04 Janeiro 2021
O biógrafo do Papa emérito, autor do livro Bento XVI. Uma vida, analisa a trajetória de vida, pontifícia e teológica de Joseph Ratzinger.
A entrevista é de María-Paz López, publicada por La Vanguardia, 28-12-2020. A tradução é de André Langer.
O jornalista alemão Peter Seewald, profundo conhecedor da vida e da obra do emérito Bento XVI – que foi papa de abril de 2005 a fevereiro de 2013 – publicou este ano uma biografia definitiva de Joseph Ratzinger. Intitulada Bento XVI. Uma vida, foi lançada na Alemanha em maio, e em espanhol no outono, editada pela editora Mensajero (Grupo de Comunicación Loyola, GCL). Peter Seewald, 66 anos, reconhecido autor de temas religiosos, já havia publicado quatro livros-entrevistas com Ratzinger – dois deles sendo este cardeal –, e para esta biografia teve novas conversas com o Papa Emérito em 2018 e com dezenas de testemunhas próximas a ele. No passado, Seewald já trabalhou para as revistas Der Spiegel e Stern e para a revista do Süddeutsche Zeitung.
Como Bento XVI entrará para a história? Como pontífice, não fez tudo bem.
Quem faz tudo bem? Claro, o Papa Bento XVI também cometeu erros, como, por exemplo, algumas nomeações de bispos. Mas também admitiu abertamente as deficiências, incluindo aquelas, como no caso Williamson [bispo lefebvriano revisionista], que não pôde evitar. O que restará de Joseph Ratzinger? A história tem que fazer este julgamento. Talvez se possa limpar sua imagem das muitas distorções que, publicamente, o pintaram como um partidário da linha-dura, o que na realidade nunca foi.
Além disso, sua fama dependerá do desenvolvimento da própria Igreja Católica, do que for necessário para evitar que este barco naufrague. Sejamos honestos: o cristianismo já se tornou um fenômeno marginal em quase todas as áreas da vida social. A crise da Igreja se intensificará e com ela a crise da sociedade, que, sem a ética da religião, está à beira do abismo. Portanto, posso imaginar que um dia se olhará com apreço para obras como as de Ratzinger, que ajudam a resgatar valores e orientações.
Dentro da Igreja, seu legado pode se tornar um pilar fundamental para uma nova evangelização. Nenhum outro pontífice deixa uma obra sobre Jesus tão grande quanto ele, ou mesmo uma cristologia como a que ele escreveu. Claro, não podemos reduzir Bento XVI a seus oito anos na cátedra de Pedro. Ratzinger esteve no olho público há mais de meio século. Sua teologia abriu novas portas. À medida que a doutrina ganhou vida, converteu-se num renovador da fé. Sem ele como assessor conciliar, o Concílio Vaticano II nunca teria existido em sua forma aberta e progressista. Ele certamente será lembrado como alguém incômodo, mas também como alguém cujas afirmações correspondem fielmente à doutrina católica.
Você disse que Ratzinger é um pensador moderno, uma declaração que para alguns pode parecer uma provocação.
Pode parecer, mas quem abordar minimamente a biografia do Papa alemão não pode chegar a nenhuma outra conclusão senão a de que ele é um pensador moderno. Não é por acaso que ele é considerado um dos intelectuais mais importantes do nosso tempo. O pensamento moderno era sua marca registrada. Como um professor de 35 anos, isso o tornou uma estrela no firmamento da teologia. Como perito ao lado do cardeal Josef Frings, tornou-se o mais importante spin doctor do Concílio Vaticano II.
Ao contrário de outros teólogos, ele sempre trabalhou com base nos ensinamentos da Igreja, que não queria reconstruir ou descartar, mas desenvolver no bom sentido. As linhas básicas de sua teologia já estavam completas no início dos anos 1960. O grande ponto de inflexão, a mudança de progressista para reacionário que lhe atribuíram opositores como Hans Küng, nunca aconteceu. Ele sempre se manteve fiel ao pensamento orientado pela razão e moldado pelos ensinamentos dos pais.
Nem sempre teve uma boa reputação.
Desde o princípio, Ratzinger fez pleno uso das possibilidades dos meios de comunicação modernos. Isso se deveu principalmente à sua amiga Esther Betz, jornalista e filha de um editor. Escrevia artigos para tabloides e, ao mesmo tempo, dava entrevistas da mais alta qualidade para a imprensa séria. Como cardeal, era o clérigo mais procurado do mundo. Os repórteres faziam fila, e os leitores ficavam entusiasmados com as ricas conversas que poderiam ter com ele.
Por outro lado, nenhum outro líder da Igreja foi tão exposto a ataques hostis como Ratzinger. Ele se opôs ao espírito da época, à diluição da tradição, e teve que pagar por isso. O apelido de Panzerkardinal, que nada tem a ver com a realidade, nunca o deixou. Seu pontificado também sofreu com a cobertura jornalística agressiva e, não menos importante, manipuladora de alguns dos principais meios de comunicação. O filósofo francês Bernard-Henri Lévy escreveu que, assim que o debate gira em torno de Ratzinger, “o preconceito, a falta de sinceridade e até a desinformação total dominam todas as discussões”.
Resumindo: qualquer pessoa que realmente se aproximar da obra de Ratzinger verá o espírito fresco e vivo que há nela. Suas análises não dependiam da corrente majoritária, mas surgiram do pensamento crítico, mesmo ao custo da popularidade. Sempre esteve disposto a mudar coisas e a fazer coisas que ninguém se atreveu a fazer antes, e isso é demonstrado sobretudo pela sua renúncia, em 2013, ao cargo por razões de idade, com a qual revolucionou o papado. Sua renúncia foi o resultado de seu pensamento racional e da tomada de decisões feita em oração.
Ao ler o dossiê McCarrick, o que pensou daquela época e de Bento XVI?
O caso McCarrick é particularmente escandaloso e repulsivo. O ex-cardeal de Washington era respeitado internacionalmente nos mais altos círculos governamentais. Ele presidiu o funeral do filho de Joe Biden, o presidente eleito dos Estados Unidos. Quando apareceram os primeiros sinais de abuso sexual nos seminários, McCarrick jurou a João Paulo II que era mentira e más suspeitas. Wojtyla acreditou nele, também pela experiência de que na Polônia comunista os padres eram frequentemente denunciados pelo regime com vistas a silenciá-los.
Bento XVI destituiu-o do cargo de bispo, impôs-lhe uma vida reclusa e proibiu-o de aparecer em público, o que McCarrick não cumpriu. O Papa Francisco deixou o cardeal continuar, reuniu-se com McCarrick e até o encarregou de participar das negociações do Vaticano com a China. Houve um flagrante fracasso institucional e uma atuação indiferente por parte dos papas neste caso. Foi uma omissão flagrante que o processo não fosse concluído corretamente.
Ao mesmo tempo, é indiscutível que Ratzinger, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, já tinha dado passos importantes e havia introduzido mudanças na lei para processar melhor os abusos sexuais na Igreja. Como Papa, insistiu em uma política de tolerância zero para com os perpetradores. Ele se encarregou de que cerca de 400 padres fossem destituídos, de que a formação dos padres fosse reformada e de que as vítimas pudessem experimentar reparação e justiça.
O fato de que nem tudo correu bem e de que muitos casos a nível local ou no Vaticano não foram processados com a severidade necessária é outra questão. Por outro lado, tornamos tudo muito fácil para nós mesmos se apontarmos o dedo apenas para a Igreja. Também há abusos com os abusos, quando instrumentalizados. Quase cem por cento desses crimes terríveis ocorrem em famílias, associações esportivas, escolas, redes de pornografia, etc., e são cometidos por homens que nada têm a ver com o celibato.
Bento XVI está agora com 93 anos; em junho passado, ele viajou a Regensburg para visitar seu irmão Georg, que morreu pouco depois. Como vive o Papa Emérito hoje? Você fala com ele por telefone?
Não. Acho que ele não usa mais o telefone. Sua voz está muito fraca; é difícil entendê-lo. Quando o Papa Francisco o apresentou pessoalmente aos cardeais recém-criados no final de novembro, Bento XVI disse brincando: “O Senhor tirou-me a voz para que eu possa apreciar melhor o silêncio”. Mas está bem para a sua idade. Ele se recuperou totalmente da erisipela facial, que havia se tornado intensa e muito dolorosa após a exaustiva viagem a Regensburg, ao leito de morte do seu irmão.
Nessa época de coronavírus, como transcorrem seus dias?
Ele celebra a santa missa todos os dias, medita, lê muito, cuida da sua correspondência e recebe diariamente a crítica da imprensa para se manter informado. Ratzinger sempre valorizou a reclusão monástica e, como Papa Emérito, escolheu conscientemente o pequeno mosteiro situado nos jardins do Vaticano como sua última residência terrena. Na verdade, devido à sua extensa correspondência, ainda tem muito a fazer. No nosso último encontro, disse inclusive que poderia muito até se imaginar pegando a caneta quando estiver melhor. Ele sempre foi um escritor notório e está muito interessado no que está acontecendo no mundo e na Igreja.
Qual é a relação entre Bento XVI e o Papa Francisco?
Parece que ninguém pode imaginar que seu relacionamento seja bom. Muitos jornalistas veem que Bento XVI e Francisco são pessoas de tipo diferente, e daí concluem que os dois devem ser inimigos e se intrigar um contra o outro. Mas não é o caso; não é verdade que Francisco seja o único que “luta contra os lobos” e Bento XVI seja uma presença sombria ao fundo. Essa sombra não existe, e certamente não existe um “segundo papa”, como alguns levaram o público a acreditar.
Em sua renúncia, Bento XVI prometeu obediência ao seu sucessor, seja ele quem for. E se manteve firme neste propósito. Não há uma única declaração pública sua dirigida contra seu sucessor. E vimos novamente no encontro com os novos cardeais que a relação entre Bento XVI e seu sucessor é muito cordial. Francisco tem veneração por ele; em uma ocasião, ele o definiu como “um bom avô”, mas outra vez o apontou como “um grande Papa”, cuja obra, segundo ele, será mais conhecida de geração em geração.
E vice-versa: Bento XVI não gosta de aplaudir tudo o que o sul-americano Jorge Bergoglio faz, mas também não tem por que. O Papa é o Papa; e o Papa é Francisco. Os dois homens foram ou são líderes profundamente religiosos da Igreja Católica e têm grande respeito um pelo outro. Só isso já merece respeito pelo representante de Cristo na terra escolhido pelos cardeais. O Papa Emérito acaba de pedir aos novos cardeais que obedeçam e sejam leais ao Papa em exercício. Além disso, existe uma grande simpatia entre estes dois sucessores de Pedro e também por esta razão, como se vê uma ou outra vez, existe uma boa relação entre eles. Mesmo que isso surpreenda alguns.
No livro, você menciona que Bento XVI escreveu um testamento espiritual que será publicado após sua morte. Por que o Papa Emérito tem essa necessidade? Ele já escreveu muitos livros.
Quando ainda era estudante, Ratzinger sentia o desejo de compartilhar com os outros o que sabia. Ele não era um fofoqueiro ou um sabe-tudo que tem que colocar em tudo a sua mostarda. Suas contribuições, tanto teológicas como sobre questões sociais, foram sempre marcadas por profundas considerações e uma grande experiência. Quase nove anos após a sua renúncia, a Igreja e o mundo enfrentam uma nova encruzilhada. A crise do coronavírus mostra claramente as grandes transformações e desafios após a virada do milênio.
Na própria Igreja Católica, as forças centrífugas se tornaram ainda mais fortes. Parece haver cada vez menos respaldo. Ao mesmo tempo, como acontece na Alemanha, muitos bispos se curvam ao poder do espírito da época e desejam aparecer pessoalmente o melhor possível na mídia. Muitas vezes vemos um rebanho sem pastor, o que não deixa Joseph Ratzinger indiferente.
Existe uma tradição entre os papas de deixar um testamento espiritual. No princípio, Bento XVI não quis segui-la. Mas desde então tomou uma decisão diferente. Presumo que o seu testamento espiritual aborde especificamente a situação dos cristãos na sociedade secularizada, em um mundo sem Deus, também para incutir coragem nas pessoas que se encontram nesta situação. Sua escrita está concluída. No entanto, só será publicado após a morte de Bento XVI. Pode-se presumir que receberá muita atenção.
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“Bento XVI é um pensador moderno”. Entrevista com Peter Seewald - Instituto Humanitas Unisinos - IHU