18 Novembro 2020
Outra corporação alardeia os bons resultados de seu imunizante — mas ele pode ser caro e chegar tarde demais. Segunda onda espalha mortes pela Europa. Governos, rendidos pelo poder econômico, hesitam. Brasil segue de olhos vendados.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 17-11-2020.
Ontem a Moderna anunciou os resultados preliminares do testes de fase 3 com sua candidata à vacina contra covid-19 – e eles apontam para uma eficácia de 94,5%. Segundo a empresa, o ensaio com 30 mil voluntários nos EUA chegou a um total de 95 infectados com sintomas e, entre eles, só cinco estavam no grupo que recebeu a vacina, enquanto os outros 90 haviam tomado o placebo. Além disso, houve 11 casos graves da doença, mas nenhum entre as pessoas que foram imunizadas.
Os números são semelhantes aos da Pfizer/BioNTech, e isso já era esperado porque ambos os imunizantes usam a mesma tecnologia, baseada em RNA mensageiro. Mas a Moderna tem uma importante carta na manga: seu imunizante não precisa ser mantido a -80˚C, como o da Pfizer. Embora sua temperatura ideal seja de -20˚C – o que ainda é baixo demais para uma distribuição confortável –, a empresa afirmou que suas vacinas podem ser armazenadas em refrigeradores comuns por até 30 dias (contra cinco, no caso da Pfizer), e ainda que elas se mantêm íntegras por 12 horas em temperatura ambiente.
A propósito: essa diferença na temperatura pode parecer estranha, já que os dois imunizantes usam RNA mensageiro e é isso que confere instabilidade a elas. Acontece que os cientistas da Moderna descobriram como aumentar a estabilidade com uma fórmula de nanopartículas de gordura que protegem o mRNA.
A Moderna detalhou um pouco mais seus dados do que a Pfizer. Esta última não deixou claro quantos de seus voluntários foram infectados em cada grupo (o da vacina e o do placebo), nem se houve casos graves. Mas há perguntas sem resposta que são comuns a ambos os imunizantes: não se sabe quanto tempo dura a imunidade, se a proteção varia com a idade, se a vacina impede também as infecções assintomáticas (e, por tabela, a disseminação do vírus por essa via). E, não menos importante: falta a publicação dos dados completos, com revisão de pares, num periódico científico.
A Moderna pretende pedir aprovação emergencial nos EUA nas próximas semanas, e que espera ter 20 milhões de doses disponíveis para o país em breve. Para o próximo ano, a expectativa é de haver um bilhão de doses no mundo todo. A empresa quer cobrar até US$ 37 por dose; no entanto, se comprometeu no mês passado a não impor suas patentes durante a pandemia. Se isso vingar, fabricantes de genéricos podem se movimentar logo depois que as agências reguladoras aprovarem o imunizante – e isso pode vir a ser bem importante.
O Brasil não negociou nenhuma dose diretamente com a Moderna. Segundo a apuração da Folha, a empresa enviou uma proposta ao governo em agosto mas não houve resposta (assim como aconteceu com a Pfizer, aliás). Não está claro se essa vacina está no Covax Facility, consórcio do qual o Brasil faz parte. Segundo o site Health Policy Watch, a Moderna tem negociado com a iniciativa global, mas funcionários da OMS se abstiveram de dizer se um acordo foi de fato assinado.
No Brasil, como o governo federal apostou quase todas as suas fichas na vacina de Oxford/AstraZeneca, são os resultados desse imunizante que mais nos interessam. Ainda não há nada de concreto nesse sentido, e a tecnologia usada por ela não tem nada a ver com o mRNA. Mesmo assim, especialistas acreditam que os novos dados de eficácia são favoráveis para candidatas feitas com abordagens diferentes também. Por quê?
As candidatas da Pfizer/BioNTech e da Moderna usam o mRNA para dar ao organismo instruções para produzir a proteína spike (ou ‘de espinho’) que o vírus usa para infectar as células e se replicar – a partir daí, a resposta imunológica é desencadeada. Então, quando alguém toma a vacina e produz essa proteína, seu corpo aprende a reconhecê-la e atacá-la, o que acontece rapidamente quando o vírus real aparece. O motivo do otimismo é que todas as principais vacinas testadas no momento têm com alvo essa mesma proteína spike. No caso da vacina de AstraZeneca, a diferença básica é que a resposta imunológica é ‘aprendida’ pelo organismo após contato com um vírus inofensivo do resfriado de chimpanzés.
De todo modo, agora o Ministério da Saúde parece estar se movimentando para negociar com outras empresas. Ainda hoje haverá uma reunião com a Pfizer; amanhã, com a Johnson & Johnson.; e, na quinta, com desenvolvedores da Sputnik V.
Apesar dos primeiros dados satisfatórios, o tom da OMS é de cautela. Com razão: o abastecimento de doses vai ser limitado num primeiro momento, por conta dos acordos firmados pelos países ricos. Mesmo neles, alguns meses devem separar a aprovação de um imunizante e sua chegada à população inteira. E o que há de real, agora, é a situação preocupante da pandemia na Europa e nos Estados Unidos.
Ontem, o governo sueco anunciou a segunda medida de cerceamento durante a pandemia: a partir da próxima terça-feira vai limitar as reuniões públicas a oito pessoas. Hoje, o número pode variar entre 50 e 300, dependendo do caso. A primeira medida foi anunciada dias atrás: proibição da venda de bebidas alcóolicas a partir das 22h e o fechamento de bares, restaurantes e boates a partir das 22h30. O país de dez milhões de habitantes ficou conhecido pela abordagem heterodoxa, sem qualquer tipo de imposição à população e acabou não indo tão bem na resposta à pandemia quanto seus vizinhos escandinavos. A média móvel de casos nos últimos 14 dias está em 511 infecções para cada cem mil habitantes – o dobro da Dinamarca, e mais do que o Reino Unido. “Esta é a nova norma para toda a sociedade, para toda a Suécia. Não vá a academias, não vá a bibliotecas, não organize jantares, não faça festas. Cancele“, disse o primeiro-ministro Stefan Löfven, enfatizando: “Vai piorar. Cumpra o seu dever e assuma a responsabilidade de impedir a propagação da infecção”.
Na Europa, a Finlândia é um caso à parte no controle da epidemia. Após a primeira onda, os casos diários de covid-19 caíram perto de zero em julho, mas o governo manteve algumas das restrições mais rígidas do continente. O país entrou na segunda onda com um nível baixo de espalhamento do vírus e está muito abaixo da média móvel de casos do continente por cem mil habitantes – com 54 contra 576 nos últimos 14 dias – e quase incomparável a outras nações pequenas que estão sendo castigadas pelo vírus, como Luxemburgo e suas 1.302 infecções para cada cem mil habitantes.
Uma reportagem da Reuters mostra como a resposta finlandesa, baseada em isolamento social, não foi um problema para a população. Pelo contrário: 73% dos finlandeses disseram que as medidas de confinamento foram muito ou bastante fáceis de lidar. E 23% consideraram a quarentena “até mesmo uma melhoria” em sua vida diária.
“Talvez a zona de conforto pessoal finlandês seja um pouco mais ampla do que em alguns outros países europeus. Gostaríamos de manter as pessoas a um metro ou mais de distância, ou começaremos a nos sentir desconfortáveis”, disse Mika Salminen, diretora da autoridade de saúde pública da Finlândia. A adesão da população também pode ser medida olhando para a quantidade de finlandeses que, voluntariamente, baixaram o aplicativo de rastreamento de contatos do governo: 2,5 milhões em uma população de 5,5 milhões – “uma taxa com a qual os colegas de Salminen nas autoridades de saúde pública em outros países europeus só podem sonhar”, compara a agência de notícias.
Por lá ajudam muito a baixa densidade populacional, a localização remota e a dinâmica do mercado, já que o país alcançou em abril a maior taxa de trabalho remoto da Europa, com 60% da população em teletrabalho.
Enquanto isso, Portugal oferece um exemplo de deterioração entre a primeira e a segunda onda. O país de dez milhões de habitantes registrou ontem seu recorde de mortes em 24 horas: 91 óbitos. O número de casos registrados diariamente segue alto, na casa dos quatro mil, assim como o de internação nos hospitais. Na última quinta-feira, passou a vigorar o estado de calamidade em todo o território nacional, o que significa medidas de isolamento social mais rígidas, como a imposição de um limite de cinco pessoas em lojas e de 50 em celebrações – o que soa permissivo, na verdade. Mesmo assim, no sábado houve protestos em Lisboa. A capital enfrenta junto com outras cidades medidas mais duras, como a proibição de circular nas ruas à noite.
Os países asiáticos banhados pelo Pacífico relataram números recordes de novos casos de coronavírus e surtos ontem. No Japão, há uma pressão crescente para impor estado de emergência. Por lá, o fim de semana foi de recorde de infecções diárias (1.722 no sábado) e em cidades como Tóquio a transmissão voltou aos mesmos níveis de agosto.
Já a Coreia do Sul que foi exemplo durante muito tempo está, na definição do governo, em uma “encruzilhada crítica”. O país começa a impor hoje medidas mais estritas de distanciamento depois que a contagem diária de casos pairou acima de 200 pelo quarto dia consecutivo. Estão proibidas reuniões públicas de cem pessoas ou mais e eventos esportivos e religiosos só podem acontecer com lotação de 30% da capacidade das instalações.
O governo de São Paulo adiou ontem seus planos de colocar 90% das cidades do estado na fase verde, de maior flexibilidade da quarentena. A decisão já é um reflexo do indicador que mais vem preocupando ultimamente: o número de novas internações, que subiu 18% na rede pública e na privada semana passada, chegando a 1.009. A taxa de ocupação dos leitos de UTI é de 42% no estado e 47% na Grande São Paulo.
Se a tendência continuar haverá grande pressão sobre o SUS, alerta Paulo Menezes, que faz parte do comitê de contingenciamento do governo paulista. E por um motivo simples: os leitos públicos destinados à covid estão sendo desativados. Nas últimas semanas, mais de mil foram fechados no estado, situação que se repete país afora.
São Paulo também é um bom exemplo deste momento de incerteza porque, por lá, o número de casos e mortes ainda continua estável. Isso pode acontecer porque as mortes demoram a aumentar, porque ainda se testa pouco e também por conta da pane que ocorreu na plataforma do Ministério da Saúde que, segundo a pasta, foi resultado de um ataque hacker.
E o problema não afetou apenas o painel de casos e óbitos por covid. No dia 5 de novembro, a pasta teria identificado um “vírus”, o que causou a desativação de parte da rede. Segundo Marcelo Gomes, pesquisador da Fiocruz responsável pelo Sistema Infogripe, que monitora os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), os dados dos municípios, enviados semanalmente, também pararam de chegar. “A última atualização que tivemos foi no dia 2 de novembro, então a última análise completa que conseguimos fazer foi da semana epidemiológica 44, que se encerrou 31 de outubro”, explica ele em uma ótima reportagem do Jornal da USP. Na época, uma tendência de alta nas internações já podia ser vista em capitais como Florianópolis, João Pessoa e Maceió. As expectativas dos especialistas estão voltadas para os dados que serão divulgados ao longo desta e da próxima semana.
Onyx Lorenzoni disse ontem que o ‘novo’ Bolsa Família está pronto e, dependendo do aval de Jair Bolsonaro, vai ser anunciado no início de dezembro. Pelo pouco que o ministro da Cidadania adiantou, não vai ser mesmo nada parecido com o Renda Brasil (que de fato naufragou). E as mudanças vão ser feitas sem recursos além dos já previstos para 2021: “Nada a ver com grana, podemos fazer o programa que já está previsto no ano que vem, que são R$ 34 bilhões. Dá para fazer um Bolsa Família inteirinho mesmo”, ele afirmou.
Deve ser incluída uma premiação em dinheiro para famílias com filhos que tirem boas notas na escola (“O presidente sempre quis (…) incluir mérito no programa”, nos lembra Lorenzoni), e gestantes de baixa renda devem ganhar vouchers antes de se tornarem beneficíárias. A novidade mais alardeada pelo ministro é uma intermediação digital entre beneficiários e empresas que buscam empregados – seria uma ‘porta de saída’ do Bolsa Família. Essa é uma discussão antiga. Mas, diante da possibilidade muito real de aumento da pobreza no país, parece-nos que o governo deveria pensar menos em portas de saída e mais em como garantir que ninguém fique desprotegido.
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Covid: o Ocidente prostrado à espera da vacina redentora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU