“Que fique claro que a reforma [da Cúria] não será nada além do que os cardeais disseram, o que pedimos no pré-conclave”. Entrevista com papa Francisco à rádio espanhola Cope

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03 Setembro 2021



Esta entrevista foi amplamente divulgada na manhã de ontem [01-09-2021], entre 8h e 9h15. Na tarde de quarta-feira, o L'Osservatore Romano publicou a tradução provisória para o italiano. Com subtítulos nossos, propomos a primeira parte da entrevista. A segunda e última será publicada em um post às 18h.

 

A entrevista foi reproduzida por Il sismografo, 02-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Eis a entrevista.

 

O senhor, Santo Padre, "deve se operar"

E sim, essas coisas que nascem dos divertículos ... não sei bem .. aí se deformam, se necrosam ... mas, graças a Deus, chegamos a tempo, e agora estou aqui. Também soube que foi um enfermeiro quem primeiro o avisou, o alertou. Ele salvou minha vida! Ele me disse: “Deve se operar”. Havia opiniões diferentes. "Não, basta um antibiótico ...", e ele me explicou tudo muito bem. Um enfermeiro do nosso serviço de saúde, do hospital do Vaticano. Ele está aqui há 30 anos, é um homem de grande experiência. Esta é a segunda vez na minha vida que um enfermeiro salva minha vida.

 

A hospitalização de 4 de julho e a operação no final da tarde

Um dos ... não vou dizer sobre os segredos mais bem guardados do Vaticano, mas uma das questões que tradicionalmente mais interessa é a saúde do Papa. Sim, evidentemente. Não foi surpresa nenhuma, foi tudo planejado ... Foi tudo planeado e foi comunicado ... Depois do Angelus fui diretamente, eram quase 13h00, e foi comunicado às 15h30, quando eu já estava fazendo os primeiros exames.

 

Minha vida agora está normal

Agora posso comer de tudo, o que antes com os divertículos não podia fazer. Eu posso comer de tudo. Ainda tenho os remédios pós-operatórios, porque o cérebro tem que registrar que tem 33 centímetros a menos de intestino. E é o cérebro que gerencia tudo, o cérebro gerencia o nosso corpo e leva tempo para registrá-lo. Mas a vida normal, eu levo uma vida completamente normal.

 

A renúncia do Papa

Sim, disseram-me que isso virou moda na semana passada. Eva (Fernández) me contou, ela até me falou com uma expressão argentina muito bonita, e eu respondi que não fazia ideia porque li apenas um jornal aqui de manhã, o jornal de Roma. Eu leio porque gosto do jeito que ele coloca as manchetes, leio rápido e pronto, não entro no jogo. Eu não vejo televisão. Sim, recebo o relatório mais ou menos das notícias do dia, mas fiquei sabendo depois, alguns dias depois, que se dizia que eu estava renunciando. Quando um Papa está doente, sopra um vento ou furacão de Conclave (risos).

 

Encontro em Budapeste com o Premier Orbán

Não sei se irei me encontrar com ele. Sei que algumas autoridades virão me cumprimentar. Não irei ao centro de Budapeste, mas ao local do Congresso [Eucarístico], e há um salão onde me encontrarei com os bispos e ali receberei as autoridades que estiverem presentes. Eu não sei quem virá. Eu conheço o presidente porque ele estava na missa na Transilvânia, aquela parte da Romênia onde se fala húngaro, uma belíssima missa em húngaro, e ele veio com um ministro. Acho que não era Orbán ... porque no final da missa as pessoas se saúdam formalmente ... não sei quem vai vir ... E uma das coisas que gosto é não ir com um roteiro: quando estou na frente de uma pessoa, a olho nos olhos e deixo as coisas acontecerem por si só. Não me ocorre pensar no que direi a ele se o encontrar, são suposições que não me ajudam. Gosto das coisas concretas: as suposições te enredam, te atrapalham.

 

O Afeganistão com os talibãs após NATO

Sim. E, na verdade, eu tenho certeza que a Secretaria de Estado está fazendo isso porque o nível diplomático da Secretaria de Estado e de seus colaboradores é muito alto, e também aquele das Relações com os Estados. O cardeal Parolin é realmente o melhor diplomata que já conheci. Diplomata que acrescenta, não daqueles que subtraem, que está sempre à procura, um homem de acordos. Tenho certeza de que ele está ajudando ou pelo menos se oferecendo para fazê-lo. É uma situação difícil. Acredito que, como pastor, eu deva exortar os cristãos a orar especialmente neste momento. É verdade que vivemos em um mundo de guerras (estou pensando no Iêmen, por exemplo). Mas isso é algo muito especial, tem outro significado. E tentarei pedir o que a Igreja sempre pede nos momentos de maior dificuldade e de crise: mais oração e jejum. Oração, penitência e jejum, que é o que se pede nos momentos de crise.

 

Palavras de Putin atribuídas a Merkel

E em relação ao fato dos 20 anos de ocupação e depois se vai embora, lembrei-me de outros fatos históricos, mas me chamou a atenção algo que a chanceler Merkel, que é uma das grandes figuras da política mundial, disse em Moscou no último dia 20 [de agosto]. Eu traduzo, espero que a tradução esteja correta: “É preciso colocar um fim à política irresponsável de intervir de fora e de construir em outros países a democracia, ignorando as tradições dos povos”. Lapidar. Acredito que isso explique muito, que cada um o interprete. Mas o que essa mulher disse pareceu-me sábio.

O Ocidente renuncia à coalizão liderada pelos Estados Unidos e pela própria União Europeia.

São três coisas diferentes. O fato de desistir é lícito. O eco que isso me traz é outra coisa. E, terceiro, você disse: "abandoná-los à própria sorte"; eu diria que o modo com que se desiste, o modo com que se negocia uma saída, não é isso? Pelo que podemos ver, todas as eventualidades não foram levadas em consideração aqui - ao que parece, não quero julgar. Não sei se haverá uma revisão ou não, mas certamente houve muito engano de parte, talvez, das novas autoridades. Falo engano ou muita ingenuidade, não entendo. Mas aqui eu veria o modo. Creio que é isso que a senhora Merkel ressalta.

 

Suas grandes decepções como Papa

Tive várias. Já tive várias decepções na vida e isso é bom porque as decepções fazem você aterrissar de emergência. Há pousos de emergência na vida. E o problema é se levantar. Há uma canção alpina que é bem significativa para mim: “Na arte de subir o que importa não é não cair, mas não ficar caído” ... e você, perante uma desilusão, tem dois caminhos: ou ficar aí, dizendo que isso não está certo - como diz o tango: “Venham leis, venham e vão, que lá no inferno vamos nos encontrar!" - ou eu me levanto e volto para o jogo. E eu acredito que diante de uma guerra, de uma derrota, até mesmo da uma desilusão própria, ou de um próprio fracasso, ou do próprio pecado, é preciso se levantar e não ficar caído.

 

O diabo fica muito feliz que as pessoas acreditem que ele não existe. O diabo também anda pelo Vaticano?

O diabo anda por toda parte, mas os que mais me assustam são os diabos educados. Aqueles que tocam a sua campainha, que pedem licença, que entram em sua casa, que se tornam amigos ... Mas Jesus nunca falou sobre isso? Sim ele falou. Sim, ele falou sobre isso. Quando diz: quando o espírito imundo sai de um homem, quando alguém se converte ou muda de vida, começa a andar por aí, em lugares áridos, fica entediado ... E depois de um tempo diz: "vou voltar para ver como estão as coisas lá" e vê a casa toda arrumada, toda mudada. Então procura sete piores do que ele e entra com outra atitude. É por isso que digo que são os demônios educados, aqueles que tocam a campainha. A pessoa em sua ingenuidade o deixa entrar e o fim daquele homem é pior do que o princípio, diz o Senhor. Tenho horror dos diabos educados. São os piores, e nos deixamos enganar muito. Nos deixamos enganas muito.

 

Nove anos de pontificado ...

Claro que minha nomeação me pegou de surpresa porque eu tinha vindo com uma maletinha. Porque aqui eu usava a batina. Eles me deram uma de presente quando eu virei cardeal e a havia deixado na casa de uma das freiras para não ter que ... Eu pertencia a cinco ou seis congregações lá e então eu tinha que viajar, para não vir com isso. Eu vim como sempre. E deixei as homilias preparadas para a Semana Santa lá no bispado. Quer dizer, me pegou de surpresa. Mas não há nada que tenha inventado eu, o que fiz desde o início é tentar iniciar o que nós, cardeais, dissemos nas reuniões do pré-conclave para o futuro Papa: o próximo Papa deve fazer isso, isso e aquilo. E foi isso que comecei a colocar em ação. Acredito que ainda há várias coisas a serem feitas, mas não há nada que eu tenha inventado. Estou obedecendo ao que foi decidido naquele momento. Talvez alguns não tenham percebido o que estavam dizendo ou pensaram que não fosse tão sério, mas alguns temas provocam pruridos, é verdade. Mas não há originalidade minha no plano. E o meu projeto de trabalho, Evangelii gaudium, é algo em que tentei resumir o que nós, cardeais, dissemos naquele momento.

 

O senhor pensava que poderia ser eleito no Conclave de 2013?

Absolutamente não. Absolutamente não. Sim, tive que adiar coisas importantes ali. Nem me ocorreu devido à minha idade. Quando as coisas não te ocorrem, é só isso. Mas a única coisa que fiz foi tentar resumir tudo; pedi as atas daquelas reuniões - nas quais não estava presente - mas não para esquecer e começar tudo.

 

O caso do Cardeal Becciu e mais

Todos os meios devem ser usados para evitá-lo, mas é uma história antiga. Olhando para trás, temos a história de Marcinkus, da qual nos lembramos bem; a história de Danzi, a história de Szoka. É uma doença recidiva. Creio que hoje se avançou na consolidação da justiça do Estado do Vaticano. Há três anos tenta-se fazer com que a justiça se torne mais independente, com os meios técnicos, também com declarações de depoimentos gravados, as coisas técnicas atuais, nomeações de novos juízes, do novo ministério público ... e tudo isso tem avançado as coisas. Ajudou. A estrutura ajudou a enfrentar essa situação que parecia que nunca poderia existir. E tudo começou com duas denúncias de pessoas que trabalhavam no Vaticano e que em suas funções viram uma irregularidade. Eles apresentaram uma denúncia e me perguntaram o que fazer. Eu disse a eles: se vocês quiserem ir em frente, têm que apresentar tudo ao procurador. Foi um algo bastante exigente, mas eram duas pessoas boas, estavam um pouco temerosas e então, como para lhes dar coragem, coloquei minha assinatura sob a deles. Como dizer: esse é o caminho, não tenho medo da transparência e nem da verdade. Às vezes dói, e muito, mas é a verdade que nos liberta. Foi simplesmente isso. Ora, daqui a alguns anos pode aparecer algo mais. Espero que esses passos que estamos dando na justiça do Vaticano ajudem a garantir que tais fatos aconteçam cada vez menos. Sim, você usou a palavra corrupção e, neste caso, é claro, pelo menos à primeira vista, parece que é isso.

 

Do que o senhor mais tem medo neste episódio?

Está sujeito a julgamento de acordo com a legislação do Vaticano. Antigamente os juízes dos cardeais não eram juízes de Estado, como é o caso hoje, mas sim o chefe do Estado. Eu sinceramente espero que ele seja inocente. Entre outras coisas, ele foi meu colaborador e me ajudou muito. É uma pessoa que estimo muito, ou seja, meu voto é que saia bem disso. Mas, convenhamos, é uma forma afetiva de presunção de inocência. Além da presunção de inocência, quero que ele se saia bem. No entanto, será a justiça a decidir.

 

Os limites da Missa Tridentina

Não sou do tipo que bate na mesa, não consigo. Eu sou bastante tímido. A história de Traditionis custodes é longa. Quando primeiro São João Paulo II - e depois Bento XVI mais claramente com Summorum pontificum - deu a possibilidade de celebrar com o missal de João XXIII (anterior ao de Paulo VI, que é o pós-conciliar), para aqueles que não se sentiam à vontade com a liturgia atual, que tinham certa nostalgia…. pareceu-me uma das iniciativas pastorais mais belas e humanas de Bento XVI, que é um homem de primorosa humanidade. Foi assim que tudo começou. Esse foi o motivo. Ele dizia que depois de três anos uma avaliação tinha que ser feita. E foi feita e parecia que estava tudo bem. E estava bem. Dez anos se passaram desde aquela avaliação até hoje (ou seja, treze desde sua promulgação) e no ano passado vimos com os responsáveis do Culto e da Doutrina da Fé que era conveniente fazer outra avaliação para todos os bispos do mundo. E assim foi feito. Demorou um ano inteiro. Depois se estudou a questão e, a partir dela, a inquietude que surgiu com mais força foi que algo feito para ajudar pastoralmente aqueles que haviam vivido uma experiência anterior estivesse se transformando em uma ideologia.

 

Era preciso reagir, com normas claras.

Ou seja, de algo pastoral a ideologia. Então era preciso reagir, com normas claras. Normas claras que colocassem um limite para aqueles que não haviam vivido aquela experiência. Porque parecia que estava na moda em alguns lugares que jovens sacerdotes "ah não, eu quero ...", e por não saberem latim, não sabiam o que diz. E, por outro lado, sustentar e consolidar o que foi dito no Summorum Pontificum. Fiz uma espécie de esquema, o fiz estudar e trabalhei, trabalhei muito, com gente tradicionalista de bom senso. E surgiu esse cuidado pastoral que precisamos ter, com alguns limites, mas bons. Por exemplo, que a proclamação da Palavra seja em uma língua que todos entendam; do contrário, é zombar da Palavra de Deus. Pequenas coisas. Mas sim, o limite é muito claro. Depois desse motu proprio, um sacerdote que quer celebrar e não está nas condições de outros - que o faziam por nostalgia, por desejo, etc. - deve pedir permissão a Roma. Uma espécie de autorização de bi-ritualismo, que só Roma pode dar. [Como] um sacerdote que celebra no rito oriental e rito latino, é bi-ritual, mas com a permissão de Roma. Ou seja, até hoje, as anteriores continuam, mas mais ordenados. Pedindo também que haja um sacerdote responsável não só pela liturgia, mas também pela vida espiritual daquela comunidade. Se você ler bem a carta e ler bem o decreto, verá que está simplesmente reordenado de forma construtiva, com cuidado pastoral e evitando um excesso para aqueles que não são ...

 

E o caminho sinodal que a Igreja Católica alemã começou?

Sobre isso tomei a liberdade de enviar uma carta. Uma carta que eu mesmo escrevi em castelhano. Levei um mês para escrevê-la, entre orar e pensar. E enviei-o no devido tempo: original em castelhano e tradução em alemão. E assim expressei tudo o que sinto sobre o sínodo alemão. Só isso. O protesto do sínodo alemão não é novo ... se repete a história.. Sim, mas também não o veria de uma forma demasiado trágica. Em muitos bispos com quem conversei, não há má vontade. É um desejo pastoral, mas não leva em conta algumas coisas que explico na carta que precisam ser levadas em consideração.

 

Sempre se diz que "a Cúria deve ser reformada", mas a Cúria parece irreformável.

Se você olhar como foi iniciado desde o começo o que os cardeais disseram no pré-conclave até agora, você também verá que a reforma está andando no mesmo ritmo e bom. O primeiro documento que marca a linha, tentando resumir o que foi dito pelos cardeais, é Evangelii gaudium. Se há um problema na Evangelii gaudium que eu gostaria de assinalar, é o da pregação. Sujeitar os fiéis a longas lições de teologia, de filosofia ou de moralismo, que não é pregação cristã. Na Evangelii gaudium, peço uma reforma séria da pregação. Alguns entendem, outros não entendem ...

Para colocar um ponto final, né? Mas a Evangelii gaudium tenta resumir em geral como atitudes o que foi expresso pelos cardeais no pré-conclave. E com relação à constituição apostólica Praedicate Evangelium, que está sendo elaborada sobre esse ponto, e o último passo é que eu a leia - eu tenho que ler porque tenho que assiná-la e tenho que ler palavra por palavra - ela vai não apresentar nada de novo em relação com o que estamos vendo até agora. Talvez alguns detalhes, algumas mudanças sobre os dicastérios que se uniram, dois ou três dicastérios a mais, mas tudo já foi anunciado: por exemplo, Educação vai se unir à Cultura. Propaganda fide vai se unir ao dicastérios da Nova Evangelização. Mas tudo já foi anunciado. Não haverá nada de novo em relação com o que foi prometido. Alguns me dizem: “Quando sairá a constituição apostólica da reforma da Igreja, para ver a novidade?”. Não. Não haverá nada de novo. Se houver algo novo, são pequenos ajustes. Está na última parte, que está atrasada devido à minha doença. Está sendo cozinhado a fogo baixo, de modo que englobe tudo. Que fique claro que a reforma não será nada além do que os cardeais disseram, o que pedimos no pré-conclave e o que está sendo visto. Está sendo visto.

 

Uma reprimenda na Rádio Vaticano e no L’Osservatore Romano?

A reação me fez sorrir. Eu disse duas coisas. Em primeiro lugar, uma pergunta: quantas pessoas leem L'Osservatore Romano? Não disse se são muitos ou poucos que o leem. Foi uma pergunta. Considero que seja justo perguntar, certo? E a segunda pergunta, que foi mais um tema, [a fiz] quando, depois de ver todo o novo trabalho de união, o novo organograma, a funcionalização, falei sobre a doença dos organogramas, que dá a uma realidade um valor mais funcional do que real. E eu digo: com toda essa funcionalidade, que é para funcionar bem, não [se deve] cair no funcionalismo. Porque o funcionalismo é o culto dos organogramas, independentemente da realidade. Essas duas coisas que eu disse, parece que alguns não as entenderam ou que alguns não gostaram delas, e não sei por que as interpretaram como uma reprimenda. É algo normal, é uma pergunta e um aviso. Sim ... alguém se sentiu posto de fora. Acho que o dicastério promete muito, é o dicastério que tem mais orçamento na cúria no momento, chefiado por um leigo - espero que em breve haja outros chefiados por um leigo ou por uma leiga - e que está decolando com novas reformas. O L'Osservatore Romano, que eu chamo de "jornal do Partido", tem feito grandes progressos e é maravilhoso ver os esforços culturais que está realizando.

 

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