18 Novembro 2020
Boca de urna, campanha nos cultos e mobilização de voluntários seriam algumas das estratégias da igreja de Edir Macedo para emplacar candidatos nestas eleições.
A reportagem é de Mariama Correia, publicada por Agência Pública, 17-11-2020.
“Já tem candidato?”, me perguntou senhora simpática na entrada do Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), no bairro do Brás, em São Paulo. Era por volta das 7 horas do domingo (15) de eleições municipais. Antes que terminasse o gesto negativo com a cabeça, ela entregou um santinho do vereador André Santos, do Republicanos, o partido da Universal. No verso havia instruções para um voto casado com o então candidato a prefeito Celso Russomano, também do Republicanos.
Material de campanha do vereador André Santos distribuídos na frente do Templo de Salomão
(Foto: Reprodução | Agência Pública)
“Pode votar do jeitinho que tá aqui, nos dois”, orientou a mulher, se identificando como uma obreira da igreja voluntária na campanha. Havia aproximadamente dez obreiros entregando santinhos nos portões do templo no dia da votação. Essas atividades, conhecidas como boca de urna, são proibidas por lei, afirma o advogado eleitoral Fernando Neisser: “Pedir votos e distribuir material na data do pleito é crime eleitoral”, afirmou em entrevista à Agência Pública.
No fim daquele dia, André Santos, um dos candidatos que receberam mais verba de doações, seria reeleito entre os dez vereadores mais votados de São Paulo. Ele é líder da bancada do Republicanos na Câmara Municipal na atual legislatura e já apresentou programas nas rádios Record e São Paulo, ambas propriedades do bispo Edir Macedo, líder da Universal. Apesar do apoio da igreja e do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na disputa para prefeito da capital paulista, Russomano não avançou para o segundo turno.
Durante mais de um mês, a Pública recebeu relatos sobre campanhas dentro de igrejas e templos, que são ilegais (Lei 9.504/97), além de outras práticas irregulares envolvendo lideranças religiosas nas eleições deste ano. As denúncias enviadas por leitores de todo o Brasil, em uma investigação participativa, mostram o uso da fé como palanque em várias religiões. E indicam que lideranças de grandes igrejas evangélicas, a exemplo da Universal, estariam usando o discurso religioso para influenciar o voto de milhares de fiéis e eleger aliados.
Fieis na frente do Templo de Salomão, em São Paulo, distribuindo santinhos e material de campanha política
(Foto: Mariama Correia | Agência Pública)
A Catedral da Fé é o maior templo da Universal em Vitória (ES). Fica na principal avenida da capital, a Reta da Penha. No dia 19 de outubro, com as medidas sociais recomendadas por conta da pandemia de coronavírus, aproximadamente 600 fiéis assistiam ao culto na igreja, que tem capacidade para 3.600 mil pessoas. Eles estavam distribuídos em lugares alternados e usavam máscara.
“No final do culto, o pastor começou a pedir votos”, escreveu à Pública um leitor que presenciou a celebração. Em áudio gravado pelo leitor, o pastor Moisés Bispo diz: “Estou me candidatando a vereador e no dia 15 de novembro você vai votar em mim”. Em seguida, o sacerdote explica: “Não, não. Eu coloquei alguém em meu lugar, que é o pastor Rossetti”.
O pastor Rogério Rossetti (Republicanos) foi candidato a vereador em Vitória. Ele recebeu 1.375 votos, mas não conseguiu se eleger este ano por causa do coeficiente eleitoral. Rossetti já foi líder do PRB, como se chamava o Republicanos, no Mato Grosso. Também foi suplente em mandatos de vereador e de deputado estadual pelo partido, em 2012 e 2016. Em 2016, se candidatou a vereador em Cuiabá (MT), mas ficou inelegível por envolvimento em uma suposta fraude em cotas de candidaturas femininas da ex-candidata a prefeita Serys Marly Slhessarenko. O TRE extinguiu a condenação de inelegibilidade em 2018.
“Não veja o pastor Rossetti, veja a Igreja Universal”, disse o pastor Moisés durante a pregação na Catedral da Fé, no dia 19 de outubro. Do lado de fora do templo, Rossetti distribuiu material de campanha. O pastor Moisés ainda indicou outro pastor, Ricardo Fonseca (Republicanos), para vereador de Serra, uma cidade vizinha. Ele também não foi eleito, mas conquistou 1.642 votos.
No fim do culto, o pastor Moisés pediu ao público que estudasse o livro de João, no capítulo 10, versículos 1, 2 e 3. “Os números ficaram expostos ao longo da parte final da pregação”, escreveu o leitor à Pública. “Coincidência ou não, eram os mesmos números que os candidatos usaram nas urnas.”
Por meio do Republicanos a Universal vem elegendo aliados – massivamente membros da própria igreja – em todo o país. Em 2008, o partido elegeu 780 vereadores e vereadoras e 56 prefeitos e prefeitas. Oito anos depois, eles multiplicaram os resultados para 145 vice-prefeitos e vice-prefeitas, 106 prefeitos e prefeitas e 1.620 vereadores e vereadoras.
Este ano, o partido liderou as candidaturas de sacerdotes nas eleições municipais, reunindo 101 candidatos, que declararam ter a religião como ocupação profissional. Emplacou 208 prefeitos no primeiro turno e 2.594 vereadores em todo o país (segundo dados do TSE atualizados até às 17 horas do dia 16). Apesar disso, perdeu batalhas importantes, como em São Paulo, onde Russomano teve um desempenho fraco, e não conseguiu reeleger Marcelo Crivella, apoiado pela Universal e por Bolsonaro, no primeiro turno no Rio de Janeiro.
Fonte: TSE | Imagem: Agência Pública
Mas os resultados nas prefeituras do Rio e de São Paulo não devem ser lidos como uma perda de força do partido, na opinião de Christina Vital da Cunha, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e colaboradora do Instituto de Estudos Religiosos (Iser). Para ela, que há seis anos acompanha a disputa do Republicanos com o PSC, partido ligado à igreja Assembleia de Deus e a nomes como o pastor Silas Malafaia, o Republicanos saiu fortalecido dessas eleições.
“A gente tem que pensar no total de votos obtidos pelo partido de um pleito em relação ao outro, no total de representantes eleitos no Brasil e na representatividade das bancadas nas capitais mais importantes. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Republicanos elegeu uma das três maiores bancadas para a Câmara de Vereadores”, observou.
Christina diz que o Republicanos vem se fortalecendo sistematicamente nas urnas, ano após ano. E isso, ela diz, tem relação com o engajamento de pastores e de obreiros da Universal, que influenciam o voto dos fiéis da igreja.
“Trabalhamos como voluntários para os candidatos”, me explicou uma das obreiras que distribuíam santinhos do vereador André Santos, no sábado (14), no Templo de Salomão, em São Paulo. “Estamos apoiando André Santos porque ele já tem um trabalho e é um homem de Deus. Defende a família, a saúde, as causas cristãs. Ele lutou para manter os templos abertos na pandemia”, contou. Para me convencer, a obreira mostrou um santinho em que o vereador aparece ao lado do bispo Renato Cardoso, genro do bispo Edir Macedo. “Tá aqui o bispo Renato dizendo: esse eu apoio”.
André Santos foi um dos vereadores mais votados na cidade de São Paulo (Foto: Reprodução | Agência Pública)
O vereador André também foi recebido pelo bispo Renato Cardoso no altar, como contou à Pública uma frequentadora do Templo de Salomão, por meio do questionário de investigação participativa. “No que diz respeito ao prefeito, a instrução foi a de não eleger pessoas que fecham as igrejas no período pandêmico”, escreveu, explicando que a recomendação de fechamento de templos na gestão atual de Bruno Covas (PSDB) irritou os líderes da igreja, “porque, afinal, deve ser um desespero ficar meses sem receber os dízimos”, concluiu.
“A mobilização de obreiros nas campanhas também acontece em outros estados. “Na cidade de Itabuna (BA) é impressionante o serviço de aliciamento de eleitores e distribuição de santinhos pelos obreiros da Universal”, escreveu outro leitor à Pública, através do questionário.
Usar a igreja para arregimentar apoiadores para uma campanha por si só não é uma irregularidade, explicou o advogado eleitoral Fernando Neisser. “É natural que pessoas que participam do mesmo ciclo social se engajem com causas comuns”, disse. Mas, “caso fique provado que os voluntários sofreram ameaças ou foram pressionados de alguma forma pelas lideranças religiosas, há, sim, uma irregularidade, que pode ser punida pela Justiça Eleitoral”.
“Vou votar no Miguel, que é o candidato da igreja. Ele tem muitos projetos”, disse um dos frequentadores do Templo de Salomão, confundindo o nome do vereador André Santos. Enquanto observávamos a fila em frente ao poço de Jacó – uma torneira na qual os fiéis do Templo de Salomão coletam água (eles levam garrafinhas para os pastores abençoarem no templo, pois acreditam que assim o líquido ganha propriedades milagrosas) –, perguntei se os projetos do vereador eram obras sociais. “Ele ajuda as obras do templo, recebe as pessoas no gabinete dele”, disse, sem conseguir dar mais detalhes.
Nesse mesmo momento, centenas de pessoas deixavam o Templo de Salomão depois da reunião das 7 horas do domingo (15), que quase lotou o salão com 10 mil assentos. Justamente no dia da votação, o bispo Edir Macedo tinha voltado a celebrar cultos depois de um período ausente. Mas ele não falou de candidatos.
“Se você honra a deus, não precisa ficar vendendo voto?”, disse em um dos poucos momentos de referência mais direta à política. No domingo anterior, no entanto, o bispo Júlio Freitas, genro de Macedo, dedicou boa parte de sua pregação ao discurso político. “Não dê o seu voto para pessoas que estão tentando impedir a obra de Deus”, disse, sem citar nomes de candidatos.
Ele orientou as pessoas a frequentar a igreja, mesmo em um contexto de pandemia, “porque é o que a Bíblia ensina”. Em determinado momento do culto, Freitas pediu que as pessoas bebessem a água tirada do poço na frente da igreja – o que todos fizeram retirando as máscaras. Os fiéis também foram à frente do púlpito, onde fica uma suntuosa réplica da Arca da Aliança, um símbolo sagrado judeu, para receber a unção, um óleo que os pastores passam nas mãos das pessoas, que o espalham sobre o corpo e a cabeça.
No Espírito Santo, o bispo Jailson Ferreira, que coordena as ações da Universal no estado, usou as redes sociais para pedir votos para o vereador Rogério Rossetti. Ele declarou apoio à candidatura no Facebook. Já o bispo Alessandro Paschoal, coordenador do grupo de evangelização da Iurd no Brasil, promoveu “45 dias de orações pelas eleições”, fazendo transmissões ao vivo nos seus perfis das redes sociais. Nos vídeos, ele orientava que os membros da igreja votassem em “homens de Deus” e estimulava fiéis a fazer campanha pelos candidatos.
Publicação no Facebook do bispo Jailson Ferreira declara apoio ao pastor Rogério Rossetti.
(Foto: Reprodução | Agência Pública)
“Não vote contra a família. É de esquerda? É complicado”, disse em uma das transmissões. “Você que trabalhou por um candidato, você que lutou por alguém, eu quero te parabenizar. Dizer que Deus vai te abençoar”, falou em outro vídeo publicado pouco antes do dia de votação.
A Pública entrou em contato com a Assessoria de Imprensa da Igreja Universal, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. A assessorias do candidato André Santos (Republicanos) e dos candidatos do Republicanos no Espírito Santo também não responderam.
Embora muitas vezes não falem no púlpito sobre candidatos – porque é ilegal –, as lideranças religiosas aproveitam o espaço da internet para orientar votos, observou a professora Christina Vital. “Eles não estão no púlpito, mas continuam sendo lideranças importantes que influenciam as pessoas.”
Para ela, a influência de líderes religiosos, como pastores, na orientação do voto com campanhas diretas de candidatos foi marcante nestas eleições. “A gente teve uma oportunidade de tentar combater esse tipo de atuação, mas, como a legislação não avançou em criar dispositivos para punir o abuso do poder religioso, o que se viu foi um grande sucesso dessas lideranças, sobretudo da Universal, em eleger seus aliados.”
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O exército de obreiros da Universal na guerra santa por votos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU