Como a Inteligência quebra esquemas de contrabando de ouro que sai de terras indígenas e chega ao mundo da moda. Confira última matéria da reportagem especial sobre o avanço agressivo do garimpo e desmatamento no Brasil.
A reportagem é de Cristina Ávila, publicada por Jornal Brasil Popular/DF, 04-01-2022.
O desmatamento em terras indígenas – consideradas como oásis em regiões devastadas no país – cresceu 138% nos últimos três anos. Os números sobre espaços ocupados pelos garimpos também são trágicos. Entre 2010 e 2020, tiveram um salto de 495% nas aldeias. Assassinatos, incêndios e ataques contra os povos originários se multiplicam na medida em que o presidente Jair Bolsonaro cospe ódio – “Não vou admitir que o Ibama saia multando a torto e a direito por aí, bem como o ICMBio. Essa festa vai acabar – disse ele logo após eleito.
Ao mesmo tempo, instituições como o Ministério Público Federal desbaratam quadrilhas internacionais do contrabando de ouro, minando a raiz do problema. “A cadeia de ouro no Brasil é algo absolutamente descontrolado. Porque basicamente a negociação de compra é feita mediante um recibo à mão” – exclama o procurador Gabriel Dalla Favera de Oliveira, titular do 2º Ofício da Procuradoria da República em Itaituba, no interior do Pará, um dos pontos focais desse mercado destruidor e assassino.
Nesta sexta e última parte de matérias iniciadas em agosto, o Jornal Brasil Popular aborda algumas situações da conjuntura nacional que provocaram o Ministério Público Federal a traçar estratégias de combate ao comércio ilegal do ouro.
Imagem: Ibama combate desmatamento e garimpo de cassiterita na Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto, Amazonas | Foto: Vinícius Mendonça / Ibama
Essa história começa em Itaituba. A “cidade-pepita”, município de médio porte, com agradável orla à margem do Tapajós e área central onde se acumulam lojas de compras do minério. Em praça pública, homenageia o garimpeiro – representado pelo homem e sua bateia. A atividade rudimentar do passado não condiz com a realidade das retroescavadeiras que trazem impactos muito maiores e muito mais rápidos em todo o país.
No Brasil, entre 2010 a 2020, a área ocupada por garimpos dentro de terras indígenas cresceu 495%, segundo a rede de especialistas denominada Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil (link disponível aqui). Em levantamento lançado em agosto, a organização divulgou que 93,7% dos garimpos, irregulares ou regulares, estão na Amazônia. As maiores áreas invadidas em territórios dos povos originários estão nos Kayapó (7.602 hectares) e Munduruku (1.592 hectares), no Pará, e Yanomami (414 hectares), no Amazonas e Roraima. Entre as 10 unidades de conservação com maior atividade garimpeira, oito estão no Pará. A maior é a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, com 34.740 hectares de exploração.
Imagem: Registro do garimpo Tenharim Igarapé Preto | Foto: Vinícius Mendonça / Ibama
Em 2019 e 2020, Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, no Sudoeste do Pará, foram responsáveis por 85,7% do total das indicações de florestas virgens como origem de extração de ouro – o que significa mascarar o minério para comercialização. Esse percentual significa 5,4 toneladas de ouro de origem ilegal do total de 6,3 toneladas que circularam no período no país.
As informações são da Ação Civil Pública assinada por procuradores do Ministério Público Federal em 10 de julho de 2021, entre eles Gabriel Dalla Favera de Oliveira, que se remete ao estudo “Legalidade da produção de ouro no Brasil”, realizado em acordo de cooperação técnica entre pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais e o Ministério Público Federal (MPF), por meio de um protocolo de monitoramento da mineração do ouro.
Imagem: Mulheres Munduruku presentes na luta contra a legalização da mineração e garimpos em terras indígenas | Foto: Arquivo Munduruku
“Fiquei estarrecido com a dimensão do problema”, exclama o médico Paulo Basta, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ele coordenou uma pesquisa sobre contaminação de mercúrio em 2019, com apoio da WWF, organização de conservação global, nas aldeias Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy, na Terra Indígena Sawré Muybu, no médio Tapajós, entre Itaituba e Trairão. Foram avaliadas 200 pessoas do povo Munduruku.
Um susto. “Não esperava que 100% de todas as pessoas, crianças, adultos, velhos, homens e mulheres, sem exceção estivessem contaminados. Mais da metade (57,9%) apresentaram níveis acima do limite máximo de segurança estabelecidos por agências de saúde”, ressalta Paulo Basta. Os mais graves índices foram detectados na aldeia Sawré Aboy, com nove em cada dez pessoas (87,5%) apresentando altos índices de contaminação.
“Um dos casos que me impressionou foi uma criança de 11 meses, com três vezes o índice máximo de contaminação, com sinais de retardo no desenvolvimento motor e possibilidade de sequelas permanentes. Em 52 crianças avaliadas, nove apresentaram problemas de desenvolvimento. Mais da metade dos menores de cinco anos estavam com pelo menos uma dose de vacina atrasada e cerca de uma em cada cinco com anemia”, resume Paulo Basta.
Também são impressionantes os dados referentes à avaliação de peixes. Selecionadas 88 espécies regularmente consumidos pelas indígenas, todas estavam contaminadas por mercúrio. Desses, 17 espécies em altos níveis. No topo da cadeia alimentar, a piranha-preta apresentou contaminação quatro vezes superior ao nível máximo recomendado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A situação melhorou, doutor? “Acredito que tenha piorado. Com o incentivo deliberado do presidente da República para invasões e legalização de garimpos em terras indígenas, muitas pessoas interessadas no garimpo têm chegado”, frisa o pesquisador da Fiocruz.
“A população Munduruku é de 12 mil pessoas. Todo mundo se alimenta de peixes, são sua fonte de proteína. A nossa pesquisa foi no Médio Tapajós. Sabemos que os Munduruku do Alto Tapajós vivem situações de invasões de seu território ainda mais graves”, acentua o médico.
Imagem: Um dos objetivos da delegação é dialogar com a sociedade sobre a situação de vulnerabilidade na qual se encontram as comunidades indígenas Munduruku | Foto: Adi Spezia/Cimi
“Vemos um absoluto descontrole por parte do estado brasileiro, especialmente no interior de terras indígenas; uma expansão desenfreada do comércio ilegal do ouro”, afirma o procurador Gabriel Dalla Favera. O Ministério Público Federal (MPF) se esforça na busca de estratégias inteligentes para combater a atividade ilegal, sem se restringir a ações de retirada de garimpeiros de áreas de exploração.
Diversos esquemas de lavagens de ouro têm sido desbaratados. Neste mês de dezembro, por exemplo, a operação da PF Terra Desolata acabou com os negócios de uma família italiana. A quadrilha chegou a adiantar a agente de garimpo milhões de reais para receber o minério proveniente de áreas dos Kayapó, no Pará. Os italianos tinham empresa com sede em Goiânia e realizou 3.179 operações de compras de joias, pedras e metais preciosos em cinco anos entre 2015 e 2020, movimentando mais de R$ 2.142 bilhões. Somente a garimpeiros do Sul do Pará a empresa desembolsou R$ 246,5 milhões, o que corresponderia a cerca de uma tonelada de ouro extraído de modo ilegal.
O estudo dos pesquisadores mineiros e MPF expõe os descaminhos do mercado de ouro com precisão que os próprios procuradores que assinam a ACP destacam como “impressionante” revelando fraudes que prepara o ingresso livre nos fluxos do comércio internacional. Essa ação foi direcionada à União Federal, ANM e Banco do Brasil, para que sejam suspensas autorizações administrativas concedidas empresas compradoras do minério e ainda permissões e efeitos de lavras garimpeiras vigentes em Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso.
Imagem: Bolsonaro ataca direitos sociais e culturais, ao mesmo tempo em que propaga a exploração indiscriminada da terra e propaga o ódio e a discriminação | Foto: Adi Spezia / Cimi
Segundo o procurador, “gigantes Distribuidoras de Títulos de Valores Mobiliários (DTVM) negociam bilhões de reais em ouro sem adotar nenhuma das cautelas necessárias para verificar se há origem em território indígena, tem licença ambiental, se há degradação ambiental. O minério é adquirido em um posto de compra de qualquer garimpeiro, em que a mera posição de vendedor e a vinculação do minério a uma Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), autorizada pela Agência Nacional de Mineração (ANM), se dá por suposição de boa-fé.
Mesmo com a falta de controles efetivos desse mercado, o estudo da UFMG e MPF consegue descortiná-lo com informações disponíveis, revelando práticas criminosas nos caminhos que fazem o ouro chegar limpo às vitrines de joalherias e aos dedos de celebridades do mundo da moda. As investigações se baseiam no cruzamento de imagens de satélite, algoritmos de classificação de uso do solo elaborados pela Agência Espacial Europeia, dados georreferenciados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Deter/Inpe/Mineração, do Ministério da Ciência e Tecnologia), plataforma online do Sistema de Informação Geográfica da Mineração da Agência Nacional de Mineração (Sigmine/ANM) e dados da Contribuição Financeira sobre Exploração Mineral (CFEM).
Esta reportagem é parte da série sobre garimpos, desmatamento e invasões a territórios indígenas realizada em parceria entre o Jornal Brasil Popular e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Veja também:
Brasília comanda avanços de garimpos e desmatamentos no Brasil (Parte V) - link disponível aqui
Brasília comanda avanços de garimpos e desmatamentos no Brasil (Parte IV) - link disponível aqui
Brasília comanda avanço de garimpos e desmatamento no Brasil (Parte III) - link disponível aqui
Brasília comanda avanço de garimpos e desmatamento no Brasil (Parte II) - link disponível aqui
Brasília comanda avanços de garimpos e desmatamentos no Brasil (Parte I) - link disponível aqui
ENTREVISTA | “Pelo menos 300 parlamentares são anti-indígenas”, avalia Cimi - link disponível aqui