O árduo resgate do erótico e do crítico. Entrevista com Franco Bifo Berardi

Foto: Anthony Ross | Wikimedia Commons

18 Março 2022

 

Filósofo autonomista provoca: hiperaceleração digital devasta tanto as sugestões amorosas quanto o tempo necessário para enxergar e refletir sobre o mundo. Mas não há saída sem o contato entre os corpos, em sua dimensão sensual e política.

 

No início da década de 1970, Pier Paolo Pasolini falava em “mutação antropológica” para se referir aos efeitos que a penetração da cultura de consumo causava na Itália. O consumo atingiu e alterou camadas do ser que nem mesmo o fascismo havia tocado. Todas as respostas – da política, da cultura, da filosofia – tiveram que ser repensadas à luz dos acontecimentos, segundo o poeta-cineasta.

 

Em seu último livro “Fenomenologia do Fim”, obra de mais de 15 anos, Franco Berardi (Bifo), filósofo e participante ativo dos movimentos autônomos italianos desde a década de 1970, descreve a “mutação antropológica” de nossos dias: o impacto das tecnologias digitais sobre nossa percepção e nossa sensibilidade. O que é sensibilidade? É a capacidade de interpretar sinais não discursivos e não codificados. Bem, essa capacidade está sendo atrofiada pela nossa exposição a tecnologias digitais, que funcionam de acordo com uma lógica altamente formatada, uma lógica de código.

 

Tudo deve ser repensado, afirma também Bifo, e o alcance da mutação digital também é muito profundo. A atrofia da sensibilidade implica uma atrofia da empatia, que é a capacidade de “sentir com”, de sentir o outro como extensão da minha existência e do meu corpo. A base sensata da solidariedade. Quais monstros habitam essa dessensibilização radical? Como é possível repensar, criar e lutar em condições de transformação radical da percepção? Que tipo de ser humano estamos nos tornando?

 

A entrevista é de Amador Fernández-Salvater, publicada por Rebelión. A versão em português foi traduzida por Vitor Costa e publicada por Outras Palavras, 11-03-2022.

 

Eis a entrevista.

 

Uma epidemia de descortesia

 

Ao contrário de suas outras obras, eu diria que este é um livro sobre estética, ao invés de um livro político. Um livro onde a estética está em primeiro plano e, em todo caso, a política é redefinida como uma questão estética, como algo relacionado a nossa percepção e que afeta nossa sensibilidade. Está de acordo?

Sim, o significado da palavra “estética” é muito amplo: é a ciência da percepção, etc. Mas me parece que a estética também deve ser erótica: a compreensão da relação entre os corpos. Parece-me que essa dialética entre estética e erótica é central para compreender a mutação contemporânea. Como a mutação digital modifica a percepção estética e a percepção erótica? Esse é o objetivo do meu livro.

Hoje vivemos uma mudança de percepção erótica do corpo do outro para uma percepção cada vez mais informatizada: o corpo do outro nos aparece como signo, como informação. Esta mutação tem um forte componente patogênico. É uma mutação que produz muito sofrimento, efeitos de pânico e depressão devido à abertura desse organismo sensível que somos a uma supersaturação de estímulos, chegando finalmente a uma paralisia do corpo erótico.

 

 

 

No centro do seu livro estão dois conceitos principais: “lógica conjuntiva” e “lógica conectiva”. Você diz que a mutação atual é explicada pela passagem da primeira para a segunda. Explique melhor pra gente?

 

A conjunção é uma dimensão interpretativa vibratória e ambígua. Talvez o melhor exemplo seja um cortejo amoroso: as palavras que dizemos se prestam a uma interpretação não codificada. É uma interpretação de signos ambíguos e o significado muda constantemente durante a própria relação. Essa é a conjunção, uma conjunção fundamentalmente entre os corpos.

Ao contrário, a lógica conectiva é uma relação na qual a interpretação do sentido é formatada, reduzida a um formato. É a relação entre uma máquina e outra máquina – ou entre um ser humano e uma máquina – onde o signo significa apenas uma coisa. Se duas máquinas estão formatadas de forma diferente, elas não podem se entender: precisamos de uma redução do formato que permita a interpretação exata dos sinais.

Na relação conjuntiva não existe exatidão. Não há exatidão porque a relação humana conjuntiva é essencialmente uma relação de ambiguidade. Naturalmente, é um tipo de relação em que a violência pode nascer se não houver educação para a conjunção, que na modernidade era chamada de “cortesia”. O que estamos vivendo no mundo no momento me parece ser essencialmente uma epidemia de grosseria, ou seja, de uma incapacidade de decifrar signos de acordo com o desejo.

 

Donald Trump, a vitória sombria do barroco

 

Em culturas muito diferentes, você encontra a mesma rejeição da lógica conjuntiva: o medo do corpo, especialmente do corpo feminino, da mistura e da confusão, da ambiguidade do significado. E uma defesa e elogio do ideal, do modelo, da pureza. Você encontrou algum “húmus cultural” alternativo onde há elementos de outra sociabilidade possível, de outra relação entre corpo e signo?

Para descrever a transição para a hegemonia do conectivo, pareceu-me necessário fazer uma espécie de cartografia das formas culturais que se desenvolveram na história humana. Naturalmente, escolhi apenas alguns momentos e reduzi esta investigação antropológica a uma alternativa essencial: entre o puritanismo e o barroco.

O puritanismo é culturalmente, além de sua definição estritamente religiosa, um cancelamento da ambiguidade na relação inter-humana. Portanto, um cancelamento da própria história. Considere a criação dos Estados Unidos. Um historiador disse que são a primeira nação do mundo que nasceu como expressão da palavra: primeiro vem a Constituição, depois vem a comunidade. Mas é claro que antes da palavra está a destruição da história anterior: a história dos povos indígenas que ali viveram.

E não só isso: também a destruição, o cancelamento e o esquecimento de tudo o que aconteceu antes na Velha Europa. Os puritanos, os pais fundadores, fogem da Europa para esquecer a história suja do catolicismo e do protestantismo europeus. Esquecendo-se da impureza europeia e suprimindo a impureza indígena, eles diziam a si mesmos: “fundaremos a pureza, a cidade sobre as colinas, a Nova Jerusalém”. Não nos surpreende que seja nesta mesma terra, que nasce da pureza da palavra, onde mais tarde nasceu a pureza da comunicação digital.

 

Por outro lado, há o barroco. Como você interpreta o barroco?

 

É um fenômeno que acompanha a história do puritanismo, como corrente cultural, estética, perceptiva e política minoritária, mas sempre presente durante os séculos da modernidade. O barroco é essencialmente a proliferação dos signos, é o espetáculo dessa proliferação. Não é por acaso que o barroco foi a ferramenta política da igreja católica da Contrarreforma, que exibiu não um discurso de persuasão, mas uma demonstração de sedução. A proliferação de signos na época barroca católica é uma história de espetacularização e multiplicação das ambiguidades.

O barroco desaparece em determinado momento da história moderna, quando a burguesia puritana nórdica constrói um mundo onde a ambiguidade é considerada perigosa. Mas em um certo momento, ele explode de volta ao cenário mundial. Eu diria que este momento é a década de oitenta do século XX. Paradoxalmente, o barroco retorna como forma dominante, majoritária, graças à proliferação de signos que a comunicação puritana e digital produziu. A máquina digital produziu tal excesso e proliferação de signos que a recepção estética é incapaz de produzir uma interpretação adaptada e adequada. E o barroco explode nos anos oitenta, noventa e hoje de forma dominante. Acredito que a vitória eleitoral de Donald Trump seja essencialmente a vitória do barroco, como a indecifrabilidade de sinais totalmente contraditórios.

 

Você pode explicar mais sobre essa relação entre um fenômeno como Trump e o barroco?

 

Sugiro ler uma feminista americana chamada Angela Nagel. Nagel escreveu um livro muito interessante – e também muito ambíguo – que não compartilho essencialmente, mas que contém muitos elementos para entender a vitória de Donald Trump. O título do livro é "Kill all normies" e é um livro sobre a cultura da alt-right, sobre a relação entre a cultura libertária, transgressora, e a cultura da extrema direita, que é uma direita paradoxalmente irônica, ou melhor, cínica.

O que é ironia, o que é cinismo? É justamente o problema que o barroco propõe. A ironia é a consciência da ambiguidade. Essa consciência da ambiguidade tem duas faces possíveis. O rosto cortês, ou seja, quando os sinais são ambíguos e decifro essa ambiguidade conforme o desejo, para aumentar o meu prazer e o seu prazer.

Mas há também um lado cínico na ironia. E o que é cinismo? É uma pergunta muito difícil. Eu diria que o cinismo é uma consciência da ambiguidade, mas que aceita apenas a interpretação do poder como uma interpretação possível. O mais forte é aquele que interpreta. Os sinais são ambíguos, então eu os interpreto de acordo com minha vontade, porque sou o mais forte.

Onde estamos hoje? Estamos no território do triunfo total do puritanismo digital, mas, paradoxalmente, esse triunfo produziu um efeito hiperbarroco na dimensão erótica e social, onde continuamente perdemos o rumo.

 

“Não é não”: quando a ambiguidade se torna perigosa

 

Você diz no livro que, embora possa parecer paradoxal, a pornografia é o ponto de chegada da transformação puritana do mundo.

 

Como digo, acho que a relação entre os corpos se empobrece devido ao deslocamento da comunicação da relação empática para o campo da comunicação conectiva. Recentemente, li uma mensagem de um garoto de 19 anos que dizia: “Desde que nasci meu relacionamento principal sempre foi com autômatos inteligentes que encontrei na rede, por que tenho que fazer sexo com humanos? Os humanos são mais brutais, menos inteligentes e menos interessantes que os autômatos.” Parece-me claro: os seres humanos estão falando com autômatos e perdendo a capacidade de falar com outros seres humanos. A relação entre os seres humanos tornou-se uma relação sem cortesia, sem esse tipo de sabedoria especial que é a decifração da ambiguidade em condições de empatia. A pornografia é precisamente a sexualidade sem ambiguidade, onde a ambiguidade é anulada desde o início. Você sempre sabe o que vai acontecer.

 

Os movimentos de mulheres são talvez os que mostram mais vitalidade na Espanha neste momento, e não só. Que potencial você acha que esses movimentos podem ter para repensar e refazer códigos de comunicação afetiva e inter-humana?

 

Não sei se Camille Paglia é conhecida na Espanha… O que diz Camille Paglia? Em primeiro lugar diz: sou barroca, sou católica e latina. Segundo: minha figura de referência é Madonna. E seu trabalho é uma crítica ao feminismo puritano, que tem um papel fundamental, provavelmente majoritário, na experiência do feminismo americano. Ler Camille Paglia, para mim e falar em geral para as mulheres da minha geração, foi uma experiência enriquecedora. Mas a certa altura as coisas mudaram e a atitude de Camille Paglia tornou-se cada vez mais minoritária e hoje ela está, parece-me, completamente esquecida, pelo menos nos EUA.

Por quê? As mulheres feministas se tornaram muito puritanas e hipócritas? Não, é que o mundo mudou, o mundo mudou de uma forma que torna cada vez mais difícil interagir de forma ambígua e educada. A ambiguidade tornou-se perigosa porque a polidez desapareceu e então somos forçados a dizer “sim é sim, não é não”. Não gosto dessa binarização da comunicação, mas hoje parece inevitável. Porque fora da redução do “sim-sim, não-não”, há constantemente o perigo da violência.

Se não há ambiguidade, não há erotismo, porque o erotismo é essencialmente o fenômeno de detectar a intenção implícita de uma comunicação ambígua. Mas se acabam os contextos em que é possível interpretar a ambiguidade a partir do prazer da relação e da empatia, então a única forma de nos entendermos é “sim-sim” e “não-não”. A mutação atual não é apenas tecnológica, mas comunicativa: a mutação das possibilidades de interpretação produziu um efeito de “pornografia” do panorama erótico contemporâneo.

 

Política crítica, política memética

 

Como você interpreta a ascensão da extrema direita que vemos em tantos lugares?

 

Acho que esse retorno do fascismo que estamos testemunhando em nível planetário deve ser interpretado de uma nova maneira. Há certamente muitos sinais do fascismo clássico: nacionalismo, agressividade, propagação da guerra, racismo… Mas a gênese do fenômeno atual é diferente, e temos que interpretá-lo em sua diferença.

O que está acontecendo? Acredito que estamos saindo – ou já saímos – da dimensão que possibilitou a política da modernidade, ou seja, o pensamento crítico. O que é pensamento crítico? O que é crítica? A crítica é a capacidade de distinguir o que é verdadeiro ou falso, bom ou ruim, em uma afirmação, em uma informação, em um evento. Mas para discriminar criticamente precisamos de tempo.

A crítica tornou-se possível quando a escrita e a imprensa permitiram uma releitura, uma reversibilidade e, sobretudo, um tempo de discriminação crítica. A burguesia esclarecida fez da crítica o poder essencial da decisão política. Os fatos acontecem, as informações os narram, mas temos que decidir se isso é verdadeiro ou falso, bom ou ruim. E a partir dessa discriminação torna-se possível uma decisão politicamente crítica.

Mas isso não existe mais. A situação em que nos encontramos hoje não permite uma decisão política crítica. Na verdade, já não falamos de “governo”, mas de “governança”. O que é governança? É uma automação da decisão. Se pensarmos no que acontece no campo das finanças, por exemplo, onde há trilhões e trilhões de informações circulando continuamente pelo mundo na velocidade da luz, como podemos decidir se investimos em uma direção ou outra? Não podemos! Então automatizamos a decisão.

E o que acontece no território da política? A decisão racional e sequencial é substituída por uma forma de comunicação que chamamos de “memética”. É o meme que produz os efeitos da política contemporânea. O que é um meme? Um meme é uma unidade mínima hiperintensa e hipersugestiva, mas não racional, de comunicação política. Pepe the Frog, o símbolo usado pelos supremacistas americanos pró-Trump, parece ter tido um enorme efeito nas decisões de voto de milhões de jovens americanos. O livro de Angela Nagel traz muitas informações sobre essa forma de comunicação.

Marshall McLuhan, em seu livro Understanding Media (“Os meios de comunicação como extensões do homem”, na tradução brasileira), de 1964, que provavelmente é um dos livros fundamentais para entender o que está acontecendo hoje, diz: quando o universo da tecnologia da comunicação passa da sequencialidade alfabética impressa para a dimensão da simultaneidade eletrônica, o pensamento deixa de ser crítico e se transforma em pensamento mitológico. O que é mitologia? A mitologia é um pensamento, não é loucura, é um pensamento, mas é um pensamento no qual, como no inconsciente freudiano, o princípio da contradição não funciona. Apolo, o deus, pode estar morto e vivo: hoje ele está morto e amanhã ele vive novamente. Pode ser branco e pode ser preto ao mesmo tempo. Isso é mitologia: a coexistência de uma possibilidade contraditória. Apenas o oposto da revisão. Segundo McLuhan, a transição da sequencialidade alfabética para a simultaneidade eletrônica produz um efeito de aniquilação da própria possibilidade de crítica. Mas isso significa que aniquila a política ao mesmo tempo.

 

Você acha que a esquerda deveria retornar à tradição do pensamento crítico ou aprender a se mover nessas “novas” condições mitológicas?

 

Em um artigo recente, Geert Lovink pergunta: “A esquerda sabe fazer memes?” Ou seja, podemos usar o meme como forma de comunicação? É um problema sério. Minha resposta imediata é sim. Na minha história pessoal, as experiências políticas do movimento nos anos 1970 italianos foram mais um fenômeno de comunicação mitológico-memética do que um fenômeno de comunicação crítica. E toda a cultura do rock, particularmente na época dos anos 80, foi uma experimentação da mitologia do pensamento coletivo. Mas, ao mesmo tempo, a pergunta é: podemos abrir mão da decisão crítica? Podemos abrir mão do entendimento crítico que fundamenta a decisão? Não tenho resposta para esta pergunta. Tenho a sensação de que, se não se pode decidir politicamente sem discriminação crítica, isso significa que o fascismo veio para ficar e isso não me agrada nem um pouco.

 

A revolução do tédio

 

Os aniversários da Revolução Russa, da morte de Che, do Maio de 1968, foram celebrados recentemente… Queria pedir-lhe uma última palavra sobre a necessidade de reimaginar a mudança social, a revolução. Se, como você explica, a emancipação não pode mais ser esse projeto racional, articulado por uma estratégia de meios e fins, porque tudo isso antes pertenceria ao paradigma da crítica, como podemos repensá-la, reimaginá-la?

 

Me convidam muito para falar de 1968: eu tinha 18 anos na época, estava matriculado na Faculdade de Filosofia de Bolonha. Enfim, sou um cara de sorte: tudo me parecia perfeito, o mundo era exatamente o que eu estava imaginando, desejando e pensando.

Mas podemos pensar em replicar algo semelhante hoje? Não estou dizendo que não, mas problematizo a coisa dizendo o seguinte: o 68 nasce do tédio. Os anos 1960 são anos chatos, no bom sentido. O tédio não é uma coisa ruim, é passar uma tarde imaginando coisas, sem saber exatamente o que fazer. A intensidade foi muito grande nos anos sessenta, são anos de grande vitalidade cultural, artística e musical. Há um mundo inteiro que se abre. Mas estou aqui, na minha casinha com minha avó, e estou muito entediado. Então eu quero aventura, tenho um desejo de aventura.

Hoje vivemos na condição totalmente oposta: uma condição de angústia, de excesso de aventuras, aventuras demais que não vivo. Não vivo a aventura, mas a aventura me cerca, me obriga a viver algo que não estou vivendo. Essa parece ser a condição atual.

Acabei de ver o segundo filme de Zvyagintsev, um diretor russo muito triste e muito gelado, chamado "Loveless". Loveless é a história do relacionamento entre uma mãe e um menino de 8 anos chamado Alyosha, que desaparece em um determinado momento. Por quê? Porque é “loveless”, “sem amor”? Porque a mãe, por motivos sociais, relacionais, de casal, de trabalho, de precariedade, por causa do celular que toca constantemente, não é capaz de amar. E ela diz: “Eu tive um filho, mas foi um erro porque não sou capaz de amar, não sei como essa criança pode ser amada”.

O menino desaparece. Eles o procuram em todos os lugares, mas não o encontram. Ele está morto ou escondido ou foi assassinado, não sabemos. O filme termina assim, não sabemos. Esse é o problema hoje, que não sabemos nada. Não sabemos se, numa situação angustiante, de aceleração, de hipersaturação do espaço de atenção, o prazer da relação entre corpos que falam pode ser reativado.

A palavra foi separada do corpo. Conversamos muito, mas os corpos não são encontrados. E quando os corpos se encontram não sabem falar. Esse é o problema da relação erótica, mas também o problema da relação política e da relação social.

 

Uma política de emancipação começaria com o encontro entre os corpos?

 

Temos que começar, não apenas um discurso, mas uma prática de relaxamento de expectativas, antes de tudo na dimensão da existência cotidiana, mas não só. Você tem que dizer: “sim, a aceleração e o desejo de ter muitas coisas venceram, mas o que me importa?” O importante, repetindo Carlos Castañeda, não é ganhar ou perder, mas manter-se impecável. E o que significa “permanecer impecável”? Impecável significa que não há regras, que eu decido as regras com meus amigos. E a única regra que é válida é a regra que nós decidimos. A política pode ser fundada na ideia de que não existem regras, apenas as regras que decidimos de forma afetiva, erótica, sempre provisória, sempre redefinida.

Essa também é a maneira de enfrentar o medo. Do que temos medo? Temos medo da percepção de que a vida está nos escapando e não a estamos vivendo. Mas, por que temos que pensar que a vida tem que ser a aventura que lemos ou vimos na tela? Quem disse isso? Quem disse que a vida tem que ser como maio de 68? A boa vida pode ser um retorno ao tédio. Voltar ao tédio como terapia para a ansiedade me parece uma forma possível de lidar com o problema.

A verdade é que não tenho muitas respostas. Nosso problema atual é que todas as respostas do passado não funcionam porque o contexto relacional mudou totalmente. Mas, ao mesmo tempo, insistimos em fazer perguntas que impliquem uma resposta do passado. Um movimento de relaxamento das expectativas aventureiras pode ser um começo para uma nova aventura.

 

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