15 Novembro 2021
“Os gestores do capital, sabedores da discrepância entre as formas de existência que engendra e as possibilidades reais de vida da população, promovem um sujeito identificado com a ideologia dos mercados, um ser que contribua com a manutenção do sistema, aceitando-o como próprio”, escreve Manuel Desviat, psiquiatra, que dirigiu e assessorou os processos de reforma psiquiátrica na Espanha e na América Latina, em artigo publicado por El Salto, 12-11-2021. A tradução é do Cepat.
A patologização de pessoas, minorias e populações originárias não é nova no capitalismo. Na origem, precisou da Ciência Médica para legitimar a patologização daqueles sujeitos que convinha à exploração industrial e colonial, povos originários e o descarte humano da industrialização. O que mudou é que, em nossos dias, o capitalismo conseguiu a patologização de toda a sociedade. Patologização do corpo e da mente, que caminha de mãos dadas com a medicalização do mal-estar, tornando a saúde um meio de controle, normatividade e fonte de lucro (a indústria farmacêutica e de tecnologia em saúde constitui a terceira fonte de acumulação de capital).
Em 1992, a jornalista Lynn Payer inventa o termo disease mongering (traficante de doenças, em sua tradução literal). A mercantilização das doenças. Criar doenças onde não existem, transformando pessoas saudáveis em pacientes. Fazer medicamentos para pessoas saudáveis era um velho desejo dos laboratórios farmacêuticos, agora o complexo médico-técnico-farmacêutico, aliado aos meios de comunicação e ao poder político, vai além, fabricando as doenças.
A coisa é simples: buscamos ou criamos um mal-estar (o sintoma), damos um diagnóstico e comercializamos um medicamento ou uma nova indicação para um medicamento já em uso (um antidepressivo para a timidez ou um ansiolítico para circunstâncias adversas ou uma anfetamina para a inquietação infantil), além de testes caros de alta tecnologia, quase sempre desnecessários.
Houve um tempo em que os sentimentos de inquietação ou infelicidade, que hoje acabam sendo diagnosticados como ansiedade ou depressão, foram assumidos como parte da ordem natural das coisas, mas hoje o gigantesco poder da empresa farmacêutica se apodera do discurso médico e dos tratamentos. Desde as últimas décadas do século XX, momento que coincide com o surgimento de novos psicofármacos muito mais caros, a indústria farmacêutica coloniza a psiquiatria, suas publicações, protocolos, guias, classificações (DSM; CIE), pesquisas, congressos e formação, penetrando nas associações profissionais e nas de familiares e usuários.
As associações de psiquiatria de todo o mundo mudam de orientação: a psiquiatria se torna (fármaco) biológica, deslocando as correntes psicodinâmicas e comunitárias. As associações de psiquiatria da infância e a adolescência promovem a medicação da criança, o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é um bom expoente de suas consequências: centenas de milhares de comprimidos de anfetaminas tornando viciadas milhões de crianças inquietas, distraídas ou passivas em todo o mundo. O conflito psíquico é rotulado como falha biológica e a terapia é redirecionada à farmacologia e à adaptação do sofredor à sua condição de doente, escondendo a crise subjetiva e suas razões, evitando a responsabilidade individual e coletiva.
Com o sofrimento psíquico transformado em uma questão biológica, uma falha neurofisiológica, não sobra espaço para a palavra, nem para a biografia do sujeito, a psiquiatria é reduzida a uma semiologia e alguns fármacos e a psicologia a uma questão de adaptação do comportamento: destrezas e habilidades de normalização, entendendo como normal o que é ditado pelos interesses do capital. O que comer, como ou com quem nos reunimos, como ou com quem dormirmos e, sobretudo, como nos comportamos e o que fantasiamos. Trata-se da adaptação a um estilo de vida regido pelo consumo e a concorrência.
Os enunciados performativos se multiplicam, ao mesmo tempo em que avança o processo que Foucault chamou de “medicalização indefinida”. A medicina se impõe ao indivíduo, doente ou não, como ato de autoridade. A publicidade captura o desejo. O capitalismo nos seduz e engaja em um consumo compulsivo nunca satisfeito, que nunca poderá ser satisfeito, em perene contradição entre o que se oferece e o que se pode adquirir. Entre a vida ideal representada e a realidade vivida. Terreno fértil para as “doenças” do íntimo.
A medicalização ofertará o remédio e furtará a responsabilidade da ordem social, psiquiatrizando o mal-estar. Em todo caso, a culpa cairá sobre o próprio padecente, incompetente para gerir o cuidado saudável de seu corpo e sua mente, incapaz de levar um estilo de vida saudável. Abordagem obscena, pois não é possível ignorar as condições de vida, os determinantes sociais do mal-estar, não é possível culpar o doente por estar doente, o pobre por ser pobre, o sem mérito por não possuir o mérito. A pessoa fica presa entre alguns valores de vida elevados como lei natural e a culpa, se não alcança os benefícios que o sistema diz que pode obter (Desviat, 2021).
Seja por meio da normatividade disciplinar, estudada por Foucault, seja pela manipulação psíquica e o domínio das tecnologias do eu, pregada por Byung-Chul Han, o capital se apodera do imaginário coletivo. Os gestores do capital, sabedores da discrepância entre as formas de existência que engendra e as possibilidades reais de vida da população, promovem um sujeito identificado com a ideologia dos mercados, um ser que contribua com a manutenção do sistema, aceitando-o como próprio.
Desde Marx, sabemos que a submissão está ancorada na situação material de alienação das forças de trabalho, mas também, e sobretudo hoje, pela estrutura ideológica da sociedade que penetra por todos os resquícios da vida cotidiana e identifica a imensa maioria com os valores da classe dominante, e, por conseguinte, com o Poder.
As práticas psíquicas completam o quadro, ofertando soluções aos problemas de convivência, insatisfação no trabalho, dificuldades na alcova e frustração cada vez menos tolerada. O amor, o ódio, o medo, a tristeza, a timidez, a culpa... A psiquiatria e a psicologia entram pelo orifício da frustração social, invadindo pouco a pouco a escola, a vida familiar, a cama, os sonhos. A sociedade exige não apenas que controlem a loucura, o ato psicótico imprevisível, mas remédios prêt-à-porter para o mal-estar cotidiano.
Vemos isso na recente pandemia viral. A covid-19 provocou um indiscutível aumento dos transtornos psíquicos, em especial na infância e na adolescência. Golpeando sobretudo bairros pobres, onde predomina a precariedade e modos de habitabilidade já em si insanos. Acontece em todas as catástrofes, mais ainda em fatos sociais totais, provocados direta ou indiretamente pelo homem. Mas não justifica a inclusão diária de psicólogos alarmados nos meios de comunicação de maior audiência, prontos para o diagnóstico e o conselho terapêutico, com declarações que estão transformando reações normais em situações anormais – o medo, a ansiedade, o desânimo, a incerteza –, em transtornos mentais.
A resposta do psicólogo que vende a doença emocional, ou as declarações de psiquiatras negando ou minimizando (ou atribuindo a uma ideologia esquerdista) o peso da pobreza, a precariedade e a desigualdade social na origem e prognóstico dos sofrimentos mentais, contra todo o conhecimento científico existente, não é por irresponsabilidade, nem por ignorância. Respondem às necessidades do capital financeiro, e a seus próprios interesses, e não às necessidades da maioria da população. Em sua “ideologia”, com a saúde transformada em mercadoria, a doença, a deficiência e as mortes que poderiam ser evitadas são danos colaterais à acumulação de capital.
As medidas frente à pandemia, a expressão pública da própria pandemia, desnudaram a contradição fundamental do sistema político econômico global, entre a representação e a realidade. O Estado não se legitima por buscar o bem comum, nem sequer por buscar um certo equilíbrio entre o capital e a cidadania, como aconteceu nas primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial. Muito pelo contrário, a gestão da pandemia revela sem qualquer possibilidade de acobertamento o conflito preexistente entre a acumulação capitalista e a saúde, o que significa um conflito entre o Capital e a Vida.
Diante desse cenário, cabe um texto de Marcuse que abordava qual pode ser o papel da psiquiatria e a psicologia e, por conseguinte, até que ponto é possível realizar uma psicologia e uma terapia de forma individual, em uma sociedade doente, em que o funcionamento normal supõe uma distorção e mutilação do ser humano. Concluindo que a solução só pode ser vislumbrada no plano político: na luta contra esse tipo de sociedade. “Certamente – escreve –, a terapia poderia manifestar essa situação e preparar a base material para tal luta, mas, nesse caso, a psiquiatria seria um empreendimento subversivo” (Marcuse, 1971).
Essa é a encruzilhada, a psiquiatria surgiu com um duplo mandato: buscar a cura como especialidade médica e colaborar no controle social do que é excluído pela ordem burguesa implantada pela revolução francesa. A desinstitucionalização, a reforma psiquiátrica realizada durante a segunda metade do século XX, fechou ou fez o hospital psiquiátrico perder peso assistencial e social, supondo que com o fim do manicômio emergiria a voz da não razão e com ela a voz da psiquiatria finalmente seria libertada.
Mas o fato é que, derrubadas as paredes dessa entidade, a dupla função social da psiquiatria se mantém, já que o fechamento do manicômio não emancipou o doente mental, a alienação social permanece e a voz da psiquiatria apenas trocou o manicômio pelo diagnóstico. Um diagnóstico que não se limita a identificar e reconhecer uma realidade clínica, mas a cria, por sua vez, criando o doente.
Retomando Marcuse e aceitando a existência do conflito psíquico inerente ao ser humano e, portanto, a necessidade de profissionais que o atendam, a questão é libertar a resposta psíquica o máximo possível da alienação social, do engano do capital. Para Joseph Gabel, psiquiatra marxista, a reificação capitalista despersonaliza as pessoas apenas na medida em que suas leis são aceitas como se fossem leis naturais, pois ao revelar a falsa consciência, ao se fazer consciente da situação que causa a alienação, cabe a ação política (Gabel, 1973).
Levado ao campo do sofrimento psíquico, poderíamos arriscar que o procedimento terapêutico deveria começar ajudando a reconhecer como se chegou ao mal-estar e de que forma se contribuiu para o seu desenvolvimento, a partir da passividade ou ação, conferindo sentido ao conflito subjetivo e, portanto, para a ajuda, terapia ou tratamento. O que, em muitos casos, nos quais a alienação social é agente causal ou potencializador, pode permitir politizar o mal-estar e a ação terapêutica.
Os movimentos de reforma psiquiátrica tornaram visível a loucura antes oculta atrás das paredes dos manicômios e com ela foram visibilizadas outras formas de exclusão social. Irrompeu publicamente a questão da diversidade como um direito cidadão.
O direito à diversidade como um pilar da sociedade democrática, pois não se trata de eliminar o que é diverso, mas, sim, mudar as regras do jogo para que a diversidade possa coexistir com os mesmos direitos, nos mesmos espaços, na mesma vida, daqueles que são considerados normais, saudáveis e com méritos.
É preciso redefinir a comunidade e reescrever conceitos como autonomia, dependência, liberdade, empoderamento, consciência da doença, normalidade, habitar, equidade, universalidade, recuperação (recovery), emancipação, assistência, tratamento, diagnóstico. Sem dúvida, há ocorrências incomuns com ou sem sofrimento psíquico, mas a esquizofrenia que tenta capturá-las é uma construção da psiquiatria. O que não elimina o conflito subjetivo, a quebra subjetiva ou a loucura, que como disse a Princesa Inca, poetiza e ativista da saúde mental, é dolorosa (Princesa Inca, 2011), razão pela qual, seja a partir da ajuda mútua, seja pelos ofícios da saúde mental, é preciso cuidar da pessoa que sofre.
São tempos adversos, pouco propícios para a ação coletiva, mas também e precisamente por isso surgem núcleos não só de resistência, focos que subvertem a vulnerabilidade em força mobilizadora, em arma política emancipadora, como destaca Judith Butler (2018). Fazer da doença uma arma, proclamava o Coletivo Socialista de Pacientes [mentais] (SPK), em 1970, amotinados em uma clínica universitária de Heidelberg. Muito tempo passou desde então. A indignação social e cidadã explodiu por todos os lugares em incêndios que, embora efêmeros, deixaram brasas que alimentam um novo discurso, novas formas de luta.
Na saúde mental, as reformas e a psiquiatria comunitária encontram seu teto e, portanto, a necessidade de novas formas para a saúde mental do comum, para a saúde mental coletiva. Pela primeira vez, desde o atendimento moderno à loucura e a consideração da diversidade, há uma construção dialógica no tratamento; pela primeira vez, há um encontro entre profissionais e seus sujeitos afetados. Um diálogo nem sempre fácil, e ainda extremamente minoritário, mas imprescindível se queremos ressignificar e inovar em modos de ferramentas conceituais que nos permitam uma nova clínica (tratamento), uma clínica e ação terapêutica participada, a partir do sujeito e o social, uma saúde mental coletiva.
Uma tarefa teórica e prática em que a ação terapêutica terá que buscar alianças nos movimentos de resistência e emancipação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A mercantilização do mal-estar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU