pobres do mundo, expresso na superação de um empenho demasiado institucionalizado nas organizações católicas.
Um problema permanece. A Cúria Romana não é uma organização do tipo ONU. A internacionalidade cruza-se com a romanidade. Que relação com a Igreja de Roma? Recomenda-se aos clérigos que tratem do "cuidado das almas", uma tradição dos curiais (o cardeal Parolin segue a Villa Nazaret).
Mas há uma osmose a ser recriada entre a Cúria e Roma, que durante o século XX se dissolveu parcialmente, para que a Cúria tenha um caráter "pastoral" e redescubra suas raízes numa Igreja, que a torna romana.
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A Constituição de Francisco cria o ministério da caridade. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU