09 Novembro 2021
"Tomara, mais do que uma propaganda ao ateísmo, Eternos seja a possibilidade para a redescoberta do Deus verdadeiro e justo da lei eterna chamada natural", escreve Rogério Tadeu Mesquita Marques, presbítero da Diocese de Iguatu, no Ceará, doutorando em filosofia pela PUC-RS.
Depois de uma série infindável de filmes de heróis, a Marvel mais uma vez surpreende, após o período mais duro da pandemia, com um filme sobre a epopeia da raça humana, o filme Eternos, lançado na primeira semana de novembro nos cinemas do Brasil.
Os heróis são os deuses menores (os Eternos) que combatem a favor da sobrevivência humana sobre a terra contra uma espécie de deuses menores maus (os Deviantes). A vitória sobre os Deviantes há quinhentos anos atrás fez com que o grupo de Eternos se dividisse e cada qual passasse a buscar seu propósito de vida, alheio ao de salvar a humanidade dos Deviantes, dado por Arisheim (um deus maior, chamado de Celestial) já que tal missão tinha aparentemente acabado.
O clímax do filme, sem ser acusado de “spoiler”, acontece quando um novo Celestial está prestes a nascer desde dentro do planeta, o que acarretaria a destruição da Terra com todos os seres humanos, para o surgimento de novas galáxias a partir disso. Arishem mostra então que seu plano original para o mundo era, na verdade, que ele fosse destruído para dar origem a novas galáxias. A missão de salvar a humanidade era, então, só um meio para que a população humana crescesse a ponto de atingir um patamar necessário para que, com esta energia populacional, a semente de um novo Celestial pudesse germinar desde dentro do planeta, fazendo-o nascer e destruindo tudo.
Seria um novo à “Vingadores”, de deuses contra deuses, se não fosse a trama repleta de sinais de religião, história e representatividade. Foi este último ponto o mais louvado pela crítica, sendo um filme dirigido por uma mulher, ganhadora de Oscar, Chloé Zhao, com protagonistas femininos, primeiro Ajak e depois Sersi, apesar de Ikaris, um eterno, ser aparentemente o mais forte. Outro aspecto neste sentido foi a presença de representatividade nos Eternos para além do homem europeu heteronormativo, incluindo um casal negro gay e uma eterna que é surda com a qual todos se comunicam pela linguagem de sinais, finalizando até com a questão etária, ainda que sutilmente, através da Duende, que pela sua aparência infantil sofria bullying.
Para além desta crítica de destaque à inclusão, é de se pontuar o aspecto marcadamente religioso do filme, literalmente do Gênesis (“no princípio” são as primeiras palavras que aparecem no filme), até a promessa de um juízo final. A clara visão judaico-cristã de história linear, com um começo criado e um fim bem delimitado, ainda é salpicada por menção da arca de Noé e pela citação de um versículo do evangelho joanino, “a verdade vos libertará”. Mas fora isso, os símbolos religiosos que aparecem são de religiões mais antigas que o cristianismo, como o mito mesopotâmico da criação, que dá o nome a um Eterno (Gilgamesh), e de cerimônias e modos de oração hindus, talvez algo mais do que uma maneira para não parecer demasiado cristão.
Há também uma crítica veemente ao uso da violência na história, chamando de genocídio as mortes causadas pelos espanhóis na conquista das civilizações ameríndias e mencionando o uso desumano da tecnologia com a bomba atômica.
O aspecto de autodeterminação e autonomia, a meu ver, é de maior interesse. Aparece de início no conflito entre o propósito escolhido para a própria vida por parte dos Eternos e aquele escolhido originalmente para eles pelo Celestial Arishem. Essa situação se dá especialmente a partir dos anos 1500 da nossa era, com a vitória sobre os Deviantes, e que aumenta drasticamente diante da rejeição do plano de abandono da salvação da humanidade.
A menção é sutil sobre a independência trazida pela revolução tecnológica do século 16, fazendo o ser humano se sentir mais autônomo em relação ao modo como as coisas são e gerando assim conflitos com a vontade divina original. É exatamente o paralelo feito quando os Eternos, cada vez mais autônomos, individualistas e voluntaristas, naturalmente se revoltam contra a vontade do Celestial, usando de uma tecnologia criada pelo Eterno Phastos. Isso consegue, se não mudar a vontade divina, ao menos mudar a natureza contra a vontade divina, fazendo com que a vontade deles prevaleça.
Refletir sobre o início, a natureza, é refletir sobre o fim, o propósito de vida, e ponderar sobre o meio, a técnica. Um deus como Arishem é sim digno de ser rejeitado e contrariado em sua vontade, ainda que tal decisão, diante de sua onipotência, pareça inútil. O sentido do justo faz com que este deus voluntarista seja de fato injusto, portanto, não merecedor de obediência.
Finalmente a humanidade, tão sedenta de autodeterminação e liberdade, tão voluntarista, sem nenhuma referência ao plano original do criador, rejeita, numa nova epopeia, o mesmo voluntarismo como intrinsecamente injusto. Tomara, mais do que uma propaganda ao ateísmo, Eternos seja a possibilidade para a redescoberta do Deus verdadeiro e justo da lei eterna chamada natural.