09 Março 2022
“Berardi não afirma que iremos nos extinguir de forma iminente, mas, sim, que em vez de viver para e por um amanhã promissor, como aconteceu em outras épocas, agora não temos nenhuma confiança no amanhã, e não só isso: estamos tentando – na verdade, não o suficiente em relação ao que deveríamos estar fazendo – que esse amanhã não chegue”, escreve Eduardo Almiñana, jornalista especializado em literatura, em artigo publicado por Valencia Plaza, 07-03-2022. A tradução é do Cepat.
Agora que o demônio da guerra que nos acompanha desde nossas origens crava seus dentes até o limite na Ucrânia, a sensação se acentua, o rumor ganha maior intensidade, os músculos da cabeça ficam tensos. O psicomundo coletivo desse animal que evoluiu o suficiente para desenvolver engenhos para apagar a si mesmo da face do planeta que o viu nascer em uma poça quente está em uma nova fase, experimenta uma nova transformação.
Se tivéssemos que definir esta época, provavelmente faríamos alusão à velocidade - aceleração -, incerteza e desesperança. Esta é a época de assumir o dano irreversível ao planeta. Não se trata mais de evitá-lo, mas de atenuá-lo, na medida do possível, e confiar em não viver o suficiente para sofrer as piores consequências.
Sem dúvida, a história nos diz que em muitas ocasiões o que dávamos por certo não se cumpre pela irrupção de um fator que, por ser desconhecido, tínhamos deixado fora da equação de nossa análise. O problema é que, nos últimos anos, a impressão é que esse fator está muito longe de ser uma disrupção com capacidade de nos tirar da trajetória de colisão com as consequências de nossos atos.
A penúltima grande surpresa foi uma pandemia – embora, na verdade, existiam vozes que há anos alertavam sobre esta possibilidade, a maioria não sabia nada disso -, e a última um surpreendente retorno à retórica da Guerra Fria, após o início de uma nova guerra na Europa.
A verdade é que também não a vimos chegar e, agora, em questão de dez dias, nos deitamos pensando que realmente pode acontecer de alguém ficar nervoso e apertar o botão vermelho, e a partir daí, então, o fim. Sem alarmismo, com a resignação de quem assume que o ser humano é capaz da estupidez final: isso pode acontecer.
Mas ei, provavelmente nada disso vai acontecer, todo mundo tem muito a perder. Talvez essa forma de escrever tenha a ver com esse espírito de uma nova fase que citávamos antes, com esse zumbido de medo do inédito tão bem definido pelo escritor, filósofo e ativista italiano Franco ‘Bifo’ Berardi, em El tercer inconsciente: La psicoesfera en la época viral, um ensaio com uma vontade louvável de entender para onde se dirigem nossas mentes no alvorecer do milênio, publicado por Caja Negra Editora [em espanhol], com tradução de Tadeo Lima.
Ele diz assim, logo no início [no primeiro parágrafo]: “Este livro explora a mutação em curso do inconsciente social. Meu ponto de observação é o que habitamos atualmente: o limiar histórico marcado pela pandemia viral e o colapso catastrófico do capitalismo. Deste limiar podemos ver diante de nós, de forma clara e irrefutável, um horizonte de caos, esgotamento e tendência à extinção”. E isso sem o fato de que Berardi não contava com a ameaça de uma Terceira Guerra Mundial.
Para o autor, existiram duas etapas do inconsciente coletivo que, mais do que um teatro em que nosso cérebro, oferece funções do que não queremos ver de forma consciente, é um laboratório movido por uma força criativa. A primeira dessas etapas teria a ver com a concepção do inconsciente como o lugar em que habitavam as paixões obscuras que reprimíamos em sociedade.
A segunda etapa é explicada por Berardi de forma muito clara, sendo melhor reproduzi-lo: “Todo o sistema dos meios de comunicação foi mobilizado para expandir as promessas de gozo, mas essa aceleração do fluxo de informação sobrecarregou a capacidade de atenção humana, adiando para sempre a possibilidade do prazer, que acabou se tornando inalcançável. Esse regime social levou à configuração de um novo regime psicopatológico que caracterizou as últimas décadas: a era do pânico, da depressão e, em última instância, da psicose”.
Baita retrato. A terceira etapa do inconsciente, adverte o autor, não está definida, ainda depende de nós, embora já possamos vislumbrar algumas de suas formas. O autor acredita que tendemos à imunização da emoção, que se está sofrendo muito - a nível médico, mas sobretudo econômico, social e mental - e que estamos buscando evitar a empatia para assim nos poupar ainda mais sofrimento. Refere-se a isso como uma espécie de autismo e alexitimia psicossocial.
Outra característica que define esse terceiro inconsciente é o esgotamento, e aqui é preciso parar um momento. Esse esgotamento, como o sofrimento, ocorre em vários níveis: assistimos ao esgotamento dos recursos – que necessitamos e podemos extrair agora, porque sem dúvida devem existir enormes depósitos de petróleo que simplesmente não podemos acessar -, mas também, e especialmente, ao esgotamento de nossas próprias carnes e de nós mesmos. O esgotamento é, com toda segurança, o traço que iguala tudo.
Estamos esgotados, cansados da deriva, das crises econômicas globais, das notícias somente terríveis ou apocalípticas, da tensão política, é claro, dos vírus e de nos dirigir sem freios para um mundo de escassez, necessidade e migrações em massa. No Ocidente, além disso, estamos cansados e velhos.
Nossas sociedades não têm filhos. Para ter filhos na era da ansiedade, das péssimas condições de trabalho com salários insuficientes, dos horários neoliberais e aluguéis nas nuvens, é preciso se armar de coragem e, além disso, contar com a sorte e que sejam bem agraciadas.
Mas, além disso, esse terceiro inconsciente é definido pelo horizonte da extinção. Com isso, Berardi não afirma que iremos nos extinguir de forma iminente, mas, sim, que em vez de viver para e por um amanhã promissor, como aconteceu em outras épocas, agora não temos nenhuma confiança no amanhã, e não só isso: estamos tentando – na verdade, não o suficiente em relação ao que deveríamos estar fazendo – que esse amanhã não chegue. É uma grande diferença. Felizmente, ou infelizmente, tudo muda. Então, quem sabe.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
‘O terceiro inconsciente’, o horizonte inquietante da extinção, de Franco ‘Bifo’ Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU