30 Março 2014
O comandante Gentil Marcondes Filho tinha pressa. Em poucas semanas estaria aposentado e queria rápida conclusão do Inquérito Policial Militar (IPM) sobre as explosões no Riocentro. Porém, o coronel Luiz Antônio do Prado Ribeiro, encarregado do IPM, começara a ver feitiços. Quase todos reais. Percebeu vigilância. E reclamou da 2ª Seção por enviar ao gabinete do ministro do Exército relatórios diários e detalhados sobre os seus movimentos.
A reportagem é de José Casado, publicada por O Globo, 30-03-2014.
Numa visita-surpresa ao capitão Wilson Machado no hospital, topou com Hélio Régua Barcelos Jr (“Dr. Jonas"). E ouviu que, para o DOI, a “única solução aceitável” seria a atribuição do atentado a terroristas de esquerda. Na volta, Marcondes Filho o convocou. Recomendou cautela nas visitas a Machado, porque “poderia haver uma ação contra ele”.
Prado passou a sentir-se ameaçado e isolado. Achou os depoimentos da turma do DOI “arrumadinhos” e contraditórios.
Fatos atropelavam versões oficiais, como estampava O GLOBO na quarta-feira 6 de maio: “Laudo confirma que havia duas bombas no Puma”.
Em viagem a Brasília, no dia anterior, o repórter Merval Pereira encontrou o senador Tancredo Neves, cuja neta transportara o capitão ferido ao hospital na noite do show. Conversaram, e o senador comentou: “Homem corajoso esse Chagas (Freitas, governador do Rio). Liberou um relatório onde está confirmado que havia outras duas bombas dentro do Puma, além da que estourou.”
O laudo havia sido entregue ao comandante do 1º Exército, em sigilo, pelo secretário de Segurança. À tarde no Congresso, quando o repórter pediu detalhes, Tancredo devolveu com peculiar ironia: “Você também soube disso?”
No fim da primeira semana, Prado já suspeitava de Patrício, chefe do Estado-Maior, a quem o DOI respondia. Não teve acesso ao relatório sobre outras duas bombas desativadas dentro do Puma, mas tinha evidências de que o capitão e o sargento transportavam “artefato com fins desconhecidos”. Foi ao comandante e escutou uma sugestão para conclusão do IPM: “Autoria desconhecida”.
A pressão aumentou com telefonemas anônimos à sua casa. Decidido a sair, justificou o pedido com suspeitas sobre o envolvimento da 2ª Seção, comandada pelo coronel Leo Cinelli, e a virtual subordinação do DOI a Patrício. Afirmou-se constrangido para tomar o depoimento de Patrício, superior hierárquico. Sugeriu sua substituição por um general com “meios próprios para investigação”.
Entregou o ofício a Patrício, que, segundo ele, o convenceu a restringir o motivo da saída ao problema de hierarquia. Prado aceitou e foi procurar seu antigo professor na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) Enio Gouvêa dos Santos, também amigo e confidente de Marcondes Filho.
Estava deprimido, nas palavras de Santos. Relatou pressões: “Não se prestaria a realizar determinadas coisas.” Analisaram sua passagem para a reserva.
O ministro do Exército chegou ao Rio e convocou todos os generais da área para uma reunião no dia seguinte. Uma longa amizade unia Walter Pires ao presidente Figueiredo. Conviviam desde a academia no Rio, cavalgavam juntos em Brasília e transpiravam fidelidade.
No sábado 9 de maio, Pires entrou na antiga sede do Ministério do Exército, ao lado da Central do Brasil, disposto a resolver a crise detonada por Prado. Marcondes Filho passou a palavra ao oficial mais antigo entre os presentes — uma regra básica na caserna.
O general Ênio Gouvêa dos Santos começou dizendo achar necessária uma investigação ampla, “na totalidade”. Logo foi interrompido por José Luis Coelho Netto, chefe da 4ª Divisão. Irritado, ele afirmou não admitir que “o nome do Exército viesse a ser envolvido”. Discutiram de forma áspera. Santos mandou Coelho Netto se calar: “Eu estou falando, sou o mais antigo, e a palavra não lhe foi dada.” Na sala, Coelho Netto era o terceiro por ordem de antiguidade. Emudeceu.
Falou em seguida Euclides Figueiredo, chefe da 1ª Divisão e irmão do presidente Figueiredo. Concordou com Santos. Ressaltou que o culpado pelo atentado deveria ser apontado “ainda que fosse o próprio presidente, meu irmão”.
A reunião avançou na direção sugerida por Santos, que, claramente, preferia a nomeação de Vinícius Kruel como encarregado do IPM. O ministro convidou Kruel. O diálogo foi gravado e mais tarde confirmado em juízo por Santos, Kruel e outras testemunhas. Parte foi divulgada pelo repórter Hélio Contreiras, da revista “IstoÉ”. Eis um trecho:
Pires — Kruel, queremos que você seja o novo encarregado do IPM do Riocentro, em substituição ao Prado.
Kruel — Não gostaria de assumir esta função. Sou um soldado, mas acredito que não seria conveniente...
Pires — O seu nome não envolve qualquer restrição.
Kruel — Em função do apelo do chefe, aceitaria o cargo, mas devo deixar claro que não aceitaria pressões... Vou buscar a verdade e os responsáveis pelo atentado, para que sejam punidos.”
Pires interrompeu para atender um telefonema do presidente Figueiredo. Relatou o convite, as condições e a disposição de Kruel em punir culpados. Em seguida, comunicou: a decisão estava adiada por 48 horas.
O general-presidente se expunha numa manobra de retirada. Salvo Pires — o que é incerto —, ninguém ali sabia que Figueiredo soube um mês antes do plano para atentado no Riocentro.
Diante da oportunidade para determinar uma investigação ampla e pública sobre o aparato militar-terrorista, flagrado com uma bomba no colo, o presidente preferiu deixar os generais do 1º Exército com a impressão de que, simplesmente, não queria investigação.
Na segunda-feira 11 de maio, Marcondes Filho mobilizou 40 soldados com fuzis para remover o capitão sobrevivente do Miguel Couto para o Hospital Central do Exército, percurso de 15 minutos com o tráfego rotineiro.
No dia seguinte, políticos da oposição receberam um envelope postado numa agência dos Correios em Botafogo. Dentro havia um manifesto do desconhecido “Pátria e Liberdade — Comando Delta” assumindo a autoria das explosões no Riocentro. Terroristas reafirmavam-se, protegidos e intocáveis.
Naquela semana, Prado aceitou a sugestão do general Coelho Netto para ser internado no hospital do Exército, justificando a saída do inquérito “por problemas de saúde”. Durante dias, foi submetido a inúmeros exames. Resultado: nunca estivera tão saudável.
Figueiredo, Pires e Marcondes Filho entregaram o IPM ao coronel Job Lorena, autor das notas oficiais qualificando Machado e Rosário como “vitimados” em carro “sabotado”. Lorena inocentou-os e deixou de lado a segunda bomba explodida. O relatório, apresentado na quinta-feira 1º de julho, passou à História como farsa.
Lorena e Machado foram promovidos. O capitão virou coronel, o coronel virou general. O sargento morto continuou sargento. Desde então, sua viúva batalha na Justiça pela promoção póstuma: Rosário, o “Robot”, morreu “em serviço”— diz o atestado de óbito.
No sábado 4 de julho, dois dias depois do relatório de Lorena, o presidente recebeu uma carta com a etiqueta “estritamente pessoal-confidencial”. Nela o chefe do Gabinete Civil, Golbery do Couto e Silva, lembrava a Figueiredo: “Para quem sabe, como nós, com base em informações de fonte altamente fidedigna (não utilizáveis, embora, em qualquer investigação formal ou processo criminal)” — escreveu —, “verdade indiscutível é que um grupo radical (...) desencadeou ações terroristas múltiplas obedecendo a linhas hierárquicas distintas das legais e legítimas e que se estendem não se sabe até que níveis superiores dos escalões governamentais.”
Acrescentou: “O simples saber ou mesmo desconfiar da intenção da prática de atos terroristas por parte de terceiros implica, em muitos casos, certa dose de responsabilidade pessoal para quem busque intervir, seja mesmo para contenção ou fazê-los abortar, ou sequer omitir-se de qualquer providência.”
Golbery demitiu-se no mês seguinte, após mais de quatro anos no centro do poder. Viu Geisel enfrentar a política da tortura e do extermínio de adversários do regime ao demitir o ministro do Exército, Sylvio Frota — não por preocupação com direitos humanos, apenas por disciplina militar. E assistiu Figueiredo desfalecer diante do porão da ditadura.
Meio século depois do golpe de 1964, as Forças Armadas ainda exibem sequelas da anarquia que resultou no maior desastre de sua história. O toque de silêncio sobre o passado perpetua a impunidade.
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A absurda proteção aos terroristas do Riocentro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU