16 Março 2022
No Rio há uma condensação de forças políticas que não ameaçam a ordem criminosa que hegemoniza o Estado, escreve Carlos Tautz, jornalista e doutorando em história contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 15-03-2022.
Imagem: Claudia Barbosa
Desde 14 de março de 2018, a cada ano se repete um ritual, sem fim à vista. À pergunta “Quem mandou matar Marielle?”, autoridades e até personalidades que eram próximas à ex-vereadora do PSOL fazem ouvidos de mercador sobre as razões e os nomes por trás do assassinato duplo, que há quatro anos, numa quarta-feira, vitimou Marielle e o seu motorista Anderson Gomes.
Em plena região central do Rio de Janeiro, a poucos metros da sede da Prefeitura Municipal, as mortes associadas de Marielle e Anderson foram o crime político de maior repercussão no Brasil desde a bomba que a extrema-direita militar detonou em 31 de abril de 1981 no Riocentro, na tentativa de impedir a abertura política durante a ditadura empresarial e militar da época.
Para o estado do Rio de Janeiro atual, a descoberta dos mandantes do assassinato frio de Marielle adquire importância semelhante à do atentado do Riocentro – cujos operadores foram quase que imediatamente denunciados até pela imprensa. Pois, agora, o Rio é ameaçado institucionalmente pelo controle territorial e a infiltração das milícias na máquina pública; pela leniência e a conivência do sistema de segurança pública com esses paramilitares; pelo misto de conivência e complacência do Ministério Público (MP) do Estado; e pela falta de perspectiva de que toda essa situação se altere no curto e no médio prazos, dadas as forças políticas que se propõem a administrar o estado agora e a partir das eleições de outubro.
Assim, nomear quem deu a ordem para o assassinato, desembolsou centenas de milhares de reais para contratar o assassino Ronnie Lessa significaria um passo decisivo para a retomada de um mínimo estado de direito no Rio.
O fato é que o crime contra Marielle e Anderson simboliza a permanente blitzkrieg de uma ordem criminosa sobre a vida social no Rio de Janeiro, que pode alcançar o presidente Jair Bolsonaro (dono de casa no mesmo condomínio onde morava o assassino de Marielle, proximidade que inexplicavelmente o Gabinete de Segurança Institucional nunca descobriu) e do Ministro da Defesa Braga Netto (cotado para vice na campanha reeleitoral de Bolsonaro), que comandava de forma plenipotenciária a intervenção financeira e militar no Rio quando Marielle e Anderson padeceram covardemente.
Assim, por todas essas circunstâncias, descobrir todo o esquema que levou ao assassinato de Marielle e Anderson deveria constar da abertura do programa de todo/a candidato/a ao governo do Estado. Mas, não consta.
Na prática, o que se verifica no Rio é um altíssimo grau do condensação de várias forças políticas – da extrema direita bolsonarista até à esquerda congressual –, que hora se entrechocam e muitas vezes convergem, mas que nunca ameaçam a ordem criminosa que hegemoniza o Estado em torno das milícias, das polícias, e de outros tipos de poderosos que fazem a real gestão do território do Estado.
Isso se expressa, por exemplo, na inexplicável morosidade na investigação dos assassinatos de Marielle e Anderson. Essa é uma investigação que a bem da democracia deveria ter sido concluída em poucos dias, mas que, depois de tanta demora, aponta em outra direção. Indica o provável envolvimento de gente capaz de controlar desde a Delegacia de Homicídios até o Palácio da Guanabara, sede do Governo, e passando pelo MP, que tem obrigação constitucional de fazer o controle externo das polícias.
Uma situação que, pelas suas características, indica a decisiva participação de milícias no controle da investigação. Essa condição já ficou clara na descoberta de que o assassino apontado seria Ronnie Lessa, um sargento aposentado do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar, que durante décadas foi assassino profissional ligado ao Jogo do Bicho, ao famigerado Escritório do Crime, às milícias da Zona Oeste do Rio, ao contrabando internacional de armas e à própria Polícia Civil fluminense.
Ronnie, inexplicavelmente, sequer havia sido alvo de um mísero procedimento investigatório do MP ou das Corregedorias das polícias até ser preso em março de 2019, dois dias antes de o assassinato completar um ano sem explicações oficiais.
Outro indício de que os criminosos têm acesso diferenciado à máquina pública é evidenciado pelo verdadeiro descompromisso do governo do Estado com a (falsa) prioridade dada à investigação.
Como denunciou o portal de notícias G1, “de acordo com informações divulgadas nesta sexta-feira (11) no RJ2, a Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) levou mais de três anos para encaminhar ao Ministério Público cerca de 1,3 mil arquivos de fotos e vídeos do caso, que completa quatro anos no próximo dia 14 de março”.
Esse absurdo estado de coisas também é verificado na leniência do Ministério Público. Em 2021, por exemplo, as promotoras de justiça Simone Sibilio e Letícia Emile, então à frente do caso, demitiram-se da função, alegando “interferências externas”, mas sem esclarecer do que se tratava.
(Sibilio, a propósito, acaba de receber do Departamento de Estado dos EUA um prêmio a mulheres “que demonstraram coragem e liderança excepcionais na defesa da paz, justiça, direitos humanos, equidade e igualdade de gênero e empoderamento das mulheres”. Segundo a Embaixada dos EUA, a promotora “participará de um intercâmbio virtual, o International Visitor Leadership Program (IVLP), quando terá a oportunidade de se conectar com especialistas americanos em sua área)…
O desinteresse a que Marielle foi relegada respinga até no PSOL, partido da ex-vereadora. Ao ver o beco sem saída nas investigações, a legenda não tenta reverter a situação com a medidas concretas, como tentar abrir Comissões Parlamentares de Inquérito no município e no estado do Rio e em nível federal, nem procura angariar apoio internacional às investigações, como poderia conseguir caso a Organização dos Estados Americanos abraçasse o caso.
A situação não melhora nem quando se olha para os quatro anos de mandato do governador a ser eleito em outubro. Nenhum dos dois principais pré-candidatos – o deputado federal Marcelo Freixo (PSB) e o obscuro, porém muito hábil governador Claudio Castro (do PL, o mesmo partido de Bolsonaro) – colocam a resolução do caso como eixo central de uma estratégia de retomada da democracia. Nem mesmo Freixo – de quem Marielle foi amiga, assessora e companheira de partido.
Primeiro, porque o parlamentar busca como público privilegiado de sua campanha justamente a categoria dos policiais, vários deles envolvidos por leniência no atraso das investigações. Embora diga ser a segurança pública uma de suas prioridades, Freixo tem tratado da área somente abordando assuntos como o valor (R$12) do tíquete-refeição dos policiais civis.
A pré-campanha de Freixo, entretanto, já envolve contradições muito mais sérias e insuperáveis no quesito segurança pública – especialmente em se tratando de Marielle. A principal delas foi o pré-candidato Freixo ter convidado Raul Jungmann a integrar a equipe de redação do seu programa de governo.
Afinal, Jungmann, na qualidade de então Ministro da Defesa e da Segurança Pública, integrou o reduzido grupo de assessores do ex-presidente Michel Temer que imaginou e deu forma legal à intervenção financeira e militar no Rio em 2018, sob a qual Marielle foi assassinada. Para ter dado o passo da intervenção, que ao final em nada melhorou a situação da segurança no Rio, Jungmann já possuía informações sobre a criminalidade fluminense, repassadas pelo sistema de segurança do Estado.
Tanto assim que, em novembro de 2018, Jugmann admitiu à revista Veja “ter certeza de que “políticos poderosos”, agentes públicos e milicianos estão envolvidos no assassinato da vereadora Marielle Franco”. Assim, ele antecipou o que o atual Ministro da Defesa Braga Netto, ex-interventor do Rio, admitiria dois meses depois para a mesma publicação: “Poderia ter anunciado a solução do caso Marielle”, afirmou Braga Netto, que, por força do cargo, controlou todas as informações do sistema de segurança pública no Estado.
Ademais, a própria escolha de Jungmann por Freixo já expressa um tipo de concepção de segurança pública que dificilmente poderia ser qualificada de democrática, e que por si já se mostra – como também mostrou durante a intervenção – incapaz de enfrentar o profundo e retrocesso pelo qual passam as instituições no Rio.
Jungmann, relembre-se, é um ex-quadro da esquerda que apoiou o golpe de 2016, foi ministro de Michel Temer e é próximo politicamente de grupos representados pelo general da reserva Sergio Etchegoyen, que há mais de 50 anos controlam a espionagem militar no Brasil (o pai de Sergio, o general de Brigada Leo Guedes Etchegoyen, é um dos militares citados no relatório da Comissão Nacional da Verdade).
Problema ainda maior é que a alternativa eleitoral à Freixo é o atual governador, Claudio Castro, provável candidato da extrema direita e de Jair Bolsonaro ao governo do Rio. Castro só chegou ao cargo porque era vice do ex-governador Wilson Witzel – aquele que preconizava “tiros na cabecinha” de bandidos e que foi cassado por corrupção em 2019.
Sem tradição na política, Castro (desde 2021 investigado pelo Ministério Público por fraude na compra de cestas básicas) tem-se notabilizado pela condução neoliberal do estado e pela surpreendente forma com que vem construindo apoios políticos ao seu governo, inclusive com prefeitos da Baixada Fluminense acusados de chefiarem grupos milicianos. Forçou a ilegal privatização da CEDAE (a ex-companhia estatal de águas e saneamento) e comprou apoios variados, ao prometer distribuir parte dos lucros até à única prefeitura do PT (Maricá) no Estado.
Na segurança pública, fez mais do mesmo. Criou um programa que, a exemplo das Unidades de Polícia Pacificadora de seus antecessores, apenas ocupa militarmente favelas e não evita confrontos que sempre produzem vítimas entre as populações. Sobre a mais letal chacina ocorrida no Rio (na Favela do Jacarezinho, em maio de 2021, quando morreram 27 civis e um policial), Castro repetiu os argumentos dos policiais à frente da operação e apoiou abertamente as mortes.
Em seu governo, o único fato novo produzido na investigação do caso Marielle e Anderson foi a escolha do quinto delegado para chefiar a apuração.
Para quem vem acompanhando o caso, com a distância que possibilita a independência no olhar, o crime – a par a dor da família e amigos/as – e, depois, a investigação se tornaram palco para a exibição de slogans vazios, que visam a demarcar territórios e estratégias de caça a votos.
“Quem matou Marielle?”, além de ser a pergunta honestamente feita por muita gente, virou uma demanda que incomoda cada vez menos e vai progressivamente sendo esvaziada em seu conteúdo político em meio ao acelerado desmanche do muito pouco de democracia que a classe trabalhadora, negra e moradora de favela viveu nesse estado.
Quem bem observou e resumiu o caso foi o sociólogo José Claudio Souza Alves. Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e morador de Duque de Caxias, ele é um dos mais importantes estudiosos do fenômeno das milícias. Em 1998, defendeu na USP a tese Baixada Fluminense: a violência na construção do poder. Segundo ele, “o caso Marielle é um mito. Virou uma panaceia em meio à disputa político/eleitoral. A esquerda não quer solução para não se comprometer, e ganhar votos à direita. A direita não quer conclusão para não ser atingida. O centro não está nem aí, ou melhor, se dissolveu para ganhar em algum lugar do espectro. Marielle é uma defunta renegada, incômoda, embaraçosa. Melhor não falar sobre ela. Fazer um pedestal para a heroína que foi, construir um mausoléu de silêncio sobre seu assassinato. O País não comporta a verdade. Seus grupos políticos vivem e se alimentam das perguntas jamais respondidas. O medo é nosso melhor projeto de País”.
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O calvário de Marielle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU