22 Mai 2021
"Defender uma proibição generalizada exclusivamente a políticos 'pró-aborto' que recebem a Eucaristia não é um ato profético, mas um ato político-ideológico, que engana os fiéis sobre a natureza da Eucaristia, a missão da Igreja, assim como as implicações éticas do Evangelho".
O comentário é de Austen Ivereigh, escritor e jornalista britânico e pesquisador em História da Igreja Contemporânea no Campion Hall, na Universidade de Oxford. Seu livro mais recente é “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor” (Ed. Intrínseca, 2020), uma entrevista com o Papa Francisco. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 21-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Só era possível adivinhar o que o Papa Francisco pensa sobre a proposta de um grupo de bispos dos Estados Unidos de proibir a Comunhão a políticos católicos pró-aborto, até que o Vaticano enviou um firme lembrete de certas verdades.
Ao contrário do seu documento legalista e mal enquadrado de março em resposta à pergunta de um bispo sobre a bênção das uniões entre pessoas do mesmo sexo, a carta da Congregação para a Doutrina da Fé do dia 7 de maio aos bispos foi clara e fundamentada, refletindo o próprio pensamento de Francisco e, obviamente, emitida a seu comando.
O ponto-chave do cardeal Luis Ladaria, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi que qualquer declaração dos bispos dos Estados Unidos não deveria destacar os líderes políticos católicos, mas ser dirigida aos católicos que frequentam a igreja em geral, lembrando-os do que a Igreja ensina sobre a sua aptidão para receber a Comunhão.
Em outras palavras, não deveria ser um jogo de poder, um meio de coerção, voltado para pressionar certas figuras públicas, pois isso é pressionar aquilo que é puro dom divino a serviço da política.
Trata-se da diferença entre o cânone 916, que exorta os católicos a se apresentarem adequadamente para a Sagrada Comunhão, e o cânone 915, que trata do ministro que nega a Sagrada Comunhão.
O primeiro é ensinamento; o segundo é um ato jurídico de poder. Um exemplo do primeiro é o documento de Aparecida de 2007, cujo redator principal é o atual Francisco, que preconizava a “coerência eucarística” em seu parágrafo 436. Os legisladores, disseram os bispos latino-americanos, devem estar “conscientes de que não podem receber a sagrada comunhão e ao mesmo tempo agir com atos ou palavras contra os mandamentos, em particular quando se propicia o aborto, a eutanásia e outros graves delitos contra a vida e a família”.
Um ato de poder pode ser justificado segundo o cânone 915? Certamente, em resposta a uma ação que seja gravemente perturbadora da ordem eclesiástica ou moral, nas palavras do cânone. Existem casos raros em que, por exemplo, como parte de um protesto – para ganhar publicidade ou notoriedade, digamos – as pessoas se apresentam para a Comunhão. O padre não teria escolha a não ser negá-la.
O que a Igreja defende quando defende a sua integridade é a sua própria identidade, disse o cardeal Jorge Mario Bergoglio no Congresso Eucarístico Internacional em Quebec, em 2008. “Esse dom, cuja expressão mais plena é a Eucaristia, não é um dom entre outros, mas o dom total da Vida mais íntima da Trindade que se derrama pela vida do mundo.”
Portanto, sim, proteger a Eucaristia como um sinal do dom radical de Deus poderia significar – em teoria e na lei – negá-la publicamente às pessoas que desejam usá-la publicamente para seus próprios fins.
Mas, pela mesma razão, isso não pode ser usado como uma medida geral para negar a Comunhão a políticos católicos que escolham por quaisquer motivos – e há muitos – não votar para tornar o aborto um crime. Em vez de proteger a identidade da Igreja como um sacramento para a humanidade que encarna o dom radical de Deus na cruz, tal proibição geral corre o risco de minar aquela identidade.
Como disse recentemente o bispo de San Diego, Robert McElroy, a proposta de excluir da Eucaristia os líderes políticos católicos pro-choice “trará consequências tremendamente destrutivas – não por causa do que isso diz sobre o aborto, mas por causa daquilo que isso diz sobre a Eucaristia”.
Assim como o verdadeiro significado da Eucaristia precisa ser defendido daqueles que a usariam para publicidade, ele precisa ser defendido daqueles que a usariam para separar os dignos dos indignos.
Como disse Francisco, de modo célebre, na Evangelii gaudium, citando os primeiros pais da igreja, a Eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”. No entanto, com muita frequência, “agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigante” [n. 47].
A recente carta pastoral do arcebispo Salvatore Cordileone, de San Francisco, instando os bispos a negarem a Comunhão a políticos pro-choice cita as fortes palavras da Evangelii gaudium contra o aborto, mas ignora a clara advertência de Francisco na mesma exortação a não reduzir a oferta ética católica a apenas uma ou duas questões.
A carta de Ladaria destaca o ponto: seria “enganoso” se qualquer novo documento “desse a impressão de que o aborto e a eutanásia por si sós constituem as únicas questões graves do ensino moral e social católico que exigem a maior responsabilização por parte dos católicos”.
Ironicamente, Cordileone cita o precedente da luta pelos direitos civis, quando os bispos ameaçaram de excomunhão aqueles que se opunham à integração racial. Se ele estivesse propondo uma proibição muito mais geral da Comunhão a políticos que não cumprissem os ensinamentos católicos sobre raça, imigração, controle de armas e casamento, assim como sobre aborto e eutanásia, a sua postura seria radical e profética; e, como uma medida política nacional, significaria que a Igreja efetivamente se retirava da vida pública.
Mas defender uma proibição generalizada exclusivamente a políticos “pró-aborto” que recebem a Eucaristia não é um ato profético, mas um ato político-ideológico, que engana os fiéis sobre a natureza da Eucaristia, a missão da Igreja, assim como as implicações éticas do Evangelho.
Pode ser verdade, como diz Cordileone, que, se os políticos que votam pelo aborto não forem banidos da Eucaristia, “isso pode levar os católicos (e outros) a pressuporem que o ensino moral da Igreja Católica sobre a inviolável santidade da vida humana não é levado a sério”?
Não seria mais provável que eles presumam que o ensino moral sobre outras questões da vida – pesquisa de embriões, armas, pena de morte – não é levado a sério pela Igreja, porque os bispos pró-banimento parecem preocupados apenas com políticos pro-choice?
Com essa seletividade arbitrária, “o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas”, como diz Francisco na Evangelii gaudium [n. 39]. Ele advertiu, prescientemente, que tal seletividade significaria que não estamos “propriamente anunciando o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas”.
Cordileone teme o pecado da presunção, de as pessoas não se confessarem antes de receber a Comunhão e tratarem as graças da Eucaristia com demasiada leviandade. Esse é um perigo real e constante. No entanto, quando ele diz que os católicos na vida pública que não se posicionam contra o aborto são culpados de “rejeição persistente, obstinada e pública do ensino católico”, o que ele sabe das lutas delas sobre essa questão, o doloroso fato de ter que colocar os bens na balança? Que espaço ele deixa para a consciência daqueles que sabem que o aborto é errado, mas acreditam que ele não pode ser ilegal, já que a maioria das pessoas não compartilham esse ponto de vista? O que dizer do julgamento prudente de um político, que deve escolher constantemente quais lutas enfrentar e quando as enfrentar?
Pode ser que um determinado político tenha genuinamente um ponto cego, discorde do ensino da Igreja – seja sobre o aborto, o controle de armas ou a pena de morte – e simplesmente o ignore. Mas tal caso só poderia ser conhecido e resolvido por meio de uma conversa face a face e privada entre o político e o seu bispo. Caso contrário, o perigo da presunção se reverte, e a Igreja atropela a legítima liberdade do julgamento prudencial de um político.
Quando os jansenistas da França do século XVII denunciaram a prática de dar a Eucaristia àqueles cujo arrependimento era superficial e, portanto (afirmavam eles), estavam destinados ao inferno, eles foram condenados por Roma, e a Comunhão frequente tornou-se a norma.
Uma nova devoção ao Sagrado Coração de Jesus, encorajada pelos jesuítas, começou a se espalhar, dedicada à proposição do amor ardente de Deus por toda a humanidade, tipificada pela Eucaristia regular.
O Sagrado Coração comunicava o Evangelho; o rigorismo de Port-Royal, não. Como Francisco disse no Congresso Eucarístico Nacional da Bolívia em julho de 2015, a Eucaristia é um sacramento missionário.
Em entrevista publicada postumamente, realizada em agosto de 2012, o grande cardeal de Milão, Carlo Maria Martini, chocou o mundo católico com a sua poderosa crítica a uma Igreja na Europa e na América que havia se cansado e se tornado fria. deixando de ser missionária. Um dos sintomas do desencanto por ele identificado era o modo como os sacramentos haviam se tornado um meio de policiamento e de forçar a obediência à doutrina.
Era um sintoma daquilo que Henri de Lubac chamara de mundanismo espiritual, o uso dos bens da Igreja para fins mundanos. “Os sacramentos não são um instrumento disciplinar, mas ajudam as pessoas na sua jornada, através das fraquezas da vida”, disse Martini.
Ele continuou perguntando: “Estamos levando os sacramentos às pessoas que precisam de uma nova força?”.
Em Buenos Aires, Argentina, algumas semanas depois, Bergoglio pegou emprestada a metáfora de Martini de um fogo que se extinguiu, enterrado sob as camadas de cinzas do mundanismo. “Como as brasas podem ser libertadas das cinzas para reacender a chama do amor?”, perguntou ele em um retiro. O problema, disse Bergoglio, é que “mantemos Jesus amarrado na sacristia”. Não se tratava mais de Jesus parado no portão pedindo para entrar, disse ele, mas, ao contrário, pedindo para sair.
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Francisco e bispos dos EUA: defendendo a Comunhão da manipulação política. Artigo de Austen Ivereigh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU