22 Junho 2021
Quando chegamos a 500 mil óbitos, comparação revela: 386 mil pessoas — quatro em cada cinco mortos — poderiam estar vivas, se país tivesse adotado políticas de proteção eficientes como as da média mundial. E mais: polêmica da coronavac, escrevem Maíra Mathias e Raquel Torres em sua newsletter diária, um resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia, publicada por OutrasPalavras, 21-06-2021.
No sábado, o Brasil chegou à revoltante marca de meio milhão de mortos por covid-19. É como se a população de Florianópolis tivesse sido dizimada. Ou, contabilizou a Folha, como se o país tivesse vivido em 15 meses o equivalente a oito genocídios, indo do cometido por forças sérvias na Bósnia na década de 1990 ao massacre da minoria muçulmana que vive no oeste de Mianmar em 2016.
Com 2,7% da população do planeta, registramos 12,9% dos óbitos pela doença — e, se considerados apenas os últimos dias, 30%. Partindo dessa constatação, o epidemiologista Pedro Hallal calcula quantas mortes teriam ocorrido por aqui se tivéssemos um desempenho na média mundial. Não ótimo, não perfeito – só na média. A diferença entre esse número e o número real de mortes é atribuída por ele ao “mau desempenho” do Brasil no enfrentamento da pandemia. O mundo registrou 3,8 milhões de mortes pela doença no sábado, e 2,7% dessas mortes corresponderiam a 104 mil. Conclusão: 396 mil vidas poderiam ter sido poupadas.
E quantas mortes teriam sido evitadas em 2021 caso o governo federal tivesse comprado vacinas quando Butantã e Pfizer ofereceram acordos, garantindo dois milhões de doses por dia a partir de 21 de janeiro? A resposta é 251 mil mortes, levando em conta a projeção de 395 mil óbitos por covid este ano.
O Brasil é o segundo país do mundo a perder meio milhão de pessoas para a covid-19. Quando os Estados Unidos dobraram essa trágica esquina, em fevereiro, já tinham conseguido remover o negacionismo da Presidência. Se antecipando à marca, Joe Biden mandou abaixar todas as bandeiras a meio mastro e pediu que a população fizesse homenagem as vítimas com um minuto de silêncio. Por aqui, Jair Bolsonaro nada fez ou falou.
Seu ministro das Comunicações, Fábio Faria – que planeja um telejornal na EBC “só com boas notícias”, no caso, notícias ao gosto do presidente –, reclamou de “políticos, artistas e jornalistas ‘lamentando’ o número de 500 mil mortos”.
No governo, o ministro da Saúde foi o único a lamentar o meio milhão de mortes. O fato foi destacado. Mas Marcelo Queiroga está longe de ser um ponto fora da curva bolsonarista, e suas digitais na tragédia estão cada vez mais visíveis: documento obtido pela CPI junto ao Itamaraty mostra que em uma reunião com a OMS em abril, o ministro quis que a organização abrisse um diálogo com o Brasil sobre o “tratamento precoce” que ele mesmo admite não ser eficaz. Além disso, afirmou que Jair Bolsonaro é o “principal ativo” para o Brasil avançar no combate à pandemia.
Celso Rocha de Barros, na Folha, nos lembra que a única coisa capaz de pôr um fim a esse descalabro é a ação: “Bolsonaro deixou essa gente toda morrer por três motivos. O primeiro foi ideologia: uma desconfiança populista dos especialistas, aversão ao ‘globalismo’ da Organização Mundial de Saúde, ódio visceral dos chineses, a influência ideológica de Donald Trump e da direita radical americana, a dificuldade de encaixar problemas complexos do mundo real na retórica paranoica do bolsonarismo. (…) O segundo motivo foi cálculo eleitoral. Bolsonaro temia que as medidas de contenção da pandemia derrubassem a economia e ameaçassem sua reeleição em 2022. (…) Se os brasileiros se mostrassem um rebanho recalcitrante, Bolsonaro lhes ofereceria a falsa esperança de cura pela cloroquina. Mas o terceiro motivo pelo qual Bolsonaro mandou tantos brasileiros para a morte por asfixia é o que realmente deve nos preocupar como país. Foi porque nós deixamos.”
Justamente no dia em que o país atingiu 500 mil mortes confirmadas por covid-19, brasileiros ocuparam as ruas de novo contra Bolsonaro. Os atos foram nitidamente mais volumosos do que os de maio. Segundo os organizadores, foram 750 mil manifestantes em cerca de 400 cidades – no #29M, haviam sido 600 mil pessoas em 200 cidades.
Só na Avenida Paulista, 100 mil pessoas ocuparam 12 quarteirões, nas estimativas da organização. Já a Secretaria de Segurança Pública – que fez as contas de 12 mil motos na última manifestação pró-governo – não contabilizou os manifestantes neste sábado.
O Brasil teve ontem sua maior média móvel de novos casos de covid-19 dos últimos 2,5 meses: 73,2 mil. Já os óbitos diários completaram cinco dias acima de dois mil – e nada menos que 150 dias acima de mil.
O Correio Braziliense disse no sábado que o governo federal pretende “vetar o uso da CoronaVac no Brasil”. Não há nenhuma confirmação disso por parte do Ministério da Saúde, mas o repórter Renato Souza afirma que, segundo “fontes no governo”, o ministro Marcelo Queiroga estaria pretendendo encerrar contratos de compra do imunizante devido a preocupações com sua eficácia. Seriam compradas apenas as doses já contratadas, e então seriam reforçadas as aquisições das vacinas da Pfizer/BioNTech e Oxford/AstraZeneca. O óbvio problema é a dificuldade de consegui-las.
Ainda segundo o jornal, Queiroga estaria preocupado com a baixa efetividade da CoronaVac em idosos, por conta deste estudo, que já comentamos aqui. Se é isso mesmo, faz pouco sentido encerrar as aquisições agora, quando a maior parte dos idosos já recebeu as injeções…
Depois da publicação da matéria, o ex-secretário de Vigilância em Saúde Wanderson de Oliveira divulgou no Instagram levantamentos feito por ele, segundo os quais a CoronaVac é a vacina que mais protege contra mortes. No entanto, além da rede social, não localizamos o estudo em outras plataformas.
Preocupações com a efetividade da CoronaVac foram levantadas na última coletiva de imprensa da OMS na sexta-feira, como relata o site Health Policy Watch. Perguntada sobre a falha desse imunizante em evitar a hospitalização de profissionais de saúde na Indonésia –, o que foi noticiado recentemente –, a cientista-chefe da organização, Soumya Swaminathan, disse que há uma escassez de estudos bem planejados de vida real sobre o seu uso.
Surtos em países latino-americanos e asiáticos que usam os imunizantes da Sinovac e da Sinopharm têm levantado dúvidas sobre sua efetividade. Perto daqui, o caso que mais tem chamado atenção é o do Chile, que vem registrando em média 70 mil novas infecções por dia – um número muito alto para a população de menos de 20 milhões de habitantes.
A OMS concedeu autorizações emergenciais de uso à CoronaVac e à vacina da Sinopharm com base nos estudos clínicos, mas não há dados sobre a população idosa em nenhum dos casos. A matéria lembra que os resultados de ambos os ensaios ainda não foram publicados em periódicos científicos, mas afirma que, mais que isso, faz falta o rastreamento em larga escala dos resultados dos lançamentos:
“Em contraste, o lançamento de outras vacinas passou por monitoramento e avaliação cuidadosos por parte das agências reguladoras dos Estados Unidos, Reino Unido e Europa, bem como por pesquisadores independentes. O lançamento massivo da vacina da Pfizer, por exemplo, foi seguido por relatórios detalhados de dados sobre doenças, hospitalizações e mortes entre centenas de milhares de pessoas que foram vacinadas, comparados com os de grupos similares que não haviam recebido as injeções. O rastreamento massivo de resultados, incluindo a publicação de resultados revisada por pares, ajudou a aumentar a confiança nas vacinas de mRNA. Mas fora dos países desenvolvidos, esse rastreamento parece ser muito mais fraco – ou inexistente”.
O texto menciona, como exceção, os dados de efetividade da CoronaVac divulgados pelo governo do Uruguai, que ainda não foram publicados em revista científica. O estudo na cidade de Serrana (SP) – que também ainda não foi publicado – não compara vacinados e não vacinados, e não foi citado na reportagem.
A OMS ressalta que altas nas infecções não significam necessariamente falhas nas vacinas, já que, de acordo com os estudos clínicos, já não se esperava mesmo que elas protegessem 100% da população coberta. “Se houver muita transmissão na comunidade haverá mais infecção entre os trabalhadores de saúde, mas eles estão adoecendo? Precisam ser hospitalizados? Qual é a proporção entre vacinados, não vacinados e aqueles com dose única e dose completa? Acho que devemos ter muito cuidado ao sugerir que há evidências de que uma vacina está falhando porque certamente não há evidências para sugerir isso neste ponto”, ressaltou Swaminathan, ainda comentando a situação da Indonésia.
Mas mesmo que essas vacinas sejam muito eficazes contra hospitalizações e mortes, seu impacto no controle da pandemia pode ser bastante reduzido caso elas não impeçam tanto as infecções em si, e, portanto, a transmissão. A única maneira de confirmar isso é testando pessoas vacinadas para identificar sua carga viral, algo que já foi feito para as vacinas da Pfizer e da AstraZeneca, mostrando que ambas reduzem significativamente a transmissão.
O problema de vacinas que não tenham essa mesma qualidade é que, para atingir o mesmo efeito, uma quantidade muito maior de pessoas precisa ser vacinada. Muito maior mesmo: “literalmente todos”, aponta Beate Kampmann, diretora do Vaccine Centre da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
Um servidor da área técnica do Ministério da Saúde afirmou ter sofrido pressão para tentar garantir a importação da Covaxin, a ser feita pela empresa Precisa Medicamentos. O relato está em depoimento mantido em sigilo pelo MPF, mas obtido pela Folha. Um dos responsáveis pela pressão seria o tenente-coronel Alex Lial Marinho, próximo a Pazuello.
O MPF está investigando a suspeita de favorecimento à Precisa. E a CPI também: neste sábado, o relator Renan Calheiros disse que o colegiado deve investigar “coisas escandalosas” a respeito dessa negociação. “Foi um contrato bilionário, de R$ 1,6 bilhões, para uma vacina que não estava sendo aprovada pela Anvisa, era a mais cara do mercado e tinha um calendário que possibilitaria demora. Isso chamou atenção porque é uma aquisição atípica em todos aspectos. Então vamos ter uma semana para aprofundar tudo o que houve nesse bastidor”, afirmou. A ver.
Os desenvolvedores da Soberana, uma das vacinas cubanas em testes atualmente, divulgaram que ela alcançou uma eficácia de 62% com a aplicação de duas doses, de três previstas. Daqui a duas semanas, eles esperam ter a taxa obtida pelo regime completo de três doses.
Uma interessante reportagem da National Geographic recupera o início da epidemia de HIV-Aids. A história é contada do ponto de vista de quem estava nos Estados Unidos, pois foi lá que o vírus foi ‘enxergado’ por um sistema de vigilância de saúde pela primeira vez, num relatório de 5 de junho de 1981. O texto destacava que cinco homens em Los Angeles haviam recebido atendimento médico devido a uma pneumonia com origem em uma rara infecção fúngica causada em sistemas imunes muito debilitados. Na mês seguinte, o número de doentes já era 26.
“Pensei comigo: ‘meu Deus, só pode ser uma doença nova’”, conta Anthony Fauci – infectologista que virou figurinha fácil nos noticiários do mundo todo na pandemia da covid-19, e participou de esforço científico para decifrar o que estava por trás desses primeiros casos. O primeiro passo era buscar pacientes que manifestassem os sintomas informados e levá-los ao hospital para observação.
“Há 40 anos, ninguém poderia imaginar estar testemunhando o início de um surto mundial que infectaria mais de 75 milhões de pessoas e mataria cerca de 35 milhões”, diz a matéria.
A nova doença só ganhou um nome em setembro de 1982, quando o CDC a denominou síndrome da imunodeficiência adquirida (“Aids”, na sigla em inglês). Só em 1983, o vírus HIV foi identificado e um exame de identificação foi desenvolvido. Foi então que se viu que o problema tinha escala mundial.
Nos EUA, era a época do governo Ronald Reagan. E isso dificultou muito o trabalho de quem precisa pesquisar e comunicar os riscos da doença, cercada desde o início por estigmatização. “Foi um surto amplo”, afirma Fauci. “Contudo, naqueles primeiros anos, os funcionários do governo Reagan não estavam muito abertos a falar sobre o assunto. Não aproveitaram a grande visibilidade da presidência.”
O rótulo da “doença gay” prevalecia sobre as evidências científicas até no meio médico. Isso levava parte dos infectados a fugir dos consultórios e se auto-organizar – o que também envolvia o compartilhamento de tratamentos não convencionais, incluindo dietas e remédios naturais.
“As pessoas nos perguntavam: ‘para que fazer o teste?’”, lembra Gregory Ford, ator e ativista diagnosticado com HIV em 1987. “Afinal, não havia tratamento. Além disso, os infectados não podiam contar para os outros, exceto talvez aos amigos mais próximos. Ninguém podia contar no trabalho. E certamente ninguém poderia contar à seguradora. De que adiantaria? O infectado estava sozinho, não podia contar com ninguém. Essa era a parte mais difícil.”
“Em um mundo onde o vírus da covid-19 foi identificado semanas após sua descoberta e vacinas eficazes foram desenvolvidas em meses, é fácil esquecer os anos agonizantes entre o surgimento do HIV e um tratamento eficaz”, destaca a reportagem. Eles viriam só na década de 1990. No Brasil, se tornaram acessíveis graças à quebra de patentes e ao SUS.
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Brasil: as mortes da negligência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU