26 Julho 2021
“Quando vivemos em uma realidade social e política em que mentiras e desinformação são disseminadas e usadas de forma manipuladora para manter o poder, é importante que os líderes políticos e religiosos ajam contra (agere contra) tais mentiras e comecem a reconhecer e falar a verdade ao povo estadunidense. Em nosso envolvimento na vida política, além de conhecer o ensino da Igreja e como isso está relacionado aos nossos compromissos de política, é importante ter discernimento em relação às formas concretas de perseguir essas políticas e prestar atenção ao 'início, meio e fim' de como o processo se desenrola”, escreve Patrick Kelly, professor associado de Estudos Religiosos na University of Detroit Mercy, EUA, e professor visitante da disciplina de 'Discernimento: Chave para encontrar a vontade de Deus', na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, em artigo publicado por America, 21-07-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em uma conversa no último ano sobre os esforços de Donald Trump e alguns líderes Republicanos para reverter a eleição presidencial de 2020 baseado na mentira de que as eleições foram fraudadas, o ex-secretário de Defesa e senador Republicano William Cohen disse: “Para Trump isso é patológico, mas para aqueles que estão o apoiando, é diabólico”.
Cohen não é a primeira pessoa a se referir ao “diabólico” – significando ou relacionado ao diabo – com referência à dinâmica em nosso país nos últimos tempos. A conselheira espiritual de Trump, Paula White, referiu-se frequentemente ao “demoníaco” ao falar da agenda dos críticos do ex-presidente, assim como outros. Mas como devemos entender a relevância desses termos em nosso contexto? Os ensinamentos de Santo Inácio de Loyola podem lançar alguma luz sobre esta questão e também podem oferecer alguns conselhos valiosos para líderes políticos e outros neste momento.
Reconheço que nem todos leitores deste artigo são cristãos, e nem mesmo todos os cristãos acreditam na existência pessoal de um “diabo”, ou espíritos bons e maus, como Santo Inácio acreditava (e a Igreja Católica hoje). Mas mesmo em um sentido simbólico, os termos “diabólico” ou “demoníaco” na tradição cristã estão associados à rebelião contra Deus, bem como à corrupção nos níveis mais elevados da vida do espírito. E eles estão associados ao que é mais destrutivo para a fé, pessoas e comunidades. É por isso que a frase “inimigo de nossa natureza humana” é tradicionalmente usada para se referir ao diabo. Por isso, vale a pena considerar o que a tradição tem a dizer sobre esses termos, até porque ainda são usados por figuras públicas para interpretar acontecimentos contemporâneos em nosso país, frequentemente com significados muito divergentes.
Para Santo Inácio, nossos pensamentos, atos de vontade ou experiências afetivas vêm de uma de três fontes: de nós mesmos sob algum controle de nosso livre arbítrio, de um espírito bom (Deus ou um anjo) ou de um espírito mau. Lúcifer é o líder dos espíritos malignos; Inácio usa a frase mencionada, “inimigo de nossa natureza humana”, para se referir a ele.
Nos Exercícios Espirituais, Inácio descreve como o “inimigo” envia seus capangas “por todo o mundo, sem perder nenhuma província, lugar, estado ou pessoa individual”. Nesse sentido, ele é um operador de oportunidades iguais. Católicos, protestantes, bispos, papas, leigos, santos ou pessoas enredadas no pecado, pessoas de outras religiões e sem religião, todas as raças, culturas, homens e mulheres de todas as orientações sexuais, Democratas e Republicanos: todos são alvos potenciais. O próprio Inácio experimentava o inimigo regularmente e, no final, isso foi uma bênção, porque foi a maneira como ele adquiriu conhecimento sobre suas táticas e enganos. A presença do inimigo, então, não significa necessariamente que a pessoa seja imoral. Inácio não se referia a seres humanos específicos como demoníacos, nem como demônios.
Segundo a doutrina cristã, todos os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus e todos são pecadores, o que torna teologicamente impossível projetar todo pecado e mal em pessoas de outra raça, tradição religiosa ou partido político, o mesmo acontece com o entendimento de Inácio sobre o inimigo. O tipo de projeção que vê tudo de bom em meu grupo e tudo de ruim em outros grupos é maniqueísta – mas não cristã. Infelizmente, essa forma de pensar é comum nos Estados Unidos e até na Igreja Católica hoje.
Para Inácio, quando as pessoas encontram o inimigo em suas vidas, se lidarem bem com ele, pode ser uma graça no longo prazo. Segundo Inácio, o inimigo gosta de operar em segredo. Quando suas maquinações vêm à tona, ele fica profundamente aborrecido, porque vê que não pode mais cuidar de seus negócios ruinosos. Esta é uma forma de entender o contexto do recente comentário do Papa Francisco, feito depois que ele condenou o ataque ao Capitólio dos Estados Unidos: “Graças a Deus que isso estourou e houve uma chance de ver bem, porque agora se pode tentar curar”.
Nas Escrituras, o “diabo”, ao qual Cohen alude, é conhecido como um enganador e o pai da mentira. Como disse Jesus: “Quando mente, fala segundo a sua própria natureza, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44; ver também 2 Cor 11, 3; 13-15 e Ap 12, 9). Não sou psicólogo e não posso avaliar a condição psicológica de Donald Trump. Talvez seja verdade, como diz Cohen, que seu estado é patológico. Mas uma coisa é certa: ele tem um padrão de mentira claramente estabelecido. Em uma entrevista dois dias antes da insurreição no Capitólio, Cohen disse:
“O presidente e seus apoiadores saturaram tanto as ondas de rádio com mentiras, desinformação, má informação, rumores [e] especulações que as pessoas estão tendo problemas para entender o que é verdadeiro e o que é falso. Já estamos nisso há quatro anos, mas agora isso não é um bom presságio para os Estados Unidos, porque estamos no abismo da destruição de nossa democracia. E então temos que voltar aos princípios-chave. Precisamos ter verdade em todas as facetas de nossas vidas”.
A mentira mais importante que Trump disse é que ele ganhou a eleição presidencial de 2020 com uma vitória esmagadora e a eleição foi roubada dele, tornando Joe Biden um presidente ilegítimo. Na esteira do apoio de muitos políticos Republicanos a essa mentira e da subsequente insurreição no Capitólio, Arnold Schwarzenegger, o ex-governador republicano da Califórnia, foi levado a falar pessoalmente aos estadunidenses sobre sua experiência de crescer na Áustria após a Segunda Guerra Mundial:
“Então, eu cresci nas ruínas de um país que sofreu a perda de sua democracia. Nasci em 1947, dois anos após a Segunda Guerra Mundial. Cresci, fui cercado por homens quebrados bebendo por sua culpa por sua participação no regime mais perverso da história. Nem todos eram antissemitas raivosos ou nazistas. Muitos simplesmente seguiram passo a passo pela estrada. Eram as pessoas da porta ao lado”.
Ele concentrou suas observações nessas pessoas comuns que acompanharam Hitler. Ele contou a história de seu próprio pai voltando para casa bêbado uma ou duas vezes por semana e como ele “gritava, batia em nós e assustava minha mãe. Não o considerei totalmente responsável porque nosso vizinho estava fazendo a mesma coisa com sua família, e também o outro vizinho. Eu ouvi com meus próprios ouvidos e vi com meus próprios olhos. Eles estavam com dor física pelos estilhaços em seus corpos e emocionalmente pelo que viram ou fizeram”.
O que é que poderia ter levado tais homens – os vizinhos – à participação no regime nazista? Schwarzenegger é inequívoco: “Tudo começou com mentiras, mentiras, mentiras e intolerância”. Em seu apelo aos estadunidenses, ele alertou sobre o perigo de concordar e até mesmo promover mentiras hoje: “O presidente Trump procurou anular os resultados de uma eleição justa. Ele procurou um golpe enganando as pessoas com mentiras. Meu pai e nossos vizinhos também foram enganados com mentiras, e eu sei aonde essas mentiras nos levam”.
Santo Inácio concordaria com o Cohen e Schwarzenegger sobre a importância de lutar contra as mentiras em nossa vida social e política. Em seu próprio contexto e em seus escritos sobre discernimento, ele adverte sobre o diálogo ou a companhia do diabo. E se o diabo está contando mentiras, é necessário ousadia e coragem para agir contra (agere contra) o que ele está propondo, a contraposição à verdade. Como disse Inácio, “o inimigo enfraquece caracteristicamente, perde a coragem e foge com suas tentações quando a pessoa engajada em esforços espirituais permanece ousada e inflexível contra as tentações do inimigo e vai diametralmente contra eles”.
Mitt Romney ilustrou bem isso em seu discurso após a insurreição no Capitólio, quando apontou que nenhuma auditoria da eleição (alguns membros do Congresso estavam propondo uma) jamais faria diferença para os eleitores que acreditam na mentira de que a eleição foi roubada, se o ex-presidente Trump continuasse dizendo a eles que “sim, foi roubada”. Em vez disso, Romney disse: “A melhor maneira de mostrar respeito pelos eleitores que estão chateados é contando-lhes a verdade”.
Para Inácio, se alguém dialoga com o inimigo e suas mentiras, então, como um valentão, o inimigo se fortalece. Inácio guarda algumas de suas linguagens mais dramáticas para tal situação. Quando uma pessoa está agindo por medo ou perde a coragem, ele escreve: “Não há besta na face da terra tão feroz quanto o inimigo da natureza humana”. Quando o inimigo perceber a covardia, ele tentará tomá-lo por tudo o que você vale, causando estragos de todas as maneiras que pode.
Cohen viu uma dinâmica semelhante quando membros Republicanos do Congresso, por medo ou falta de coragem, concordaram e apoiaram as mentiras do então presidente:
“Você tem que lembrar que o atual ocupante da Casa Branca é um mestre de cerimônias, e o que ele espera fazer é estalar o chicote e [assistir] a todos os elefantes pularem em suas cadeiras. Aqueles que estão tão ansiosos para apoiar este esforço para derrubar o voto do povo americano, o que eles precisam entender é que ele vai continuar a estalar o chicote, esteja ele no cargo ou fora dele. E todas as vezes eles vão ter que pular e para satisfazer a ele e a seus apoiadores”.
Além disso, observou ele, não haveria fim para o chicote:
“Você nunca vai satisfazer o presidente Trump. Ele sempre vai aumentar a aposta. Ele não pode ser satisfeito… E então eles serão extorquidos ou subornados para evitar uma primária em 2022 ou 2024?”.
De acordo com Santo Inácio, o inimigo é inteligente e sutil quando precisa ser. Quando ele sabe que uma pessoa de fé não pode mais ser tentada por pecados óbvios, ele “assume a aparência de um anjo de luz, para entrar seguindo o mesmo caminho que a alma devota e depois sair por seu próprio caminho com sucesso para si mesmo”. Sua maneira de proceder é propor “pensamentos bons e santos atraentes para uma alma tão íntegra e então se esforçar aos poucos para conseguir o que quer, atraindo a alma para seus enganos ocultos e más intenções”.
É por isso que mesmo enquanto avançamos na vida cristã, é importante discernir os pensamentos ou sentimentos que temos de natureza sagrada ou espiritual. Como podemos saber se um pensamento bom ou santo, ou mesmo uma experiência de consolo espiritual, vem de Deus ou é uma tentação? Para Inácio, é importante prestar atenção a toda a cadeia de nossos pensamentos. Como ele diz: “Se o começo, o meio e o fim são todos bons e tendem para o que é totalmente bom”, essa é uma indicação de que vem de Deus. “Mas se a sequência de pensamentos que um espírito causa termina em algo mau ou desviante, ou em algo menos bom do que o que a alma originalmente se propôs fazer; ou ainda, se enfraquece, inquieta ou perturba a alma, roubando-lhe a paz, a tranquilidade e o sossego de antes, tudo isso é um sinal claro de que vem do espírito maligno, inimigo do nosso progresso e da salvação eterna”.
O princípio chave aqui para o discernimento é que podemos dizer se esses tipos de pensamentos ou experiências espirituais são de Deus ou não baseados em seus frutos e para onde eles levam. Jesus usou este princípio quando advertiu seus discípulos de “falsos profetas, que vêm a vocês vestidos de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes”, e aconselhou que “os conhecereis pelos seus frutos” (Mt 7, 15-16a).
Como funciona na prática que as pessoas possam começar inspiradas por “pensamentos bons e santos”, mas acabar em uma situação que é menos boa do que a que estavam propondo ou imoral, ou que as deixa em turbulência e perturbadas em seu espírito? Considere os seguintes exemplos.
Em primeiro lugar, os legisladores Republicanos que são religiosos e são atraídos por Donald Trump por causa de sua postura pró-vida podem inicialmente ter considerado a defesa do ex-presidente contra todos os críticos como importante, porque consideravam isso como uma proteção à vida de inocentes. Esses “pensamentos bons e santos” os motivaram. Eles podem ter dito na época que estavam dispostos a ignorar as preocupações sobre o caráter de Trump pelo que estava em jogo na frente política.
Mas com o passar do tempo, eles também podem ter ficado em silêncio sobre o padrão de mentira do presidente, e até mesmo defendido suas mentiras, incluindo a mentira de que ele ganhou a eleição com uma vitória esmagadora e que ela foi roubada dele. Nesse ponto, estando “envolvidos” com os planos enganosos de Trump, esses legisladores podem ter votado contra a certificação dos votos do Colégio Eleitoral dando a Biden uma vitória definitiva na eleição presidencial, contribuindo para uma situação em que dezenas de milhões de americanos acreditam que Biden é um presidente ilegítimo e minam nossa democracia.
Um segundo exemplo pode ser encontrado no caso de alguns padres católicos. Por seguirem os ensinamentos da Igreja sobre a santidade de toda a vida humana, eles podem ter se sentido atraídos por Trump pela sua posição sobre o aborto. A partir daí, no entanto, eles podem ter chegado à conclusão, à medida que a eleição se aproximava, de que qualquer um que votasse em Biden estaria cometendo um pecado mortal – porque não se pode ser católico e Democrata. Eles podem ter dito isso aos seus paroquianos em uma homilia, ou feito vídeos com esta mensagem. Eles poderiam ter dito que o “fogo do inferno” aguarda qualquer um que planeje votar de uma forma diferente de como eles insistiram que um verdadeiro católico deveria votar.
Tal abordagem poderia ter levado alguns católicos a votar em Trump em vez de Biden. Mas, como o jesuíta James Martin corretamente apontou: “isso poderia também levar à raiva dos pastores, à divisão nas paróquias, ao ódio aos candidatos e políticos eleitos, ao desprezo pelas pessoas que pertencem a um partido, à raiva pelo resultado das eleições, ao desespero com o futuro do país e, em última instância, à violência. Pois se o ‘partido da morte’ ganha poder, então deve-se resistir, por todos os meios necessários”.
De acordo com Inácio, uma vez que percebemos que o início, meio e fim de nossos pensamentos bons ou santos ou experiências espirituais levaram a algo menos bom do que estávamos originalmente propondo, a algo mau, ou a perturbação e turbulência em nosso espírito, é importante examinar toda a sequência de nossos pensamentos – “isto é, como eles começaram, e então como, pouco a pouco, o espírito maligno se esforçou para trazer a alma para baixo da doçura e alegria espiritual em que estava, e finalmente a trouxe para sua própria intenção má. O propósito é que por meio dessa experiência, agora reconhecida e notada, a alma possa se proteger no futuro contra essas armadilhas características”.
Para resumir alguns dos elementos-chave do ensinamento de Santo Inácio sobre este tipo de discernimento:
“O diabo é entendido por Jesus e nas escrituras como um enganador e pai da mentira. É importante não entreter suas mentiras ou dialogar com o diabo, mas antes agir contra (agere contra) o que o inimigo está propondo, contra-atacando com a verdade”.
No caso de cristãos experientes, o diabo pode entrar pela porta propondo pensamentos bons e santos, mas com o tempo ele pretende reverter as coisas para seus próprios fins. Quando somos pegos em uma dinâmica como essa, descobrimos com o tempo que estamos desviados do bem maior ou mesmo estamos participando do que é imoral e destrutivo. Encontramo-nos em turbulência e perturbação em um nível profundo.
Quando percebemos que isso aconteceu, é importante revisitar como este processo começou e como os pensamentos bons ou sagrados foram introduzidos e, em seguida, como, passo a passo, chegamos a um lugar que está em conflito com nossos valores fundamentais e nossos desejos mais profundos para nossas comunidades, igrejas e país.
Quando vivemos em uma realidade social e política em que mentiras e desinformação são disseminadas e usadas de forma manipuladora para manter o poder, é importante que os líderes políticos e religiosos ajam contra (agere contra) tais mentiras e comecem a reconhecer e falar a verdade ao povo estadunidense. Em nosso envolvimento na vida política, além de conhecer o ensino da Igreja e como isso está relacionado aos nossos compromissos de política, é importante ter discernimento em relação às formas concretas de perseguir essas políticas e prestar atenção ao “início, meio e fim” de como o processo se desenrola.
Quando vemos que acabamos em um lugar em nossa vida social ou política que é menos bom do que propusemos originalmente ou moralmente corrupto, ou que estamos perturbados e em turbulência em nosso espírito, é importante revisar o processo por que fomos levados de “pensamentos bons e santos” para a atual situação indesejável. Isso nos ajudará a nos proteger contra essas armadilhas características no futuro.
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O que Santo Inácio diria a nossos líderes políticos durante esses tempos turbulentos? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU