26 Fevereiro 2021
Joan Coscubiela, advogado e sindicalista, ex-deputado no Congresso e no Parlamento da Catalunha, confessa que passou muito bem escrevendo o livro que acaba de publicar nesta semana. La pandemia del capitalismo (Península) é uma profunda reflexão sobre os problemas e carências de um sistema social e econômico que o coronavírus nos colocou diante do espelho. Da Catalunha – “meu rincão no mundo”, considera –, Coscubiela oferece a seus leitores “uma leitura interessada”, mas ao mesmo tempo lúcida sobre a crise sanitária, social e política e se atreve a imaginar “um novo pacto social civilizatório” para, entre outras coisas, reconstruir o sentido moral da economia.
A entrevista é de Jorge Otero Maldonado, publicada por Público, 25-02-2021. A tradução é do Cepat.
Você afirma que este livro é “filho da dúvida”.
Gosto muito de duvidar, é uma das coisas com as quais mais me sinto à vontade. Por isso, quando no início da pandemia ouvi que o vírus não faz diferenças de classes, pareceu-me tão lugar-comum que passei a me dedicar ao assunto e após muito ler e muito pensar, comecei a escrever e escrevendo muito, mudando e modificando, satisfiz-me.
O capitalismo é a pandemia econômica da sociedade moderna?
Está claro que não é o capitalismo que provoca as pandemias, mas o qualifico como pandemia oculta porque é o único sistema socioeconômico realmente existente, mas ao mesmo tempo ensina suas fragilidades e está demonstrado, cada vez mais, que tem uma capacidade destruidora brutal em termos ambientais, sociais – pela desigualdade social que gera – e democráticos. Por aí segue uma boa parte do fio condutor do livro.
Então, considera o capitalismo como o melhor dos piores sistemas possíveis?
Não. O capitalismo teve diferentes expressões: o manchesteriano, o keynesiano, o social-democrata, o ultraliberal deste momento, o chinês, melhor, asiático mais do que chinês... A tudo isso chamamos de capitalismo e não digo que seja o melhor sistema, digo que é o único sistema existente. É diferente. O melhor capitalismo é o que eu qualifico, aqui, com outro nome: o capitalismo dos bens comuns.
Em que consiste esse capitalismo dos bens comuns?
É o que busca um equilíbrio diferente entre mercado e sociedade, que não situa a propriedade privada como um direito ilimitado e não soma a meritocracia como a maneira de justificar as desigualdades. Isso é o que eu proponho imaginar em termos de um pacto social civilizatório.
Como seria esse pacto civilizatório que você propõe?
Esboço uma utopia chamada pacto civilizatório, que deve atuar como um desencadeante global. Eu proponho reconstruir o sentido moral da economia para que o coletivo se reequilibre com o individual e que a busca do lucro privado não seja o motor. A segunda coisa que proponho é a necessidade de que tudo seja visto a partir da perspectiva da sustentabilidade, não só uma sustentabilidade ecológica, também, mas uma sustentabilidade social.
A desigualdade atual é insustentável e a crise da democracia também, por isso esboço algo que vai além do capitalismo: passar do egocentrismo em que estamos à ecodependência, a assumir que somos interdependentes todos de todos e especialmente em relação ao meio ambiente. Sem dúvida, isso requer mudar muitos conceitos que temos em andamento.
Como se reconstrói o sentido moral da economia?
A luta de classes do século XXI é a luta entre credores e devedores. Há 300 trilhões de dólares em ativos líquidos concentrados em poucas mãos, sem contar os ativos patrimoniais, que estão buscando obter rentabilidade e isso expõe alguns conflitos com famílias, com empresas e com Estados que requerem recursos. Eu proponho construir outro paradigma em que a competitividade não seja um grande deus, mas que se concorra cooperando.
Quando falo da necessidade em recuperar esse novo sentido moral da economia, refiro-me a muitas coisas: o conceito de austeridade que a direita roubou das esquerdas e que o tornou austericídio, a necessidade de desmercantilizar a sociedade, colocando o mercado em uma função estrita, da qual não deveria ter saído, que é o intercâmbio de bens e serviços. Trata-se de desconcentrar e democratizar, reconquistar a igualdade social, a soberania política, uma nova centralidade dos trabalhos... Tudo isso que está aí, não se pode resumir.
O que você propõe é uma mudança de mentalidade brutal que não parece fácil de efetivar.
Não será fácil, claro, mas a vida e a História demonstram que só é possível avançar quando se imagina utopias, mesmo que depois estas sejam diluídas pela realidade, as dificuldades, as forças contrárias, porque nem todos estão dispostos. Minha opinião é que desta pandemia não podemos sair reproduzindo os esquemas que nos trouxeram até aqui. Pode acontecer, infelizmente, porque não há nada escrito. Nossa primeira obrigação é imaginar uma realidade diferente. Algumas coisas já estão acontecendo: as mudanças na União Europeia são significativas neste ponto de vista.
Estamos assimilando os ensinamentos que a pandemia nos deixa?
A consciência da interdependência começa a estar presente em alguns âmbitos, apesar de a pandemia nos enviar lições que alguns acabam não convertendo em ensinamentos porque se cruzam com interesses distintos. Por exemplo, enquanto houver pessoas que continuem planejando baixar impostos, teremos alguns youtubers ostentando que irão para Andorra para não pagar. Seus interesses impedem que essas pessoas aprendam as lições da pandemia.
Então, também corremos o risco de cair nos mesmos erros da crise anterior.
Nos mesmos não, mas na mesma direção temo que sim. Para evitar isso, é preciso mobilizar a imaginação, a história da humanidade é a história das narrativas, as ideologias são narrativas, as utopias são narrativas. Sem imaginar uma narrativa não há nem religião, nem ideologia, nem utopias. Falo da narrativa no sentido digno da palavra, não o que alguns políticos utilizam, no sentido de narrativa comunitária.
Você fala também de um “analfabetismo do risco” e de uma “amnésia do risco”. Não será medo do futuro?
Nós, humanos, assim como os animais, buscamos segurança e certeza. Nessa busca da segurança, negamos a existência dos riscos. Como os negamos? Sublimando a razão, sublimando a ciência e a tecnologia sem limites. O dramático é que todas as vezes em que tentamos evitar os riscos, nós os terceirizamos: de algumas pessoas para outras, dos homens às mulheres, dos nacionais aos imigrantes, das empresas centrais às periféricas, das empresas aos autônomos. E todos nós os terceirizamos para o meio ambiente.
Mas esse risco que tentamos terceirizar se torna um verdadeiro bumerangue e provoca situações como esta. O que tento explicar no livro é que em uma sociedade tão interdependente como a que temos, terceirizar os riscos supõe multiplicá-los por mil ou por milhões. Infelizmente, a humanidade é estupidamente egoísta. É o que estamos vendo neste momento nas reações que estão ocorrendo com a pandemia.
A pandemia revelou as cicatrizes do sistema capitalista?
Sim, acredito que é preciso aproveitar esta oportunidade. A pandemia nos colocou diante de um espelho que nos mostra todas as nossas fragilidades: a insustentabilidade ambiental, social e democrática de nosso sistema. E depois nos oferece uma lupa para olhar com maior profundidade. É preciso aproveitar isso, sem dúvida, porque esse espelho e essa lupa nos permitirão colocar em marcha processos e imaginar, ao menos imaginar, mesmo que seja tarde para chegar a algo concreto, porque entre imaginar e construir sempre passa muito tempo. Os processos revolucionários nunca ocorrem conforme imaginados, mas se não são imaginados, acabam não acontecendo.
Disse que o coronavírus atuou como um espelho que nos devolveu nossa própria imagem como sociedade. Gostamos do que vemos?
Eu acredito que não gostamos do que vemos, mas isso não significa necessariamente que tenhamos uma atitude de correção. Por quê? Aqui aparece novamente o tema dos interesses. Bom, primeiro porque falamos das lições do coronavírus como se fossem uma só coisa e nem todo mundo vê as mesmas lições. Por isso, coloquei no subtítulo do livro “uma leitura interessada”, a minha é, não nego. Para enfrentá-lo, a primeira coisa é ter uma leitura ideológica da crise. A esquerda não a teve em 2008 e pagou muito caro.
Para que as lições se tornem ensinamentos é preciso que passem de experiências individuais a coletivas, ou seja, que exista um consenso acerca do que vemos. Por exemplo, vemos que os bens comuns, como a saúde, são imprescindíveis. Vemos que o mercado sozinho não pode abordar crises como esta. Vemos a importância do público. Vemos o papel do Estado. Vemos a necessidade de que o Estados seja forte, inclusive para ajudar o setor privado em momentos como este.
Vemos tudo isso, mas quando temos que converter todas essas coisas em ensinamentos, aí fica complicado porque os interesses interferem. Sabemos que com a pandemia é preciso reforçar a saúde pública, mas, ao contrário, o que vemos? Que a saúde privada está aproveitando o colapso do sistema de saúde para promover apólices privadas. É legítimo? Sim, mas não é menos certo que isso é apenas para uma parte da população que pode considerar esse luxo.
Nosso egoísmo acaba nos prejudicando.
A vida da humanidade se debate entre a cooperação e a competitividade. Isso é uma coisa que gosto muito de explicar. Nós, humanos, conseguimos subir na hierarquia da espécie porque soubemos combinar cooperação e competitividade. Em definitivo, competitividade é o indivíduo, cooperação é a comunidade, e em muitos momentos da história da humanidade, esse equilíbrio entre cooperação e competitividade foi rompido, por exemplo, nos últimos 40 anos no mundo ocidental, com a revolução conservadora de Thatcher e Reagan.
Agora, estamos pagando as consequências dessa ruptura entre cooperação e competitividade, entre indivíduos e comunidade. Por isso, o que proponho é forçar um equilíbrio entre esses fatores. Um modo para fazer isso, por exemplo, é o equilíbrio que proponho entre o papel do mercado e a sociedade. O mercado expressa esse espaço de benefício individual e, por outro lado, a sociedade expressa esse espaço comunitário. É preciso equilibrar, não fazer desaparecer. A sociedade existe porque também existe o mercado como o conhecemos, mas o mercado não pode ser aquele que regula nossas vidas. Os direitos fundamentais não podem estar submetidos ao mercado.
A pandemia pode afetar o funcionamento da democracia?
A crise da democracia é anterior à pandemia. Entre outras coisas, porque é a crise produzida por algumas mudanças tecnológicas brutais e uma disrupção tecnológica que provocam uma deslocação de todas as estruturas sociais que tivemos por 200 anos. Nisso consiste a crise da democracia, a crise das instituições, das estruturas de mediação social, dos partidos políticos, dos meios de comunicação, das entidades sociais. Isso já existia. A pandemia torna esse processo evidente e o acelera. Depende dos cidadãos que a aceleração seja para a destruição ou que aprendamos a nos reconstruir. Apresento este paradoxo.
Para onde vamos?
Nesse momento, está emergindo um capitalismo de vigilância no qual grandes corporações são proprietárias de nossos dados. A pandemia também acelerou esse processo. A sociedade é obrigada a intervir para construir as bases de um novo capitalismo, que eu chamo de capitalismo dos bens comuns. Está para ser construído. Não esqueçamos que para se chegar ao capitalismo social-democrata, passaram 200 anos, e que para alcançar a democracia, conforme a concebemos na segunda metade do século XX, nos países europeus, passaram 300 anos ou mais. E já chamamos de democracia coisas que só permitiam votar nos patrícios, depois só nos proprietários, depois só nos homens e agora só nos nacionais.
Cada vez, incluímos mais coletivos, mas mantemos alguns excluídos. Na Espanha e em outros países, existem cidadãos que fazem o mesmo que todos nós, mas como não são nativos do país em que vivem, não permitimos que votem. Isso é uma barbaridade em termos democráticos, preciso ser abordado. Os estrangeiros serão cada vez mais uma porcentagem maior da população porque não haverá mais sociedades nacionais, as sociedades são pós-nacionais, compostas por cidadãos de diferentes nacionalidades. É preciso abordar todos esses desafios.
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“A luta de classes do século XXI é a luta entre credores e devedores”. Entrevista com Joan Coscubiela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU