12 Janeiro 2022
"Essas impressões descortinam para o alcance global das reflexões do papa. Seu pensamento pode ser forçado? Não. Mas se dessa vez, no meu trabalho jornalístico sobre os 'assuntos do Vaticano', expresso um sentido não explicitado pelo discurso - em minha opinião, contudo, implícito no plano diplomático - digo claramente que os muros ajudam só 'os falcões' de ambas as partes, o que não é bom para nenhuma das duas partes ou das três partes principais. Não é bom para o mundo", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano e fundador da Associação de Amigos do Pe. Paolo Dall’Oglio, em artigo publicado por Settimana News, 11-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Líder global de uma Igreja global, o Papa Francisco sempre soube dirigir seus discursos ao corpo diplomático de todo o mundo, sem excluir nenhuma parte. Assim também aconteceu desta vez.
Mas no discurso ao corpo diplomático deste ano, percebi uma atenção especial ao Ocidente em crise de identidade, a um Ocidente tão opinativo quanto desorientado. É o Ocidente onde se espalham conspirações e fake news diante de um mundo global que não se presta a soluções fáceis - artificiais e instantâneas - para as crises, como para nos dizer claramente que nem tudo está à disposição do homem.
Neste Ocidente incapaz de resolver o problema da existência, nasce - ou retorna - a ideia da conspiração, porque nada pode escapar ao nosso controle a não ser pela nossa vontade. Esse mesmo Ocidente, opinativo e ao mesmo tempo desnorteado, acreditou que a história havia acabado, porque supõe que sua vitória seria total, absoluta, única, como seu pensamento. Portanto, se a história acabou, há apenas um pensamento, uma só fórmula, uma única possibilidade.
Deixe-me dar um exemplo: o Ocidente secularizado certamente se considera pluralista, liberal, porque derrotou todas as diversidades que não servem mais; se sua doutrina econômica é única, sua doutrina social também é e o será. A essas duas deformações que estão levando o Ocidente a se perder e, portanto, a se desorientar, Francisco ofereceu duas indicações importantíssimas, para buscar ainda uma orientação de sentido e de salvação humana, em um mundo maior que o Ocidente e que o Ocidente ainda não conseguiu reduzir a mera fotocópia.
Começo falando da conspiração que nos envenena de forma evidente e grave, principalmente por causa da pandemia. O que o papa disse sobre isso?
Aqui estão duas passagens decisivas a esse respeito: as novas derivas ideológicas e as vacinas. Francisco: “Muitas vezes nos deixamos determinar pela ideologia do momento, muitas vezes construída sobre informações infundadas ou fatos mal documentados. Toda afirmação ideológica rompe os laços da razão humana com a realidade objetiva das coisas. A pandemia, justamente, exige que tenhamos uma espécie de ‘cuidado pela realidade’, que exige encarar o problema de frente e adotar os remédios adequados para resolvê-lo. As vacinas não são instrumentos mágicos de cura, mas certamente representam, além dos tratamentos que devem ser desenvolvidos, a solução mais razoável para a prevenção da doença”.
Aqui há uma primeira referência global, com uma declinação claramente ocidental, no que diz respeito às conspirações e às derivas ideológicas.
Obviamente, seguiu-se a recomendação de olhar para a dimensão global da pandemia: “Infelizmente, devemos reconhecer com tristeza que para vastas áreas do mundo o acesso universal aos cuidados de saúde continua a ser uma miragem. Num momento tão grave para toda a humanidade, reitero o meu apelo para que os Governos e as entidades privadas envolvidas demonstrem senso de responsabilidade, elaborando uma resposta coordenada em todos os níveis (local, nacional, regional, global), através de novos modelos de solidariedade e instrumentos aptos a fortalecer as capacidades dos países mais necessitados.
Em particular, exorto os Estados, que estão trabalhando para estabelecer um instrumento internacional sobre a preparação e resposta às pandemias sob a égide da Organização Mundial da Saúde, que adotem uma política de partilha desinteressada, como princípio fundamental para garantir a todos o acesso a instrumentos de diagnóstico, vacinas e medicamentos. Da mesma forma, é desejável que instituições como a Organização Mundial do Comércio e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual adequem seus instrumentos jurídicos, para que as regras monopolistas não constituam mais obstáculos à produção e a um acesso organizado e coerente aos tratamentos em nível mundial". Difícil ser mais claro.
Passo agora para a história. Acabou mesmo? Ou estamos correndo o risco de perder, nessa ilusão, a capacidade de orientar o mundo global para o bem maior devido ao forte agravamento das relações multilaterais?
Diante dos embaixadores, o Papa disse: “A falta de eficácia de muitas organizações internacionais se deve também à visão diferente, entre os vários membros, dos objetivos que deveriam almejar. Não raramente o centro de gravidade se deslocou para temáticas que são por natureza geradoras de divisão e não estritamente relacionadas com a finalidade da organização, com o resultado de agendas cada vez mais ditadas por um pensamento que renega os fundamentos naturais da humanidade e as raízes culturais que constituem a identidade de muitos povos. Como já tive a oportunidade de afirmar em outras ocasiões, acredito que se trata de uma forma de colonização ideológica, que não deixa espaço para a liberdade de expressão e que hoje assume cada vez mais a forma daquela cultura do cancelamento, que invade muitos âmbitos e instituições públicas. Em nome da proteção das diversidades, acaba-se por cancelar o sentido de toda identidade, com o risco de silenciar as posições que defendem uma ideia respeitosa e equilibrada das diversas sensibilidades. Um pensamento único vai sendo elaborado, obrigado a renegar a história, ou pior ainda a reescrevê-la com base em categorias contemporâneas, enquanto toda situação histórica deve ser interpretada de acordo com a hermenêutica da época. A diplomacia multilateral é chamada, portanto, a ser verdadeiramente inclusiva, não suprimindo, mas valorizando as diversidades e as sensibilidades históricas que distinguem os diferentes povos. Desta forma, recuperará credibilidade e eficácia para enfrentar os próximos desafios, que exigem que a humanidade se una como uma grande família, que, embora partindo de pontos de vista diferentes, deve ser capaz de encontrar soluções comuns para o bem de todos”.
Todos os teóricos de uma inclusividade achatada, sem diferenças, partem do pressuposto de que a história acabou: só a ideia deles é a correta e, para entrar nela, todos devem abrir mão da soberania cultural, pessoal, ideal. Mas a história não acabou de forma alguma.
O pensamento único se ilude e ilude de que a história acabou, que o mundo é achatado, que todos podemos ser incluídos porque somos todos iguais. E, em vez disso, somos iguais porque somos diferentes - argumenta Francisco -, mas com idêntica dignidade. Isso significa que o papa não vê um mundo dividido em bons e maus, civilizados contra incivilizados.
Viver juntos não elimina o conflito, mas pode banir o ódio. O mundo da convivência não é um mundo em que nos entregamos a um administrador de condomínios, sem política, sem confronto e interesses diferentes. Seria a democracia que mata toda forma de democracia. Não aceitar essa visão multipolar significaria eternizar as guerras por procuração que estão se espalhando em tantas partes do mundo e que o papa listou em detalhes.
O esforço para ver, entender, dialogar, Francisco testemunhou isso muito bem, por exemplo, ao se deter sobre a Síria. Sob a constante pressão das Igrejas locais que são muito (ou talvez demais) compreensivas com o regime e com seu pedido de aliviar as sanções internacionais, o papa lembrou que essas sanções afetam a vida cotidiana de uma população que já sofre gravemente, mas também lembrou - e uma voz religiosa nesse sentido é certamente muito importante - que "reformas políticas e constitucionais são necessárias para que o país possa renascer".
De tanto não o ouvir lembrar, quase nos havíamos esquecido disso. Ele usou o mesmo critério para muitas outras crises. Chama a atenção que seu discurso tenha isolado a crise libanesa, colocando-a na pauta de seu discurso imediatamente após o prólogo sobre a pandemia - sozinha - antes mesmo da relevante parte dedicada à crise ambiental, para cuja resolução o tempo urge, além do capítulo dedicado aos migrantes e aos refugiados, como sempre muito veemente. Provavelmente um sinal de que para o Vaticano o desastre do pequeno Líbano é o indicador do fracasso do grande Mediterrâneo, incluindo a Europa.
Essas impressões descortinam para o alcance global das reflexões do papa. Seu pensamento pode ser forçado? Não. Mas se dessa vez, no meu trabalho jornalístico sobre os "assuntos do Vaticano", expresso um sentido não explicitado pelo discurso - em minha opinião, contudo, implícito no plano diplomático - digo claramente que os muros ajudam só "os falcões" de ambas as partes, o que não é bom para nenhuma das duas partes ou das três partes principais. Não é bom para o mundo.
A íntegra do discurso do Papa Francisco ao corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé, pode ser lido em português, clicando aqui.
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Francisco: diplomacia e crise do Ocidente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU