Bannon, Yiannopoulos e outros militantes de direita estão determinados a transformar a Igreja Católica

Yiannopoulos durante o comício | Foto: Reprodução / Youtube

08 Março 2022

 

Por volta da quinta hora do comício de oração Enough Is Enoughem novembro, organizado pelo sítio católico de direita Church Militant, o mestre de cerimônias do evento e estrela da alt-right Milo Yiannopoulos subiu ao palco para revelar uma dramática mudança de vestuário. Ficaram para trás o terno branco de estrela do rock e os sapatos roxos que ele usava desde a manhã, substituídos por uma camisa preta, um terno preto e um crucifixo pesado, que brilhava nos telões e por toda a cidade de Baltimore. As pontas loiras e descoloridas do seu cabelo desgrenhado – curtos nas laterais, seguindo a moda, e longo em cima como o de Donald Trump – haviam sido cortadas em uma mudança de estilo total após o seu ano de pomposa renúncia à “sodomia”.

 

A reportagem é de Kathryn Joyce, publicada por Mother Jones, de março e abril de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

No palco, Yiannopoulos assumiu um ar de modéstia exagerada. “O caminho rumo à salvação é uma série de passos de bebê”, disse ele a uma multidão de cerca de 1.500 manifestantes predominantemente brancos, a maioria de meia-idade. “Estou feliz por poder compartilhar um desses passos com vocês hoje.”

 

Gritando e assobiando, o público se levantou em uma ovação de pé. E, ao longo do dia, enquanto Yiannopoulos intercalava insultos homofóbicos – como quando chamou os bispos católicos reunidos ali perto de “sodomitas” e as máscaras contra a Covid de “focinheiras de bicha” – com chacotas sobre os mocassins Versace e pedidos por uma iluminação mais lisonjeira no palco, a multidão gargalhava, todos participando das piadas.

 

Havia, como dizem, algumas “camadas” nesse conjunto de alguns dos partisans mais barulhentos na guerra civil em curso dentro da Igreja Católica estadunidense.

 

Quem é Yiannopoulos

 

Em certo nível, Yiannopoulos estava aproveitando ao máximo a sua queda em desgraça pública. Em 2015, o provocador britânico gay de direita ganhou notoriedade como um dos principais devotos da então incipiente alt-right, usando o dinheiro do bilionário doador republicano Robert Mercer e a plataforma Breitbart News de Steve Bannon para reformular o movimento nacionalista branco como uma rebelião de vanguarda.

 

Lançamentos de livros, perfis em revistas e apresentações de palestras foram ocorrendo até que alguns comentários que ele fez minimizando o abuso sexual infantil – defendendo encontros sexuais entre adolescentes e adultos como “enriquecedores”, em vez de abusivos – foram tornados públicos. Isso foi demais até mesmo para os fãs de Milo, que se divertiram com a sua ofensividade, e, em 2017 , ele foi expulso da extrema direita ascendente.

 

Ao longo dos anos seguintes, ele procurou um novo lar. Em 2018, ele publicou um livro, “Diabolical: How Pope Francis Has Betrayed Clerical Abuse Victims Like Me – and Why He Has to Go” [Diabólico: como o Papa Francisco traiu as vítimas do abuso clerical como eu – e por que ele tem que sair], que vinculava a sua defesa das observações que ele havia feito – de que ele estava elaborando levianamente o seu próprio abuso sexual na infância – com a crise mais ampla na Igreja Católica.

 

Logo em seguida, ele foi recebido por agências de notícias católicas de direita como o Church Militant e o LifeSiteNews, e um popular programa de apologética católica no YouTube apresentado pelo incendiário e agora ativista antivacina Patrick Coffin, que juntos representam alguns dos críticos mais mordazes do papa na internet.

 

No início de 2021, Yiannopoulos completou a jornada, anunciando ao LifeSiteNews que o fato de retornar a uma forma tradicionalista de catolicismo o ajudou a se tornar “ex-gay” e que agora planejava construir uma clínica de terapia de conversão católica na Flórida, que seria chamada de Milo Center.

 

Enquanto Yiannopoulos realizava uma turnê publicitária pelo universo da mídia alternativa da direita católica, ele teatralmente jogou fora um anel de noivado que chamou de “pedra da sodomia” e brincou sobre a necessidade de “tornar o Vaticano hetero de novo” e de “tornar os Estados Unidos homofóbicos de novo”.

 

Em julho, ele se tornou um colunista regular do Church Militant, em que combinava a sua acidez característica com uma fixação no “culto do homossexualismo”, que ele descreveu como “uma releitura de uma forma muito antiga e pagã de culto”. Ele também afirmou que as mulheres que abortavam naturalmente depois de receber a vacina contra a Covid-19 haviam deliberadamente abortado seus filhos e declarou que “às vezes sentimos que o único bispo bom é um bispo morto”.

 

Em meados do ano, ele estava aparecendo na rede de compras domésticas do Church Militant, exibindo um ícone de 88 dólares [quase 450 reais] da “Virgem Adoradora” – uma “boa Maria”, prometeu Yiannopoulos, ao contrário de algumas representações menos atraentes fisicamente – e um CD dele lendo Salmos e Provérbios à venda por 75 dólares [380 reais].

 

De fato, o estilo cafona de Yiannopoulos não estava fora de lugar em relação ao carnaval de indignação que o Church Militant trafica há anos. Originalmente fundada no início dos anos 2000 como Real Catholic TV, com a missão de refutar representações do catolicismo por parte da cultura pop como “O Código Da Vinci”, a organização tornou-se cada vez mais política, conquistando uma audiência de católicos descontentes com a liderança oficial da Igreja.

 

 

Quem é o Church Militant

 

Com sede em Ferndale, Michigan, o Church Militant tem sido repetidamente desautorizado pela Arquidiocese de Detroit – incluindo uma demanda bem-sucedida em 2011 para remover a palavra “católico” do nome da organização. Mas ele se apresenta como um apostolado que luta para preservar o catolicismo autêntico diante de uma hierarquia corrupta e mesquinha, à qual ele normalmente se refere com termos como “sindicato internacional do crime” ou “monstros de mitras”.

 

Por volta de 2018, quando a Igreja foi abalada por revelações de abuso sexual do ex-cardeal Theodore McCarrick, o Church Militant se concentrou naquilo que chamou de “máfia lavanda”, para sugerir que a crise dos abusos sexuais decorria de um conluio gay que controla a Igreja desde o Vaticano.

 

Recentemente, o canal disparou a sua fúria bombástica contra as medidas de saúde pública em relação à pandemia e contra manifestantes pela justiça racial, e previu que o governo de Joe Biden resultaria em um genocídio anticristão. Em 2020, o fundador do canal, o ex-produtor da CBS News Michael Voris – que renunciou publicamente a seus próprios relacionamentos homossexuais anteriores e foi o mentor de Yiannopoulos para que também abraçasse uma “vida casta” (ou aquilo que Yiannopoulos chama de “sobriedade sexual”) – alertou que uma “união de Roma e o pântano de Washington” estava conspirando para derrubar Trump e inaugurar uma nova ordem mundial, sob a qual os fiéis católicos seriam declarados “ilegais” e “caçados”.

 

O Church Militant, então, empurrou goela abaixo, implacavelmente, narrativas eleitorais roubadas, e, quando os apoiadores de Trump invadiram o Capitólio dos Estados Unidos no dia 6 de janeiro de 2021, o canal e sua equipe os chamaram de “patriotas” e tuitaram memes comemorativos – como um díptico justapondo uma foto de manifestantes içando uma grande cruz de madeira com a icônica imagem dos Marines levantando uma bandeira em Iwo Jima.

 

Seis meses depois, o Church Militant anunciou planos para sediar uma manifestação de oração, apresentada por Yiannopoulos e encabeçada pelo ex-conselheiro de Trump e católico de direita Steve Bannon, que em 2018 lançou um plano malsucedido para construir uma “escola de gladiadores para guerreiros culturais”, em parceria com um think tank católico conservador em Roma, dedicada a “recuar a maré do secularismo radical”.

 

A manifestação do Church Militant deveria ser realizada logo do lado de fora da assembleia anual da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB), em Baltimore, em novembro de 2021, mas as autoridades municipais revogaram a permissão para o evento, argumentando que a presença do grupo poderia levar à violência.

 

Após uma longa batalha legal, que incluiu um depoimento de Yiannopoulos no tribunal, que simultaneamente se ofereceu para se retirar do evento e ameaçou abrir um processo se necessário, um tribunal de apelações permitiu que a manifestação prosseguisse.

 

 

Comunhão com e na Igreja

 

Não por coincidência, a assembleia geral da USCCB foi tomada por um debate acirrado sobre a recomendação de que políticos católicos pró-escolha como Biden não recebessem a Comunhão. No quadro geral, o resultado foi essencialmente predeterminado. Os bispos locais, e não a USCCB, decidem quem pode receber a Comunhão, e o cardeal que supervisiona a Igreja de Biden em Washington – o primeiro cardeal negro dos Estados Unidos, a quem o Church Militant ironicamente chama de “rainha africana” – já havia declarado que não negaria o sacramento a Biden.

 

Sem falar do fato de que o Vaticano, onde Biden recebeu a Comunhão em outubro, após o encontro com o papa, deixou claro há muito tempo que não aprovaria a negação, mesmo que a USCCB a recomendasse.

 

No entanto, em junho, dois terços da USCCB votaram para redigir orientações que pudessem abrir as portas para tais recomendações – mais uma expressão da intensa divisão que permeia a Igreja dos Estados Unidos, assim como o próprio país. Essas rixas internas podem não parecer tão significativas. Mas a Igreja Católica – com mais de 1,3 bilhão de membros em todo o mundo e representando a maior denominação religiosa dos Estados Unidos – tem um poder político e social sem paralelos.

 

 

E a guerra civil aberta dentro do catolicismo – com o seu centro indiscutível nos Estados Unidos – tem implicações para tudo, do racismo às mudanças climáticas, dos direitos das mulheres ao nacionalismo de direita, a aceitação ou a rejeição violenta de medidas de saúde pública sustentadas pela ciência e de eleições democráticas.

 

Uma realidade há muito tempo negligenciada está começando a ficar clara: o centro ideológico da direita cristã – e, portanto, da direita estadunidense mais ampla – brota tanto do catolicismo tradicionalista quanto dos evangélicos que comandaram a maior parte da atenção pública desde a era Reagan. Ou, como afirma o historiador Gene Zubovich, “os católicos se tornaram o cérebro da direita religiosa nos Estados Unidos”.32

 

A luta em torno da Comunhão é apenas uma de uma série de bombas no mundo católico nos últimos meses, cada uma das quais teria sido inimaginável alguns anos antes. Em março passado, o bispo do leste do Texas, Joseph Strickland, uma celebridade de direita pelas suas visões pró-Trump e antivacina, ajudou a promover um plano para construir um complexo separatista no valor de 22 milhões de dólares [mais de 110 milhões de reais] e com mais de 230 hectares para católicos que se veem como um “resto” sitiado da Igreja que deve “preservar a fé” para as futuras gerações (esse plano agora está em pausa, depois que seu fundador admitiu ter um caso amoroso).

 

Em maio, 50.000 pessoas se inscreveram para o congresso antivacina de três dias organizado por Patrick Coffin, que contou com a participação de um bispo que sugeriu que Deus protegerá os católicos que recusam a vacina contra a Covid. Também incluía um padre que alertou que aceitar as vacinas – que ele e muitos outros cristãos de direita veem como contaminada pelo aborto, pela sua conexão distante com uma linhagem de células-tronco fetais de décadas atrás – representaria o primeiro passo para substituir o cristianismo pela “bruxaria diânica”.

 

Em julho, um padre do Wisconsin, James Altman – famoso por declarar que os católicos que votam nos democratas irão para o inferno, chamando os liberais de “vermes”, alertando os paroquianos para evitarem as vacinas e alegando que o dia 6 de janeiro foi uma operação de bandeira falsa – foi finalmente removido da sua Igreja e submetido a uma revisão formal. A subsequente blitz midiática de Altman lhe rendeu um espaço para falar na Conferência de Ação Política Conservadora e mais de 700.000 dólares [mais de 3,5 milhões de reais] em doações, uma parte dos quais ele prometeu repassar para o Church Militant e o LifeSiteNews.

 

 

Coalizões católicas conservadoras

 

Os católicos conservadores lançaram duas novas coalizões para padres “cancelados” e “perseguidos”. Voris também reuniu aquilo que ele alegou serem dezenas de padres anônimos, desconhecidos até uns dos outros, em um grupo que ele chamou de “Novas Catacumbas”, que poderia emitir declarações de dissidência, fomentando, em última análise, uma “revolução na Igreja” ao haver tantos clérigos “denunciando o mal na hierarquia”, a ponto de os bispos não poderem demiti-los todos de uma vez.

 

E um arcebispo aposentado, Carlo Maria Viganò, ex-embaixador do Vaticano nos Estados Unidos, que se autoimpôs o exílio depois de pedir a renúncia do Papa Francisco em 2018, escreveu uma carta aberta sugerindo que os católicos deveriam rezar pela morte do Santo Padre.

 

Tomando tudo isso em conjunto, é o suficiente para levar vários católicos dos Estados Unidos a dizerem que não reconhecem mais a sua religião. Ou, como observou o escritor conservador Jonathan Last no Bulwark há alguns meses: “É bastante seguro dizer que a guerra cultural rompeu a Igreja Católica nos Estados Unidos”.

 

Para forasteiros que não acompanharam a guerra interna provocada pela eleição do cardeal argentino Jorge Bergoglio ao papado em 2013, todas essas lutas devem parecer um espetáculo desconcertante. Mas, embora o Papa Francisco seja amplamente admirado pela sua atenção à pobreza e ao ambiente, e pelos seus ocasionais pedidos de moderação em “questões pélvicas”, ele é duramente condenado por membros da sua própria Igreja.

 

Tradicionalistas radicais”, que veem as reformas de quase 60 anos de idade do Vaticano II como o pecado original da era moderna, veem Francisco como um intruso herético. Mas até mesmo os católicos conservadores mais regulares também estão descontentes com a suposta liberalidade do papa, com o seu foco nos refugiados e com as suas críticas ao excesso capitalista.

 

 

Fissuras na Igreja

 

Michael Voris, que é consideravelmente menos bombástico em suas falas do que em seus editoriais, acredita que as fissuras na Igreja dos Estados Unidos já têm de 50 a 60 anos, e a única coisa nova é o modo como elas se tornaram públicas. Ele vê Trump como alguém que “pegou o que já estava em curso nas sombras, uma batalha sob o radar”, e trouxe isso à tona.

 

“Eu realmente acho que o que você está vendo são tensões teológicas dentro da Igreja”, ele me disse em 2020. “Elas borbulham até à borda quando você fala de justiça social, imigração ou aborto, ou qualquer tema candente que você desejar. Mas, por baixo de cada uma delas, qualquer que seja o lado que você escolher, ele se baseia na sua teologia.”

 

Uma forma de dizer que essas tensões chegaram a um ponto de ebulição é o fato de que Trump – sem uma compreensão nuançada da maioria das coisas, mas com um instinto de tubarão por sangue – as notou. Ao longo da sua campanha de reeleição, Trump ignorou a hierarquia da Igreja já conservadora em favor da extrema direita católica dissidente. Ele promoveu figuras como o podcaster Taylor Marshall, autor do livro anti-Francisco de 2019 intitulado “Infiltration: The Plot to Destroy the Church From Within” [Infiltração: o complô para destruir a Igreja a partir de dentro].

 

Trump tuitou um link para uma carta aberta que o arcebispo Viganò havia enviado a ele, alertando sobre uma “Igreja profunda” que estaria colaborando com o “Estado profundo” para minar o seu governo. Após a derrota de Trump, Viganò se juntou a Strickland e Marshall para discursar na “Marcha de Jericó” em Washington, em dezembro de 2020: um evento de oração inter-religioso em torno da “fraude” nas eleições e que foi um precursor da violência do dia 6 de janeiro. No início de janeiro, Viganò participou do podcast de Steve Bannon para dizer que os Estados Unidos seriam “varridos do mapa” se não lutassem contra o roubo eleitoral.

 

E Trump cortejou implacavelmente esse eleitorado ao nomear conservadores católicos para a Suprema Corte, incluindo Amy Coney Barrett, que substituiu a feminista liberal Ruth Bader Ginsburg.

 

Embora a direita católica represente uma minoria da Igreja dos Estados Unidos, ela exerce uma influência descomunal por meio de uma rede bem financiada de instituições de defesa e um ecossistema midiático paralelo. Os católicos conservadores e de direita estão altamente representados no judiciário estadunidense e dominam a Suprema Corte – sete juízes atuais da Suprema Corte, incluindo todas as três escolhas de Trump, foram criados como católicos, e seis desses sete representam a ideologia católica de direita. Sua prevalência é o resultado de um projeto conservador de longo prazo, orquestrado em grande parte pelo copresidente da Sociedade Federalista, Leonard Leo.

 

Leo também é presidente do National Catholic Prayer Breakfast e fundador do Judicial Education Project (agora chamado de 85 Fund), que financia uma grande variedade de organizações civis de direita.

 

Seguindo o dinheiro

 

Em uma recente série de artigos investigativos, o jornalista Christopher White, do liberal National Catholic Reporter, detalhou como doadores católicos de direita turbinaram think tanks e programas acadêmicos conservadores – como uma escola de negócios da Universidade Católica dos Estados Unidos que leva o nome do seu principal patrono, o advogado imobiliário de elite e hoteleiro Tim Busch – e canalizou milhões de dólares para esforços eleitorais, como uma iniciativa de supressão de eleitores fundada por organizações antiaborto alinhadas ao catolicismo.

 

Por sua vez, como Brian Fraga relatou no NCR em janeiro deste ano, grupos e instituições católicas conservadoras receberam milhões de dólares “obscuros” da rede Donors Trust, que financiou organizações nacionalistas brancas e também grupos políticos de direita que ajudaram a organizar os protestos do dia 6 de janeiro.

 

Mídias marginais, mas de alto tráfego, como o Church Militant, e os mais tradicionais, como a gigante EWTN (Eternal Word Television Network), a maior rede de mídia religiosa do mundo, com uma audiência reivindicada de 380 milhões de lares em mais de 150 países, prosperam no cenário da mídia católica. Tal como ocorre com suas contrapartes seculares como a Fox News – que regularmente toma emprestado o âncora-estrela da EWTN, Raymond Arroyo como coapresentador do “The Laura Ingraham Show” – histórias nascidas à margem tendem a se infiltrar no centro do universo midiático católico, comandando audiências muito maiores do que as das mídias originais.

 

“A mídia católica de língua inglesa é dominada por alguns poucos grupos muito poderosos, e muitos deles se opuseram muito [ao papa] de maneira aberta e descarada”, disse-me Christopher Lamb, autor da biografia papal “The Outsider”, de 2020. A EWTN deu plataformas acríticas a figuras como Bannon (que chamou o papa de “jesuíta marxista que está na cama com o Partido Comunista Chinês” e o acusou de permitir que o “marxismo cultural” se infiltrasse na Igreja) e o cardeal Raymond Burke, um dos críticos mais abertos do papa dentro da hierarquia da Igreja. Em 2019, ela até transmitiu ao vivo a homilia anti-Francisco de um padre.

 

Em setembro, pouco depois de passar por uma cirurgia, Francisco disse publicamente que “ainda estou vivo, embora alguns me quisessem morto”, e se referiu à EWTN, dizendo: “Existe, por exemplo, uma grande rede de televisão católica que continuamente fala mal do papa”.

 

O papa e a hierarquia

 

Esse retrato implacavelmente crítico do papa não representa a maioria dos católicos estadunidenses, 82% dos quais, de acordo com uma pesquisa do Pew Research, têm uma impressão favorável de Francisco. Mas as reportagens negativas cobram o seu preço, diz Mike Lewis, fundador do site católico moderado Where Peter Is, que rastreia e refuta a direita católica: “Ao contrário dos evangélicos, que podem abrir as suas próprias Igrejas, a Igreja Católica é contida em certo ponto pela sua hierarquia, que teoricamente é contida pelo papa. O único problema é que há um número crescente de católicos nesse movimento de extrema direita que não se submetem de forma alguma à hierarquia. Ou que, em vez de olhar para o seu bispo local, olha para Viganò, Burke e Strickland como seus líderes”. E “por causa das mídias sociais e de meios de comunicação como a EWTN e o LifeSiteNews”, acrescenta Lewis, “eles recebem uma atenção desproporcional em comparação com a sua autoridade real”.

 

“O problema é que a extrema direita é uma expressão de algo que não é apenas louco, mas também é visível na cultura clerical oficial da Igreja Católica [dos Estados Unidos]”, diz Massimo Faggioli, historiador da Igreja da Villanova University. “Há bispos cuja linguagem é mais diplomática, mas que expressam o mesmo desprezo por Francisco, o mesmo fascínio pelo projeto neonacionalista.”

 

 

Acrescentem-se a essa dinâmica os “intelectuais que alimentam esse incêndio”, diz ele, “porque acham que a ordem internacional liberal e cosmopolita deve ser queimada. Esse é o plano muito perigoso deles. E, infelizmente, os católicos liberais não têm nenhum plano”.

 

Na manifestação “Enough Is Enough” em Baltimore, todas essas tensões estavam em grande exibição. Os bispos reunidos no Baltimore Waterfront Marriott foram insultados pelos manifestantes do Church Militant a algumas centenas de metros de distância, que gritavam: “Que vergonha”, “Arrependam-se ou renunciem” e “Tranquem todos eles”.

 

À primeira vista, a manifestação se concentrou na suspeita do Church Militant – que se provou correta – de que os bispos não se moveriam no sentido de negar a Comunhão de Biden. Mas as reclamações de quem compareceu eram muito mais amplas, vistas em cartazes de protesto que diziam: “Vacinas contra a Covid-19 são feitas com bebês abortados” e “Chega: parem com a homo-heresia!”. Na manifestação, um homem de Nova Jersey estava fantasiado de “lobo em roupas de padre”, com uma grande pedra de papelão ao redor seu pescoço de lobo desgrenhado.

 

 

 

Descontentamento católico de direita

 

Embora Bannon não tenha aparecido – ele havia sido preso no dia anterior em conjunto com a investigação da Câmara sobre o dia 6 de janeiro, um desdobramento que um participante, que usava um botton com uma estrela de David escrito “passaporte da vacina”, atribuiu a maquinações da USCCB – um elenco de outros dissidentes da direita católica desfilou diante da multidão.

 

James Altman fazia parte de um painel de “padres perseguidos”, que alegavam ter sido marginalizados por se manifestarem contra os bispos liberais. Patrick Coffin também apareceu, falando por transmissão remota por que se recusou a usar uma máscara em qualquer avião que pudesse levá-lo a Baltimore. O evangelista de rádio Jesse Romero, ex-membro do conselho consultivo eleitoral católico de Trump, afirmou que os bispos estavam aliados aos “luciferianos que querem controlar e despovoar a terra”. A ex-apresentadora do Newsmax Michelle Malkin, recém-saída de sua aparição em um congresso nacionalista branco organizado pelo grupo American Renaissance, argumentou que a defesa dos imigrantes por parte da USCCB equivalia a uma agenda de fronteiras abertas destinada a “destruir a histórica nação estadunidense”.

 

Na plateia, os manifestantes expressavam suas próprias queixas. Um homem de Detroit disse que estava lá para pressionar os bispos a garantirem que as pessoas que apoiam o aborto, o casamento gay e o socialismo não recebam a Comunhão. Um participante do Arizona disse que toda a sua família abandonou o catolicismo porque paróquias frouxas não conseguiram catequizá-los adequadamente. E uma mulher de Maryland, com um botton da estrela de Davi, cujo cartão de visita dizia “dona de casa, mãe, agricultora”, me disse: “É muito difícil ver seus filhos se desviarem, porque não há nenhuma voz, ninguém que o apoia nas suas crenças”. A grande divisão na Igreja, disse ela, espelha a do país em geral, e ela tinha poucas esperanças de que isso fosse consertado em breve. “É como se estivéssemos desmoronando.”

 

Mas, se um sentimento de desespero pairava no ar, o Church Militant queria transformá-lo em ação. Enquanto a manifestação se aproximava da sua sexta hora, Joseph Gallagher, o jovem chefe do braço de ação do Church Militant, Resistance, pediu aos participantes que “se sujassem” lutando em nível local: fazendo piquetes contra os bispos para que reabilitem os “padres cancelados”, convidando Yiannopoulos para os campi universitários para pregar sobre como rezar para deixar de ser gay ou fazendo contraprotestos em um memorial a George Floyd para ressaltar a “verdadeira injustiça racial” do aborto. Implorando ao público para que superasse as distrações das mídias sociais em favor do extremismo justo, Gallagher disse: “Eu não quero olhar para trás e pensar: ‘O que mais eu poderia ter feito para não permitir que isso acontecesse?’”.

 

Embora o Church Militant possa continuar sendo o enteado duvidoso e de má reputação do mundo católico conservador mais amplo, a sua influência é indicativa de uma mudança maior. No ano passado, o National Catholic Reporter publicou uma história sobre como uma nova safra de padres de extrema direita está dividindo as paróquias católicas em todo o país.

 

Um padre mais velho disse à reportagem que esses jovens padres, imersos na política e nas mídias sociais de direita, às vezes até dispostos a dizer aos paroquianos em quem votar, estavam seguindo “um magistério alternativo” que encontram na internet, em sites como o Church Militant.

 

Algumas paróquias agora enfrentam uma estranha inversão da era pós-Vaticano II, em que católicos liberais e moderados saem em busca de uma Igreja que reflita os seus valores. Alguns são até obrigados a celebrar missas ad hoc em oficinas automotivas, diante de uma crescente hiperortodoxia em suas antigas paróquias.

 

 

Influência conservadora

 

Embora o número de membros da Igreja Católica nos Estados Unidos tenha caído quase 25% nos últimos 20 anos e as vocações sacerdotais e religiosas também tenham diminuído, os tradicionalistas da Igreja afirmam que seus seminários estão recebendo mais candidatos do que podem aceitar – parte de uma tendência que poderia acelerar a difusão das ideias da direita católica.

 

“Em uma Igreja que está encolhendo, a influência de seus membros mais comprometidos aumentará, não diminuirá”, escreveu o jornalista católico conservador Ross Douthat na revista cristã de direita First Things. “Em uma Igreja menor e mais fraca, a influência de ideias que parecem esquisitas para o católico médio de hoje provavelmente se ampliará, à medida que a Igreja se torna mais uma instituição de, para e dos esquisitos [weirdos]”.

 

Ao cair da noite em Baltimore, o símbolo de neon da refinaria Domino Sugar acendeu, e o evento final do dia começou: um julgamento falso dos bispos reunidos logo ao lado. Eles foram acusados coletivamente de cometer sete crimes graves, incluindo “destruir o patrimônio da Santa Mãe Igreja”. Enquanto a multidão cada vez menor gritava seu veredito a cada “acusação”, Voris a exortava: “Isto aqui é para valer. Vocês devem sair desta manifestação com a intenção de completar o trabalho de purificação da Igreja em suas vidas, independentemente do que isso lhes custe, independentemente do tempo que vocês tenham que gastar. É o dever de vocês combater esse mal e combatê-lo até ao seu último suspiro, se for preciso.”

 

Depois, ele os convidou a cruzar a ponte do píer até o Hotel Marriott para que pudessem lembrar aos bispos e padres lá reunidos “como o fogo do inferno realmente é quente”.

 

Leia mais